Documentário dos Racionais MC’s chega à Netflix

Juliana Vicente, diretora de "Das ruas de São Paulo pro mundo", que estreia nesta quarta-feira (16.11), fala à ELLE sobre a convivência com o grupo: "Parecia que eles estavam pela primeira vez na terapia".


Netflix



O impacto do Racionais MC’s na música e na consciência social e racial de milhares de brasileiros é inegável. Mas, em seus mais de 30 anos de história, os integrantes do grupo – Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay – sempre foram reticentes com entrevistas.

As coisas mudaram um tanto, e a prova é o documentário Racionais: Das ruas de São Paulo pro mundo, dirigido por Juliana Vicente, que teve pré-estreia na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e estreia na Netflix, nesta quarta-feira, 16.11.

O filme nasceu como um DVD a partir do registro da turnê dos 25 anos do grupo, em 2014. Com o material em mãos, a diretora, que tinha dirigido o premiado videoclipe da música do grupo “Marighella”, em 2012, começou a achar que tinha algo ali, mas ainda faltava alguma coisa. Eliane Dias, empresária do Racionais, mulher de Brown e produtora do futuro documentário, insistiu para que ela continuasse. Os integrantes toparam sentar-se para uma série de entrevistas. “Como a gente já se conhecia, foi um espaço muito íntimo. Parecia que eles estavam pela primeira vez na terapia”, disse à ELLE Juliana, que teve outro documentário exibido na Mostra, Diálogos com Ruth de Souza, sobre a influente atriz (1921-2019).

Entrevistas na mão, Juliana viu que tinha um documentário ali. Ela teve acesso a uma série de fitas VHS do início do grupo. Tudo foi feito sem muitos recursos até a entrada da Netflix, em 2019. “Foi massa porque a gente pôde fazer as coisas que a gente queria, deixando o negócio mais bonitão, mais chique”, disse a diretora, que voltou a entrevistar os quatro membros do grupo em 2020. “Muita coisa tinha acontecido desde 2015, no Brasil, nas questões raciais, no próprio Racionais”, explicou. A seguir, os principais trechos da entrevista:

O Racionais nunca deu muita entrevista. Hoje o Brown tem um podcast. Como se deu essa mudança? Esse processo contigo influenciou essa abertura?
Seria pretensioso da minha parte falar que sim. Mas acho que a gente teve um ambiente seguro, de trocar ideia. Tanto que, no começo da turnê (de 25 anos, do grupo, em 2014), só eu podia fazer câmera, falar com eles. Hoje em dia não é mais assim. Tem uma coisa com o Racionais é que eles são muito inteligentes. Eles perceberam que era um novo momento, uma nova forma de se comunicar. O Brown fala muito sobre ser útil. Essa atualização dele tem a ver com entender qual o espaço útil do Racionais, da voz dele, onde ele pode ampliar o que ele e o grupo acreditam. Não é aleatório, não é para estar na mídia. O Brown faz isso desde sempre. Contar a história do Racionais nesse momento é muito importante. É fundamental.

Sentiu responsabilidade?
Eu senti nesses anos um peso enorme. Estou até mais leve porque acabou. Ao longo desse processo, conheci muita gente que disse assim: “O Racionais foi o pai que eu não tive”. Essa percepção que eles têm de responsabilidade passa para quem está trabalhando com eles, porque a gente carrega o mesmo peso. Acho que é isso que os conduziu por esse caminho de ficar mais abertos, falar, encontrar plataformas que possam espalhar ideia.

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O quarteto em cena do documentário Netflix

Estar na Netflix, que é uma plataforma de alcance enorme, tem a ver com isso também?
Com certeza. Estou muito louca para ver como esse filme vai bater no resto da diáspora. Quero entender como os pretos do mundo inteiro vão entender o Racionais.

Lá no começo, o grupo teve algumas posições machistas. Eles até já comentaram sobre isso, mas como vê esse progresso na visão deles? E como foi trabalhar com eles?
Eles revisaram isso. Eles não cantam uma série de músicas que cantavam antigamente. Os caras amadureceram, o mundo mudou. Eles são homens inteligentes que estão acompanhando seu tempo. Não tem muito mais o que dizer sobre isso. Comigo sempre foi uma parada muito legal.

Uma coisa que fica muito clara no documentário é que eles não têm medo de rever ou se desenvolver, sabendo que o mundo muda, e eles mudam também.
Essa é a grande força do Racionais. É entender que eles não estão concretizados e parados no tempo. Uma única coisa que eles falaram: “Não vai matar o Racionais no fim do filme, não deixa parecer que a gente está acabando”. Eles estão completamente ativos, pensando o dia de hoje, iluminando o caminho, fazendo uma série de pessoas refletirem e mudarem de jornada.

Como acha que mudaram ao longo desses 30 anos?
Envelheceram bem, os caras. O tempo está passando bem para todos eles, em vários sentidos. Tem uma coisa no Racionais que você pode ficar enlouquecida trabalhando com os caras, porque são quatro, muito diferentes entre eles. E a Eliane é outro furacão. Ao mesmo tempo, eles são muito coerentes, então suas mudanças fazem sentido. Por causa disso, me senti muito livre para criar, para trazer meus pontos. Eu podia a qualquer momento puxar alguma coisa que me toca, trazer para hoje, e não ia parecer incoerente para o momento em que eles estão agora.

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Mano Brown em entrevista ao documentário Netflix

Que coisas que te emocionavam que você queria que estivessem no filme?
Tem um foco importante na questão racial. Independentemente de geração, a gente vem de algo que transcende esse tempo e que ainda tem uma necessidade de falar, ao mesmo tempo em que o Racionais já está apontando o futuro faz muito tempo. E ainda está difícil de fazer as pessoas entenderem esse apontamento de futuro. Eu tentei me conectar com esses pontos, onde eu achava que era isso. Por exemplo, quando você vai falar do disco Nada como um dia após o outro dia (2002), que tem 20 anos e é super atual. Além disso: as mães. Ao longo do processo, eu me tornei mãe, e ficou mais aguda para mim a potência dessas mulheres pretas, mães dos caras. Conseguimos fazer poucas citações, mas marcamos a presença e a existência delas como mulheres importantes na vida desses caras. Fizemos o mesmo com a Eliane, com a Meire (de Jesus, produtora do grupo). É uma cadeia de mulheres pretas muito fortes em torno desses caras. Elas potencializam quem eles são.

Lembra-se como foi seu primeiro contato com a música do Racionais?
Vou confessar que, quando eu tinha 13 anos, era o auge do Sobrevivendo no inferno (1997). Nessa época, meus irmãos ouviam Racionais, e parecia uma música muito de boy para mim. Eu ouvia Bob Marley. Racionais veio bem mais para a frente para mim. De verdade, o grande atravessamento foi o contato (com o grupo, quando ela dirigiu o videoclipe de “Marighella”). Acho que conheci mais profundamente o Brown para depois entender mais o Racionais.

Você viu a influência de perto, não?
Sim. Na turnê, eu fiz de tudo. Até vender camiseta. Eles (o público) me cumprimentavam quando sabiam que eu tinha feito o (videoclipe de) “Marighella”. Nesse processo, eu troquei muito com as pessoas. Foi aí que eu ouvi: “Ah, ele foi meu pai…”. Quando fiz Marighella, estava com 26 anos, entendendo várias coisas. Profissionalmente, estava pensando os caminhos. Estava vindo de uma faculdade super branca. Foi um encontro artístico importante para mim.

Foi influenciada por eles?
Com certeza! Você encontra alguém que está falando muita coisa que já estava no seu repertório, no seu pensamento, no seu sentimento. Hoje, a gente tem essa alegria de ter Racionais como leitura obrigatória para a Unicamp (desde o vestibular de 2020 da universidade), por exemplo. Você torna aquilo uma coisa que tem de ouvir, independentemente de onde está vindo.

Qual sua letra favorita do Racionais?
É difícil, mas no filme deixei bem claro minha preferida. É “Negro drama”.

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