Conheça as pioneiras da música eletrônica

Sintetizador é coisa de mulher, sim! Cineastas e pesquisadoras mudam o foco da narrativa e recuperam as contribuições femininas para cena eletrônica mundial – e elas são mais antigas do que você imagina.


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O conceito de “Herstory”, a história contada pela perspectiva feminina, foi cunhado nos anos 1970 pela ativista americana Robin Morgan. A ideia surge da necessidade de questionar as narrativas contadas até então, e trazer a tona os nomes ofuscados pelo patriarcado. Inspirada pelo termo, a cineasta Lisa Rovner decidiu embarcar em um projeto grandioso ao apresentar o trabalho de nove artistas pioneiras da música eletrônica em formato de documentário. Em condições normais, o Sisters With Transistors seria exibido na programação de festivais, como o americano SXSW, mas teve seu calendário de lançamento adaptado para o cenário de pandemia. Por enquanto, será exibido em duas sessões com público no evento britânico Sheffield Doc/Fest, no dia 30 de outubro e no dia 1 de novembro. O longa ficará disponível no player do festival para residentes do Reino Unido até o dia 12 de novembro.

Elogiado pela mídia internacional, o registro investiga para além da vida das personagens. Ele também fala sobre a maneira como escutamos e propõe uma reflexão sobre a forma como entendemos o passado. Cada uma dessas pioneiras, cada uma à sua maneira, apresentou pesquisas extensas sobre sons e tecnologias (saiba mais sobre elas abaixo). A compositora americana Laurie Anderson, uma das expoentes da música avant-garde dos anos 1980, é a responsável por narrar o filme, que transita pelo passado das visionárias por meio de imagens de arquivo.

Antes de se dedicar ao cinema, Rovner trabalhou no mercado de arte como galerista e assistente de artistas, e foi nessa época que seu interesse por narrativas despertou. “Há muitos fatores que podem explicar por que as mulheres não foram representadas na música eletrônica, mas boa parte disso se deve à maneira como as coisas são tradicionalmente contadas”, explica a diretora à ELLE. Refutar mitologias construídas no passado é uma parte fundamental dos movimentos identitários, muitos deles impulsionados – e articulados – com a internet.

Hoje se discute como as estruturas de privilégios silenciaram grupos ao longo das décadas e, neste contexto, o imaginário do homem inventor não faz mais sentido na realidade contemporânea. “Segundo as artistas, elas estavam se expressando durante todo esse tempo. O problema é quem estava escutando, ou melhor, quem não estava escutando”, conta Rovner. Todas as nove retratadas compartilham a frustração de sentir que não que estão sendo ouvidas ou que o seu ponto de vista é ignorado, seja no ambiente de trabalho ou na vida pessoal.

Uma das desbravadoras retratadas no filme, a compositora e acordeonista Pauline Oliveros (1932-2016), pregava a importância da escuta ativa. Pauline, que começou a trabalhar sons a partir de experimentos com gravação em fita, ainda na década de 1950, argumentava que escutar era uma forma de ativismo e que podia provocar efeitos curativos. Um texto publicado por ela em 1970, no New York Times, começa com a questão: “Por que não houve grandes mulheres compositoras?” Para começar, elas não deveriam ser chamadas de mulheres compositoras, mas apenas compositoras, ressaltava a acordeonista. Inspirada pelo movimento feminista, Pauline, uma artista queer, questiona os papéis conhecidos como femininos: “No passado, talento, educação, habilidade, interesses e motivação eram irrelevantes, porque ser mulher era a única qualificação para trabalho doméstico e obediência aos homens”.

Olho no futuro

A presença feminina na música eletrônica também é tema de outro filme recente, mas que aborda o assunto na perspectiva da ficção. The Shock of the Future (França, 2019) explora os desafios de Ana, uma compositora de jingles esnobada pela indústria musical dos anos 1970. A atriz e cantora Alma Jodorowsky, neta do cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, interpreta a protagonista, que anseia reconhecimento profissional e se descobre na potência dos sintetizadores. A direção do longa marca a estreia cinematográfica do músico francês Marc Collin, mais conhecido pelo trabalho no coletivo Nouvelle Vague, e um grande apaixonado pela estética da música da época. O diretor do longa começou a fazer shows na metade dos anos 1980, em um cenário pouco diferente de como as coisas aconteciam na década anterior. “Percebia que havia espaço para as mulheres cantoras ou violinistas, mas não nas guitarras ou nos sintetizadores”, disse Collin em entrevista à Mixmag.

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Alma Jodorowsky como a compositora de jingles Ana.Foto Reprodução The Shock of the Future

Mesmo na virada do milênio o espaço para as mulheres na música eletrônica estava longe de ser generoso, como se verifica nas origens do site estadunidense Pink Noise, que há 20 anos documenta a atuação feminina nesta cena. O projeto, idealizado pela multi-instrumentista, compositora e pesquisadora Tara Rodgers, surgiu da necessidade de trocar informações sobre música. Depois de aprender sozinha a tocar instrumentos nos anos 80, Tara montou um home studio na década seguinte, com o objetivo de produzir as próprias composições. Logo descobriu que os fóruns online eram povoados por homens pouco interessados em dividir dicas com iniciantes. Aos poucos, foi construindo a sua própria rede de apoio, consolidada com o site. A ideia da artista deu tão certo que virou livro, Pink Noises: Women on Electronic Music and Sound (Duke University Press, 2010), que apresenta 24 longas entrevistas com DJs, produtoras, musicistas e artistas.

Quando não está dando aulas ou palestras, Tara dedica-se hoje ao projeto de música eletrônica Analog Tara, que deve lançar três novos discos nos próximos meses. E continua suas pesquisas, investigando, principalmente, o que ainda é pouco falado. “Muitos de nós têm em mente dez mulheres que são consideradas as ‘fundadoras’ ou ‘pioneiras’. Há pesquisas o suficiente e filmes em circulação que tornaram esses nomes populares. O que é ótimo! Particularmente, estou interessada no que ainda não sabemos”, explica Tara. Ela cita, por exemplo, a descoberta de várias cartas de jovens mulheres destinadas ao inventor do sintetizador RCA nos anos 1950 – uma década antes do lançamento do aparelho. Essas admiradoras perguntavam detalhes sobre o design e desejavam saber detalhes sobre o instrumento. Decidida a entender mais sobre essas pessoas, Tara encontrou registros de que muitas delas ganharam prêmios em apresentações com o sintetizador em feiras de ciências ou em escolas. “A história as ignorou, mas podemos dizer que elas foram fundamentais no processo de se estabelecer um mercado consumidor para o novo produto”, explica a pesquisadora. Seu desejo é olhar para além do que já é conhecido e, dessa forma, conseguir ouvir os silêncios e as ausências da história.

Made in Brazil

No Brasil, também há nomes dedicados a corrigir apagamentos femininos na cena musical. Em Ondas Tropicais (Matrix Editora, 2017), a jornalista Claudia Assef conta a história da sonoplasta e produtora musical Sonia Abreu (1951-2019), conhecida como a primeira DJ do Brasil. A pioneira das pistas começou a trabalhar na rádio Excelsior em 1968, lugar onde permaneceu durante dez anos e foi fundamental para sua formação musical.

“Ela tinha acesso a muita novidade”, conta Claudia. “Nessa ansiedade de compartilhar seu conhecimento musical, criou a primeira rádio ambulante do Brasil, a Kombi do Ondas Tropicais, que funcionou em uma lancha no litoral, e chegou até ter um trio elétrico.” Especializada na cena eletrônica nacional, Claudia é co-fundadora do Women’s Music Event, uma premiação e plataforma de música focada no protagonismo feminino, e também é autora do livro Todo DJ já sambou: a história do disc-jóquei no Brasil (Conrad, 2003), onde investiga o surgimento da profissão no país. O trabalho ganhou uma nova edição em 2017 com mais 80 páginas e um capítulo sobre a presença feminina no meio.

Confira a seguir alguns detalhes de 15 mulheres que tiveram uma atuação importante na evolução da música eletrônica no mundo.

15 pioneiras da música eletrônica do século 20

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Clara Rockmore, a russa que dominou o Theremin.Foto Reprodução

Década de 1920

Clara Rockmore – O centenário do Theremin, o primeiro instrumento puramente eletrônico, não seria o mesmo sem as contribuições da imigrante russa Clara Rockmore, conhecida como a mulher que dominou a criação do físico Léon Theremin. O circuito do aparelho conta com um sensor eletrônico que muda de tom conforme as mãos se aproximam e se afastam. Clara começou a tocar piano aos 2 anos, migrou para o violino aos 4 e se tornou uma estrela prodígio em seu país natal. Uma lesão a impossibilitou de se dedicar ao violino, mas não a impedia de tocar o novo aparato moderno.

Década de 1940

Daphne Oram – Considerada a primeira compositora britânica, era também inventora e começou a trabalhar aos 18 anos como engenheira de som nos estúdios da BBC. Co-fundadora do BBC Radiophonic Workshop, criava trilhas, vinhetas e efeitos sonoros para os programas de rádio e radionovelas. Em 1959, abriu o próprio estúdio, o Oramics Studios for Electric Composition, onde se dedicou aos estudos do som para o resto da vida.

Bebe Barron – O casal Bebe e Louis Barron ganhou um gravador de fita como presente de casamento em 1947, artefato que possibilitaria uma carreira nos anos seguintes. A dupla é responsável pela trilha sonora do filme de sci-fi Planeta Proibido (1956), a primeira 100% eletrônica da história do cinema. Eles também abriram um dos primeiros estúdios dedicados à eletroacústica, gravando trabalhos de nomes como Tennessee Williams e John Cage.

Década de 1950

Pauline Oliveros – “Quanto mais você vai pesquisando sobre escuta, o nome dela aparece com frequência. O conceito de deep listening traz consciência para a ação de escutar e o que isso é capaz de gerar – processos de imaginação, comunicação, cura… Em última instância, prestar atenção e valorizar a escuta nos torna seres humanos melhores, mais empáticos, generosos e presentes”, diz a produtora musical e artista sonora Luisa Puterman.

Década de 1960

Delia Derbyshire – A compositora e matemática britânica trabalhou no BBC Radiophonic Workshop, sendo a responsável pela cultuada trilha sonora da série Doctor Who (1963). Misturando técnicas da música concreta com experimentos em gravação em fita, foi responsável por trilhas e sonoplastia de diversos programas da rádio. Seu trabalho é admirado pela geração de bandas que surgiriam a seguir, como Pink Floyd e Portishead.

Jocy de Oliveira – A compositora, pianista e escritora curitibana é responsável pela primeira performance de música eletrônica no Brasil, “Apague meu spotlight” (1961). Na época, a artista conseguiu endosso da empresa Philips, responsável pelos equipamentos necessários para a apresentação – mixers, equalizadores e amplificadores –, que envolveu 12 caixas de som distribuídas pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro e de São Paulo. Desde então, compôs e apresentou nove óperas e tem seu trabalho reconhecido ao redor do mundo como pioneiro da eletroacústica.

Vânia Dantas Leite – A compositora, pianista e regente carioca se dedicava à música eletroacústica desde 1965, quando se formou em composição pela UFRJ. Depois de estudar em Londres, montou o próprio estúdio na década seguinte, época em que também foi detida pelos militares após apresentar obra considerada subversiva. Nos anos 1980, retorna ao meio universitário como professora da graduação de música e também é responsável por inaugurar o Estúdio de Música Eletroacústica do Instituto Villa-Lobos (UniRio).

Maryanne Amacher – A compositora e artista sonora estadunidense, começou a estudar piano ainda jovem no Conservatório de Música da Filadélfia. Colaboradora de John Cage e Merce Cunningham, também era aluna do compositor alemão Karlheinz Stockhausen. Responsável por diversos experimentos e performances envolvendo eletrônica, Amacher encabeçou o projeto City-Links (1967), uma série dividida em 22 partes, onde transmitia sons de várias cidades por meio de linha telefônica e mixava esses trechos. Foi professora de música eletrônica na Faculdade Bard até falecer, em 2009.

Década de 1970

Wendy Carlos – Amiga pessoal e uma das primeiras clientes de Bob Moog, o desenvolvedor do sintetizador Moog, a compositora também foi uma das primeiras pessoas públicas a assumir ter feito cirurgia para redesignação de sexo. A pioneira entrou para a história depois de lançar o disco “Switched on Bach” (1968), onde refez seis concertos do alemão John Sebastian Bach no sintetizador – ela abocanhou três Grammys com a façanha. Os cinéfilos também a adoram por sua contribuição na trilha sonora de filmes de Stanley Kubrick, como “Laranja Mecânica” (1971) e O “Iluminado” (1980).

Eliane Radigue – A compositora francesa descobriu a música eletrônica pelo rádio ainda nos anos 1950, mesma época em que se tornou aluna dos pais da música concreta, Pierre Schaeffer e Pierre Henry. Começa a produzir suas criações por meio de colagens, loops, entre outras técnicas da gravação em fita. Com mais de 50 anos de carreira, foi um dos destaques da edição 2019 do Novas Frequências, festival carioca focado em música experimental. Uma obra de sua autoria foi apresentada pelo percussionista italiano Enrico Malatesta. “Comprei o Trilogie de la mort no início dos anos 2000 e a minha vida mudou para sempre. O álbum condensa três longos drones, que nos ajudam imensamente no processo de autoconhecimento e na busca por outras esferas de existência”, diz Chico Dub, curador do Novas Frequências.

Beatriz Ferreyra – A pianista e compositora argentina de Córdoba também foi um dos destaques da última edição do evento carioca Novas Frequências. Aos 82 anos, veio ao país apresentar quatro peças de sua autoria: “Senderos abismales” (2018), “Échos” (1978), “Río de los pájaros” (1998) e “L’autre rive” (2007). No começo dos anos 1960, a artista deixou sua cidade natal com o intuito de se tornar pintora em Paris, plano abortado após conhecer o trabalho de Pierre Schaeffer e começar a colaborar com o compositor.

Suzanne Ciani – A compositora e visionária tem cinco indicações ao Grammy no currículo, com extensas colaborações em trilhas sonoras para televisão e publicidade. Por exemplo, o som da propaganda da Coca-Cola sendo aberta é de sua autoria. Além das oportunidades comerciais, também se dedicou a pesquisa das possibilidades do sintetizador Buchla, se tornando a responsável pela primeira apresentação ao vivo da história com o equipamento, em 1975. Ela também é a primeira mulher a assinar a trilha sonora de um filme de Hollywood, A Incrível Mulher que Encolheu (1981).

Donna Summer – A cantora conhecida como a rainha da disco music ficou em primeiro lugar nas paradas de diversos lugares com o single “I Feel Love” (1977), uma produção assinada pelo italiano Giorgio Moroder. Segundo a Pitchfork, a canção “apontou o caminho do futuro” para o que seria o som dos anos 1980, sendo referência para Italo disco, house, techno, trance, entre muitos outros sub-gêneros.

Década de 1980

Laurie Spiegel – A compositora americana cresceu com treinamento em música clássica, mas se apaixonou pelas possibilidades dos sintetizadores analógicos durante a década de 1970. Ao mesmo tempo, estudou programação e design de software, se tornando a responsável por idealizar o programa Music Mouse, um dos primeiros aplicativos de música para computadores. Já fez parte do corpo docente de universidades como Cooper Union e NYU, assim como colaborou ao longo das décadas em trilhas sonoras para produções audiovisuais.

Maria Rita Stumpf – O trabalho da cantora e compositora gaúcha ficou escondido por décadas até ser redescoberto pelos DJs na última década. Conhecida como uma das pioneiras da música eletrônica do país, seus primeiros trabalhos, Brasileira (1988) e Mapa das Nuvens (1993), fundiam a estética processada com influências ancestrais. Em 2020, lançou o terceiro disco, Inkiri Om, depois de três décadas fora dos palcos.

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