Mulan: representatividade frente às câmeras basta?

Live action inspirada na tradicional fábula chinesa, que estreia dia 4.12 no Disney+, faz uma tentativa de celebrar a diversidade, mas acaba evidenciando o problema de ainda não contarmos nossas histórias.


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A lenda da guerreira Hua Mu Lan é uma história contada através de muitas dinastias na China. A versão mais antiga de que se tem notícia é a “A Balada de Mulan”, composta por volta de 400 d.C, preservada por meio da memória oral, até finalmente ser escrita. Ou seja, tal fábula foi transmitida por gerações e gerações em torno da fogueira, do alimento e das conversas diárias. Essa imagem de uma história passada como herança de avó para mãe, de mãe para filha, me traz diversas recordações de família, quando meus avós imigrantes, chineses e japoneses, chegaram ao Brasil possuindo apenas a roupa no corpo e as memórias na cabeça. Com isso, para construir qualquer sentido de pertencimento, a comida e histórias de vida foram fundamentais para cultivar sua ancestralidade, mesmo em novo território. Saber o quanto essas trocas diárias constroem e preservam uma identidade cultural me faz pensar: quantas vozes foram necessárias para carregar o conto de uma mulher amarela e guerreira por mais de mil anos?

É difícil encontrar pessoas que não conhecem a história de Hua Mu-lan na China, em função de ser uma fábula característica do próprio folclore nacional. Talvez, por isso, todas a tentativas da “ocidentalização” dessa narrativa por estúdios americanos, desde a animação lançada em 1998, tenham causado polêmicas e divergências. Por sinal, essa primeira versão marca o final de uma era da Walt Disney Feature Animation chamada de “Renascença”, quando, em pleno anos 90, todas as “Princesas Disney” tinham menos da metade do número de falas em relação aos personagens masculinos – mesmo que alguma delas, como a própria Mulan, fossem as protagonistas. Por esse lado, seria realmente subversivo o conto sobre uma jovem que se veste de outro gênero para ir à guerra. Porém, a animação acabou sendo um fracasso de público na China e deixou evidente a desconexão cultural quando trazia à tona estereótipos e simbologias deslocadas desde o lançamento.

Mulan (1998)

Quando a versão animada de Mulan foi lançada, eu tinha apenas 7 anos. E, apesar de ter adorado, por muito tempo fugi dessa referência, pois era assustador demais ficar para sempre presa a um estereótipo. Eu negava as minhas raízes, por causa das microagressões que vivenciava por ser uma criança amarela. Então, quanto mais pudesse estar afastada desses referenciais, mais pensava que poderia ser aceita. Ao mesmo tempo, lembro da alegria do meu pai – brasileiro de ascendência chinesa – ao ver a animação! Fico pensando: o quanto gerações mais antigas precisaram abdicar de sua própria etnia ou raça para se adequar em sociedade? Assim, poder se ver, mesmo em representações falhas, era ainda sinônimo de pertencimento. No final, é impossível não reconhecer a importância da história de Mulan como parte da cultura pop, e o quanto sua existência abriu caminho para outras personagens. Porém, a sensação de estar fugindo de um estereótipo ainda é constante, principalmente quando a maioria das representações para pessoas como eu são esquemáticas, irônicas e fetichizadas. No final, poder nos ver é importante, mas o quão mais revolucionário para tempos presentes é poder contar nossas próprias histórias?

Mulan* (2020)

*Aviso de spoiler: A partir daqui haverá relatos explícitos sobre o filme e seu enredo.

Os filmes live action das princesas Disney surgem em tempos presentes como forma de atualizar a narrativa das protagonistas femininas, de maneira que elas dialoguem com um público atual de mulheres: seja com aquelas que cresceram junto das animações e desejam ver suas heroínas reinterpretadas, seja com a demanda de uma nova geração que não se inscreve mais em relações baseadas em romance e passividade. Então, nesse caldo de protagonistas localizadas numa época em que as discussões sobre equidade de gênero são constantes, e onde a China representa o segundo maior mercado de filmes no mundo, fica praticamente óbvio a encomenda de Mulan em versão cinematográfica.

Em mídias anteriores ao lançamento, a Disney citava o filme como uma “celebração da diversidade” e do “girl power”. Destacava ainda o casting com maioria de atores chineses, sendo os protagonistas Liu Yifei, Jet Li e Tzi Ma. A direção ficou sob responsabilidade de Niki Caro, sendo ela uma das quatro diretoras mulheres (junto de Ava DuVernay, Kathryn Bigelow, e Patty Jenkins) que dirigiram filmes live action com o budget acima de 100 milhões de dólares. Tanto Niki quanto os quatro principais roteiristas, Elizabeth Martin, Lauren Hynek, Rick Jaffa e Amanda Silver, são brancos. Em conjunto, buscaram reinterpretar a Balada de Mulan em um tom mais sério que a versão animada. Em entrevista para a Bustle, a diretora diz o quanto estava empenhada para “Mulan tornar-se uma heroína para meninas”. Porém, talvez o seu maior engano tenha sido aquele que também é recorrente no próprio feminismo hegemônico, em relação à narrativa e à luta de mulheres racializadas: pensar que sabem narrar nossas histórias melhor do que nós mesmas. E ainda tomar como “universal” uma identidade cultural marcada não apenas por especificidades, mas apagamentos e silenciamentos.

Posteriormente, quando Niki Cairo foi indagada sobre uma pessoa de origem chinesa ser mais adequada para direção de Mulan no cinema, ela responde: “Mas esse é um filme Disney. Com certeza é sobre a cultura chinesa, sendo imensa sua importância histórica… Mas a outra cultura em jogo é a cultura Disney”.

Ou seja, a representação dessa heroína seria feita independentemente de haver incoerências históricas, interpretações culturais deturpadas e constante Orientalismo. No final, o live action de Mulan, que estreia no dia 4 de dezembro via streaming na plataforma Disney+, é uma fantasia ocidental sobre o que significa ser uma mulher chinesa desafiando os padrões de sua sociedade. Logo, o filme sofreu um grande backlash mundial, pois além dessas falhas narrativas que não conectaram o público com a história, seu lançamento foi atropelado pela pandemia de Covid-19 e por polêmicas políticas envolvendo a atriz principal, defendendo a violência policial contra os manifestantes em Hong Kong, além de parte das filmagens terem ocorrido em províncias que reprimem a etnia minoritária muçulmana Uighur.

Agora, sobre o coração narrativo dessa fábula: ser uma jovem que se veste de homem para ir ao campo de batalha. Com certeza, a perspectiva do realismo trazida pela direção fez maior sentido na versão cinematográfica, afinal, seria insensível cenas de cantoria e riso em meio à destruição que uma guerra pode trazer. Essa “tensão” é muito bem interpretada por Liu Yifei, mas a falta de um arco narrativo que carrega maiores tonalidades de personalidade, faz com que acompanhar suas cenas sejam por vezes monótonas, atravessadas por outras fantasiosas e sem sentido (como soltar suas longas madeixas para lutar). Ou seja, as discussões de gênero, tão produtivas de serem feitas no momento atual, não são feitas. A personagem consegue ser simultaneamente submissa e corajosa, porém, tem seus atos motivados pela dedicação aos homens à sua volta – seja esse o patriarca da família ou o imperador. Outro ponto: apagamento da avó, que existia na versão animada de 98, e de todas as demais ancestrais é um toque violento de realidade no qual fica claro o que aconteceu realmente com essas mulheres através do tempo.


Outra questão que considero um erro de percurso terrível foi não ter chamado a Lexie Liu, que inclusive tem uma música chamada “Mulan”, para a trilha sonora.

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Ainda há o reforço de opressões específicas, como o fato de, para ser aceita no exército, Mulan mostra seu valor apelando para demonstrações que poderiam ser chamadas de masculinidade tóxica. Tudo isso corrobora como o arquétipo de “ela não é como todas as outras”, especialmente quando apresentada em relação à sua ingênua irmã menor (que continua perseguindo um marido, mesmo após Mulan retornar ao seu vilarejo como heroína), a casamenteira feroz e mãe submissa (que continua repercutindo machismo e mantendo novas gerações em estruturas conservadoras), além de, claro, a vilã ambiciosa (que perde sua vida após entender como era tarde demais para si mesma). Na intenção de representar uma mulher inabalável e única, houve a promoção de imensa competitividade feminina e falta de empatia com suas semelhantes, demonstrando que “ser Mulan” – alguém forte, obstinada e livre –, talvez não seja pra todas nós.

Mas, para falar realmente sobre gênero, precisarei voltar mais uma vez numa narrativa pessoal, pois me lembro de que ser uma criança amarela era complicado, mas ser uma menina amarela foi um desafio maior ainda. Além das violências de gênero, a contínua imposição de feminilidade e “lugar de mulher” são opressoras para identidades que transbordam os sistemas binários postos. Eu nunca quis ter cabelo comprido ou vestir roupas rodadas, mas isso era obrigatório como forma de se estar no mundo. Então, é inegável como houve um sentimento de inspiração ao ver essa personagem que cambia entre o feminino e o masculino. Mas seria Mulan um ícone LGBT? Acredito que ela está mais para uma potente aliada na representação das guerreiras mulheres e primeiras crossdressers na história. Pode até, quem sabe, ter inspirado a feminista revolucionária e escritora Qiu Jin (1875 – 1907). Uma grande voz dos direitos da mulher na China, Qiu Jin mudou-se para o Japão em 1903 e passou a se vestir apenas com ternos nesse período, sendo até hoje reconhecida como uma das primeiras crossdressers na história da Ásia.

imagem PB de Qiu Jin
Qiu Jin, por volta de 1903–1910.Reprodução

Cada vez mais a cultura pop carrega uma potência de folclore transnacional, quando o mero entretenimento pode ser arquivo histórico, passado entre gerações. A imagem, aquela que captura, relata e preserva, acaba sendo a representação de quem nós somos como sociedade e como indivíduos. O manuseio de todas essas narrativas estéticas exige consideração e generosidade para que não seja repercutida a manutenção de um imaginário social ainda fomentado sobre apagamento e intolerância. Cabe lembrar como a história preservada através da memória oral é ainda um território de disputa, quando revela o arquivamento contemporâneo de identidades até então silenciadas pelo projeto de dominação que forma nossas sociedades. Fato é: mulheres e pessoas racializadas como heróis, protagonistas ou líderes de suas próprias narrativas não faltam apenas na cultura pop, pois sua ausência neste local apenas reflete a maneira que aprendemos sobre nossa própria história como humanidade.

Diferente de quando era pequena, hoje entendo como cultivar essas raízes na valorização de uma ancestralidade asiática faz parte de minha própria identidade. Para isso, posso também me reconhecer brasileira, feminista, LGBTQIAP+ e muito mais. No final, ampliar o acesso à informação e promover representação são fundamentais para que mais pessoas tenham consciência de que não há papéis e lugares restritos em relação à gênero, raça e etnia em sociedade. Se os filmes são os contos no qual conversaremos em volta da fogueira, do alimento, do cotidiano, quais as histórias queremos continuar contando? E principalmente, quem poderá narrar e protagonizar cada uma delas?

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