Frans Krajcberg é tema de biografia e de mostra no Masp

Precursor em unir arte e ativismo ambiental, artista tem sua obra revisitada.


Frans Krajcberg Sem titulo Sombra 1974. Colecao particular
Sem título (Sombra), 1974, obra de Frans Krajcberg Foto: Cortesia Almeida & Dale/ Sergio Guerini



“Furioso, Frans levantava os braços, desacorçoado com o que via. Alcancei-o. Ele tomou a máquina fotográfica de minhas mãos, como se fosse uma arma poderosa, e, pisando firme no chão quente e fumegante, invadiu o cenário de guerra, a sua guerra, a guerra permanente em que transformara sua vida. Agora era a nossa guerra, não havia retorno. Era a guerra insana que se travava contra aqueles que queriam derrubar a floresta, abrir alas à tal da ‘civilização’. Frans vociferava em seu português atabalhoado, economizando artigos e preposições: ‘Brasil, Brasil, Brasil, país nome de árvore, deveria chamar Queimada!’.”

O trecho acima, que descreve uma passagem de 1985, vivida por Frans Krajcberg (1921-2017) e o ativista socioambiental João Meirelles no interior do Brasil, está nas páginas da recém-lançada biografia sobre o artista, Frans Krajcberg – A Natureza como Cultura (Edusp e Edições Sesc). Nela, Meirelles percorre a vida repleta de reviravoltas do escultor, pintor e fotógrafo, com quem conviveu. É um livro com mais de 300 páginas, que, entre hiatos, levou 40 anos para chegar às estantes.

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Frans Krajcberg A flor do mangue circa 1970. IPAC

A obra A Flor do Mangue, criada em 1970, aproximadamente, por Krajcberg Foto: IPAC

A obra de mais de seis décadas do artista ainda ocupa até outubro o Edifício Lina Bo Bardi, do Masp (São Paulo), com a mostra Frans Krajcberg: Reencontrar a árvore. A exibição é a primeira do
museu paulista sobre o escultor, em um ano em que a instituição dedica a sua programação à intersecção entre o meio ambiente e as práticas artísticas.

“Ele foi precursor em muitos sentidos”, conta à ELLE Decoration Brasil Laura Cosendey, que assina a curadoria da mostra ao lado de Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp. “Não apenas em termos do que defendia, mas também em como materializou isso. É uma obra que converge para a defesa ambiental pela qual ele tanto lutava e que de fato vivia em sua vida pessoal.”

Reencontrar a árvore reúne 50 trabalhos do artista, abrangendo as principais décadas de sua produção, que ganhou forma no Brasil. Krajcberg nasceu em uma comunidade judaica na Polônia.
Quando tinha 18 anos, as tropas nazistas invadiram o país, deflagrando a Segunda Guerra Mundial. Meirelles chama a atenção para o “esforço descomunal” do polonês em sobreviver entre os 18 e 24 anos. Na época um garoto franzino, ele foi enviado pelos alemães a campos de trabalhos forçados, conseguiu escapar e lutou pelo Exército Popular da Polônia, ligado à União Soviética. Com a exceção de uma irmã, todos os seus familiares próximos foram mortos em um campo de concentração. Em 1948, emigrou para o Brasil, onde foi recebido por um tio.

Depoimento Krajcberg gravando 1986 Nova Vicosa Foto Joao Meirelles

Krajcberg, em Nova Viçosa (BA), em 1986. O artista passou a viver nesse sítio a partir dos anos 70 Foto: João Meirelles

Aqui, Krajcberg passou a esboçar sua carreira como artista. Meirelles conta que se surpreendeu na pesquisa para o livro em como, em menos de oito anos, ele participou de dezenas de exposições e ganhou o prêmio de melhor pintor nacional da Bienal de São Paulo de 1957, exposição em que havia trabalhado como montador anteriormente. Em meio à trajetória cinematográfica de um sobrevivente do holocausto, o autor lidou com um desafio: informações fornecidas pelo biografado que não se provaram ser verdadeiras em checagens posteriores. “Para quem sofreu enormemente a perda da maior parte da família, enfrentou os anos difíceis de guerra como escravo, um fugitivo permanente, e viveu as incertezas da migração para o desconhecido, aceito como perfeitamente compreensível a necessidade de uma história que o acolhesse e o preservasse”, conta Mirelles. Cosendey completa: “Todo artista cria sua própria história. Mas acho que, no caso de sobreviventes de guerra, isso também é uma forma de lidar com o trauma”.

“Todo artista cria sua própria história. Mas acho que, no caso de sobreviventes de guerra, isso também é uma forma de lidar com o trauma” Laura Cosendey

Foi também no Brasil que Krajcberg teve seus primeiros contatos significativos com a natureza. “Frans era obcecado pela observação da Natureza, com N maiúsculo. No fim dos anos 1950, fez obras revolucionárias em papel japonês, aplicando-o sobre as pedras em Ibiza, Espanha. Na década seguinte, foi a vez de verter para o quadro pedras e cores de Itabirito (MG), onde chegou a morar em uma caverna, de onde extraía pigmentos naturais para as obras. Foi com Zanine Caldas (1919-2001, arquiteto) para o sul da Bahia em 1972 e nunca mais deixou Nova Viçosa, o sítio onde ambos moraram. Krajcberg começou a visitar a Amazônia na década de 1970, levado por Sepp Baendereck (1920-1988, artista plástico e publicitário iugoslavo radicado no Brasil)”, lista Meirelles. “Mas foi na
exposição do Centre George Pompidou, em 1975, em Paris, que Frans despertou para a questão, compelido a explicar para as audiências a destruição da Amazônia promovida pela ditadura militar”, lembra, marcando um momento-chave.

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Krajcberg queimada Juruena 1984 Foto Sepp Baendereck

Krajcberg em meio à queimada em Juruena (MT), em 1984 Foto: Sepp Baendereck

Cosendey lembra que, na década de 1980, Krajcberg passou a ficar realmente impactado pela devastação das queimadas e do extrativismo. “O trabalho dele começou a ganhar cada vez mais esse
caráter de denúncia, trazendo os troncos queimados, as fotografias que ele fazia de queimadas”, lembra a curadora. “No final dos anos 1990, ele se dizia um ambientalista, e não um artista. E, de fato, passou a vociferar, com seus gestos largos, a sua indisciplinada raiva, contra a destruição da natureza, tornando-se uma figurinha carimbada em eventos ambientalistas mundo afora”, completa Meirelles. “Frans era um provocador permanente. Nunca baixava a guarda, sempre obrigando a nos
posicionarmos perante tudo e todos.” O autor, filho de um fazendeiro e de um colonizador da Amazônia, credita ao artista a sua guinada em direção ao ativismo socioambiental.

“No final dos anos 1990, ele (Krajcberg) se dizia um ambientalista, e não um artista” João Meirelles

Para Walter Salles, que dirigiu o documentário Krajcberg: o Poeta dos Vestígios (1987), não havia distância entre o que o artista pensava e dizia e o modo como agia, como escreveu para a Folha de S.Paulo, em 2017, ano da morte do artista, aos 96 anos. “Ele foi a maior influência que tive. Sem
ele, não haveria Socorro Nobre ou Central do Brasil”, escreveu no mesmo texto. O curta documental, de 1996, traz a história de uma detenta em Salvador que se identifica com a trajetória de Krajcberg e escreve uma carta ao artista, além do posterior encontro entre os dois. Maria do Socorro, que escrevia cartas na prisão para outras encarceradas, inspirou a protagonista de Central do Brasil, dirigido por Salles e lançado dois anos depois.

Cosendey enfatiza a atualidade da obra de Krajcberg. “Ele já reforçava a importância de a gente olhar para isso (a crise ambiental) antes que se tornasse ir reversível. E estamos falando de uma obra
de quase 40 anos atrás. Falava muito do grito: ‘A natureza não pode gritar, mas a minha arte pode’.” Em tristes tempos de urgência climática, Krajcberg se mostra mais atual do que nunca.

Capa Frans Krajcberg

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