O que significa a vitória de “Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo” no Oscar
Mais do que o reconhecimento aos melhores do ano, as escolhas da Academia refletem as mensagens que Hollywood quer passar. Entenda as narrativas que impulsionaram o grande ganhador do Oscar 2023 e outros premiados.
Para ganhar o Oscar, não basta ser o melhor longa – ou atriz, ou ator – do ano. A narrativa por trás do seu título ou nome tem tanto peso quanto a qualidade. Foi isso que deixou clara, mais uma vez, a cerimônia da 95ª edição, na noite do domingo (12.3). Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo, de Daniel Scheinert e Daniel Kwan, que saiu da festa com sete estatuetas, incluindo melhor produção, direção, roteiro original e três prêmios de interpretação, era o filme certo na hora certa.
Por quê? Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo capta as ansiedades dos millennials – falta de grana, desejo de identidade, choque geracional – ao mesmo tempo em que celebra as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes. Tem um elenco majoritariamente asiático-estadunidense ou asiático. É uma produção frenética, com multiversos, uma aura caótica como nosso tempo e citações da cultura pop, em uma mistura de ação, drama e comédia, mas, no fundo, tem mensagens bastante simples e digeríveis: o conflito entre mãe e filha e entre os imigrantes e a primeira geração nascida nos Estados Unidos, o poder (e o peso) da família, o valor de cada um, não importa sua origem ou função, a força do amor. “Há grandeza em cada pessoa”, disse Daniel Kwan no discurso de agradecimento pelo Oscar de direção. “Há genialidade dentro de você, só precisa encontrar as pessoas certas para destravá-la.”
O filme se tornou um fenômeno, faturando mais de 100 milhões de dólares para um orçamento de 25 milhões de dólares, alcançando um score positivo de 95% no agregador de críticas Rotten Tomatoes. Uma das narrativas do ano era justamente a volta aos cinemas – não por acaso, dois campeões de bilheteria, Avatar: O caminho da água e Top Gun: Maverick, que faturaram 2,24 bilhões de dólares e 1,49 bilhão de dólares respectivamente, também concorreram a melhor filme do ano, mesmo que a Academia tenha uma certa resistência a esses blockbusters. Mas a percepção é a de que Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo não é um produto de indústria, como um longa baseado nos quadrinhos da Marvel ou da DC. É um filme relativamente pequeno. Ajuda que tenha sido produzido pela A24, um estúdio independente com muito dinheiro para investir e que tem até fã-clube.
A narrativa explica também os prêmios de atuação para Michelle Yeoh, Brendan Fraser, Jamie Lee Curtis e Ke Huy Quan.
Ke Huy Quan, Michelle Yeoh, Brendan Fraser e Jamie Lee Curtis: volta por cima, diversidade e reconhecimento dos veteranos.
Michelle Yeoh conseguiu bater Cate Blanchett, que ofereceu a maior performance do ano e uma das grandes de todos os tempos em Tár. Blanchett já tem dois Oscars em casa, um como coadjuvante (O aviador, 2004) e outro principal (Blue Jasmine, 2013). Yeoh, de 60 anos, nunca tinha concorrido. Sua vitória é a segunda de uma mulher não-branca na categoria, depois de Halle Berry, em 2001, por A última ceia. E é a primeira que se identifica como asiática a levar o troféu de melhor atriz – no passado, atrizes com raízes no continente venceram, mas nenhuma se considerava asiática. “Sonhe alto, pois sonhos tornam-se realidade”, disse a atriz malaia em seu discurso. “E, mulheres, jamais aceitem quando disserem que você está passada.”
A mesma narrativa – nunca ganhou, gostamos dela, está na hora – se aplicava a Jamie Lee Curtis, de 64 anos, que fez sua carreira em filmes de terror, majoritariamente, e disputava pela primeira vez. Além de tudo, ela é filha de dois grandes de Hollywood, Janet Leigh (estrela de Psicose, de 1960) e Tony Curtis (Quanto mais quente melhor, de 1959), que nunca venceram. Era a mesma história de sua principal concorrente, Angela Bassett, que já tinha sido indicada uma vez, por Tina – A verdadeira história de Tina Turner (1993). Bassett também faria história, sendo a primeira atriz da Marvel a levar o prêmio. Até hoje, apenas 22 vezes um intérprete negro ganhou a estatueta. Mas Curtis acabou levando.
No caso de Brendan Fraser, melhor ator por A baleia, também da A24, a narrativa de retorno foi desenhada desde a estreia do filme, no Festival de Veneza do ano passado. Fraser, que foi um astro da comédia e da ação, com produções como George, o rei da floresta (1997) e A múmia (1999), sumiu porque estava tendo dificuldades com a vida em Hollywood, o que incluiu abuso sexual. O papel de Charlie no filme de Darren Aronofsky foi um “salva-vidas”, como ele disse no seu discurso na cerimônia.
Já a narrativa de Ke Huy Quan era ainda mais irresistível – tanto que, desde o início da temporada de premiações, ele saltou à frente como favorito. Refugiado vietnamita, Quan foi ator-mirim de dois clássicos dos anos 1980, Indiana Jones e o templo da perdição (1984) e Os Goonies (1985). Depois disso, os papéis escassearam (um dos poucos que conseguiu na vida adulta, curiosamente, foi com Brendan Fraser em O homem da Califórnia, de 1992). No final da década de 1990, tornou-se produtor e coreógrafo de cenas de luta por não conseguir trabalhos como ator. Inspirado pelo sucesso de Podres de ricos (2018), com um elenco quase inteiro de origem asiática, voltou a atuar e foi escalado pelos Daniels em Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo. Ainda assim, depois da rodagem, chegou a perder o plano de saúde oferecido pelo sindicato dos atores por não ter créditos suficientes. Agora, é um vencedor do Oscar.
Essa história correu programas de entrevistas, e Quan conquistou a todos com suas falas sinceras e emocionadas. Em seu discurso no Oscar, na presença de seu primeiro diretor, Steven Spielberg, e mais tarde de Harrison Ford, com quem contracenou em Indiana Jones, ele emocionou a todos dizendo que os sonhos se tornam, sim, realidade, e que ele é a prova do sonho americano.
A vitória de Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo sinaliza mudanças na Academia e em Hollywood. O filme não parece em nada com os típicos ganhadores do Oscar. E ainda colocou prêmios nas mãos de quem, poucos anos atrás, seria deixado de lado por sua origem ou etnia.
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