Reedição de “Casa de Alvenaria” joga luz à obra de Carolina de Jesus

Conceição Evaristo e Vera Eunice de Jesus, filha da escritora, falam à ELLE sobre a importância da autora, que também ganha exposição no IMS Paulista.


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Quando lançou seu primeiro livro, Quarto de despejo, nos anos 1960, Carolina Maria de Jesus, escritora mineira nascida em 1914, inaugurava ali uma carreira meteórica. A obra, que reproduz o diário em que a então catadora de papel narra seu dia a dia, ganhou o mundo. Com uma tiragem inicial de dez mil exemplares, o livro se esgotou em apenas uma semana e fez da moradora da favela do Canindé uma celebridade internacional, com sua história indo parar nas páginas das revistas Time, Life, Paris Match e do jornal Le Monde. Quarto de despejo foi traduzido para mais de 13 idiomas, mas anos depois, uma pergunta permaneceu: o que aconteceu a Carolina Maria de Jesus? Parte do mistério é decifrado agora, com a chegada às livrarias este mês da nova edição ampliada de seu segundo trabalho, Casa de alvenaria.

Os livros são parte das mais de 27 obras, entre diários manuscritos, poemas e letras de música deixados pela escritora morta em 1977, aos 62 anos. Divididos em dois volumes, Osasco e Santana, Cartas de alvenaria conta os anos vividos por Carolina e seus três filhos nos bairros paulistanos para onde se mudou, respectivamente, logo após seu primeiro sucesso.

Morando em uma casa de alvenaria, a autora de sucesso se viu “do outro lado”: conheceu políticos, líderes religiosos, artistas (tornou-se amiga de Clarice Lispector), recebia pedidos de emprego e de auxílio financeiro. Tantas demandas a fizeram se sentir aprisionada, sem tempo para fazer o que mais amava: ler e escrever.

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Foto: Arquivo Público do Estado de SP/Última Hora

Também não queria se sentir relegada à fórmula que a consagrou. Isso aliás, foi motivo de muitas brigas com Audálio Dantas, o autor da reportagem que apresentou Carolina ao mundo e que, posteriormente, tornou-se seu editor e a ajudou a publicar sua primeira obra. A ligação entre eles, apresentada no livro, era tensa, já que o desejo de Carolina de deixar de lado a imagem que a perpetuou por muitos anos – a da mulher negra, pobre e favelada – e revelar uma autora que sabia passear por gêneros diversos.

“Os dois se conheceram jovens e tinham uma relação de amor e ódio. Minha mãe era uma mulher muito vaidosa e ele insistia, mesmo depois de ela já ser conhecida, que continuasse a se vestir como uma mulher pobre, implicava com a escrita dela. Ela ficava brava, dizia que ele não era seu feitor”, lembra Vera Eunice de Jesus, sua única filha ainda viva. “Costumo dizer que era como um casamento, com altos e baixos. Não quero demonizá-lo, mas vejo como uma tentativa de invisibilizá-la”, reflete.

Ao longo das páginas, fica evidente que Carolina escreveu o que e como quis, mesmo à revelia das ordens de Audálio. No livro, o “mineirês”, seu modo de falar simples tido por muitos como “errado”, foi preservado como no original – salvo algumas correções seguindo as regras do acordo ortográfico – e usado junto a palavras e expressões sofisticadas aprendidas não no colégio (ela estudou apenas até o segundo ano da escola elementar), mas por meio de sua paixão pela literatura. “Quando optamos por manter essa linguagem, foi pensando também em mostrar como a língua portuguesa foi sendo modificada ao longo do tempo”, diz Vera. “Mesmo com pouco estudo, minha mãe era uma mulher muito culta. Até quando dava bronca, ela às vezes usava termos tão eruditos que a gente não entendia”, lembra.

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Foto: Divulgação/Companhia das Letras

O mesmo pensamento é compartilhado por pela escritora Conceição Evaristo, que divide com ela a autoria do prefácio do livro. “A Carolina traz uma revolução para as letras brasileiras por ser uma mulher que escrevia a partir de um autodidatismo. Ela lia muito e escutava muito, de tudo: a Hora do Brasil, discursos políticos e também o linguajar do dia a dia. Mas procurava falar bem, pois sabia que estava lidando com a palavra”, analisa. “O que me encanta em sua obra é sua busca desesperada pela palavra, de tomá-la para si, senti-la e traduzi-la para o público. Mudar a escrita de Carolina é perder este processo de criação. Se mudamos isso, já não teremos mais sua voz.”

Para Conceição, fazer esse resgate de Carolina Maria de Jesus é também retomar as várias facetas da história brasileira. “Casa de alvenaria chama atenção por suas críticas à política a partir do ponto de vista do povo. Carolina dá uma lição neste sentido, quando mostra que, a política está na fartura dos ricos e também aparece no vazio da panela dos pobres. O que pode ser mais atual do que isso?”, reflete a escritora mineira.

Junto com a herdeira Vera, Conceição faz parte de um conselho consultivo formado por 12 mulheres de várias partes do Brasil, que luta para que a voz de Carolina seguirá preservada. Criado para cuidar das pesquisas que resultaram na reedição de Casa de alvenaria, ficará a cargo do grupo a supervisão de outras publicações da autora.

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Foto: Divulgação/Companhia das Letras

Para irradiar ainda mais o legado de Carolina e levar ao público suas facetas menos conhecidas – como as incursões pela música e pelas artes circenses – o Instituto Moreira Salles Paulista abre, a partir de 25 de setembro, a exposição Carolina Maria de Jesus – Um Brasil para os brasileiros. A mostra, que tem curadoria do antropólogo e curador Hélio Menezes e da historiadora e pesquisadora Raquel Barreto, parte de dois manuscritos de Carolina – Um Brasil para os brasileiros e seu disco, Quarto de despejo, com composições próprias.

E não para por aí: no mês passado, a prefeitura de São Paulo anunciou que irá inaugurar cinco novas estátuas na cidade para, segundo a Secretaria Municipal de Cultura, homenagear personalidades negras com “forte ligação com o município”. Entre nomes como Itamar Assumpção e o atleta olímpico Adhemar Ferreira da Silva, está Carolina Maria de Jesus. Como disse Conceição: “Ler e ver Carolina hoje é ser uma força atuante para colocá-la no lugar que ela tem na arte e na literatura brasileira”.

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Foto: Companhia das Letras

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