Curadores da bienal de São Paulo falam sobre a coreografia do impossível

Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel abordam os processos de ruptura e resistência como formas de sobrevivência em mundos em colapso, o fio condutor da 35ª edição da mostra.


obra de Torkwase Dyson
Sem Título: Tornando-se 01–Tornando-se 200: guache sobre papel de Torkwase Dyson. Foto: ©Torkwase Dyson, cortesia Pace Gallery



Coreografar é desenhar no ar, é desenhar o invisível. E talvez o impossível. Coreografar é trocar com o outro, com o espaço e com o tempo. É avançar e recuar em constante diálogo e negociação. No dia 6 de setembro, a 35ª Bienal de São Paulo abrirá sob o título Coreografia do Impossível e com curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel.

Seguindo uma tendência mundial em que produzir coletivamente se torna cada vez mais urgente e eficiente, essa é a primeira Bienal de São Paulo assinada por quatro curadores que pensam juntos, sem nenhuma hierarquia. “O próprio coletivo curatorial é uma coreografia do impossível, pois lidamos com perspectivas, vocabulários e conhecimentos diferentes. E só podemos dançar aprendendo juntos”, diz Kilomba.

Diante de um mundo marcado por crises – climáticas, humanitárias, sociais, econômicas e sanitárias –, a primeira pergunta lançada pelo grupo foi: “Como corpos em movimento são capazes de coreografar o possível dentro do impossível?” O título da exposição não revela um tema, mas sugere um experimento, um convite às imaginações radicais a respeito do desconhecido para compreender as múltiplas “estratégias criadas para imaginar, sobreviver ou escapar de um mundo onde as ideias de justiça, liberdade, igualdade são realizações impossíveis”, explica Lima. “E elas podem ser desenvolvidas em dois sentidos: de um lado são práticas que desafiam, resistem ou recusam esses sistemas globais de violência e, do outro, especulam e antecipam o que está por vir”, completa.

inaicyraIMG 0595

Registro da performance Ayán, princípio vibrante, de Inaicyra Falcão. Foto: Roberto Berton / Cortesia Fundação Bienal de São Paulo

O conceito de antecipação, aqui, é essencial, pois essa bienal assume um tempo descontínuo, em que corpos podem transitar em diferentes velocidades e dimensões. “A noção de tempo espiralar (uma concepção comum em sociedades não brancas ou ocidentais) é primordial para desmarcar a ideia de passado, presente e futuro como categorias consecutivas ou progressivas ou lineares”, explica Menezes. “Essa discussão é fundamental para compreendermos que não estamos vivendo num mundo em colapso, mas que vários mundos vêm colapsando em diferentes lugares e momentos do que chamamos de história.” Por isso, a curadoria nos traz a ideia do tempo que volta em si mesmo, que espirala, que baila. E questiona: quais são as estratégias que vêm sendo realiza das para enfrentar mundos que estão terminando há muito tempo, mundos que se extinguiram e estão em ruínas, mundos que seguem sendo destruídos?

“Essa discussão é fundamental para compreendermos que não estamos vivendo num mundo em colapso, mas que vários mundos vêm colapsando em diferentes lugares e momentos do que chamamos de história.” Hélio Menezes

Para desenhar sequências que criam possibilidades, é preciso começar a olhar para imaginações de tudo e todos que rompem com a visão colonizadora, branca, heteronormativa e etnocêntrica, predominante até então. Não à toa, a primeira lista de artistas revela uma seleção focada no sul global, com artistas do Caribe, América Latina, África, Oriente e Oriente Médio – onde muito já está sendo desenhado e inventado para existir. E resistir.

Entre os brasileiros, teremos obras que representam epistemologias não brancas que construíram o país. Denilson Baniwa e Gabriel Gentil Tukano apresentam discussões políticas, étnicas e estéticas ligadas às cosmovisões indígenas. Nomes como Castiel Vitorino Brasileiro, Ayrson Heráclito e Tiganá Santana propõem processos de cura por meio de elementos e símbolos das religiões de matriz africana. Rosana Paulino e Inaicyra Falcão chegam como as grandes damas da cultura afro-brasileira, ressaltando o valor da transmissão de conhecimento como uma ferramenta de permanência. Cantora lírica e pesquisadora das tradições iorubás no campo da dança e das artes cênicas, Falcão é neta de Mãe Senhora, uma respeitada liderança do candomblé no Brasil e uma das filhas do artista Mestre Didi. Ela define a ancestralidade não como algo estritamente ligado ao passado, mas como a recriação por meio do que é vivido no cotidiano – a ritualização de gestos e cantos, hábitos alimentares, vestimentas ou outros comportamentos e formas de pensar e agir.

pauline renate3

Take da série Gayrrilères, apresentada em Veneza, que inspira o trabalho que Pauline Boudry e Renate Lorenzvão mostrar em São Paulo. Foto: Divulgação

É preciso, portanto, encontrar ritmos, ferramentas, estratégias, tecnologias e procedimentos (simbólicos, econômicos e jurídicos) para encontrar movimentos de ruptura que nasçam de elementos e ações de resistência, resiliência e enfrentamento. É preciso saber parar, voltar, avançar, lutar por espaços, ou, às vezes, andar para trás, como o Curupira. Ou como a dupla Pauline Boudry e Renate Lorenz, que criou, para o pavilhão suíço da 58ª Bienal de Veneza, em 2019, a videoinstalação Moving Backwards. Partindo da sensação de ser empurrado para trás, um reflexo das políticas reacionárias, que cresceram no mundo inteiro, a dupla criou para a Bienal um ambiente imersivo que lembra uma casa noturna. E propôs, aos performers, que fizessem movimentos para trás ou retrógrados, combinando gestos pós-modernos e dança urbana com técnicas de guerrilha e elementos da cultura underground queer, como um dispositivo de resistência.

A ruptura do pensamento moderno liberal é outro ponto crucial para essa dança acontecer. Afinal, o próprio conceito de liberdade está ligado a esse modo de pensar e, nele, encontramos um conflito entre os conceitos de liberdade e ameaça. Por isso, é preciso refletir sobre como os movimentos são regulados e como eles regulam nosso imaginário social. A artista Torkwase Dyson olha para os deslocamentos passados, os processos migratórios forçados, como uma geografia do movimento que se expressa no que ela chama de “pensamento composicional negro” – ela cria exercícios de abstração que podem trazer as características necessárias para produzir esse sistema de fuga e de escape. Essa é apenas uma das obras da mostra que buscam fugir de uma norma tema-figura como questionamento, também, dos sistemas de representação e categorização do mundo. “São obras que tentam escapar desse sistema de captura, que sempre aproxima negro e violência, por exemplo, que aproxima determinados modos de compor a determinado tipo de pessoa. Trata-se de estratégias políticas, mas sobretudo estéticas”, explica.

E é justamente essa junção potente entre a arte e a política que poderá ser vista em setembro. Arte para a mudança.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes