A pele do futuro

Quando a representação sci-fi dos dias que estão por vir não condiz com o amanhã, como a moda pode colaborar para construir uma imagem realmente inovadora?

A gente já imaginou de um tudo para o futuro. Anos atrás, a imagem que criamos para 2020 estava mais ligada a cidades suspensas nas alturas, carros voadores, teletransportes, viagens espaciais e robôs para atender toda e qualquer necessidade. É verdade que algumas dessas ideias já fazem parte da nossa realidade: o primeiro voo privado ao espaço aconteceu há pouco tempo; ainda não temos automóveis voadores, mas temos drones por toda a parte; e muitas atividades humanas foram substituídas por máquinas dotadas de inteligência artificial. Nem tudo se desenrolou de maneira otimista: os bots estão aí para derrubar aquela ideia de que a internet poderia salvar as democracias; a automação e a AI (artificial intelligence) são um dos principais causadores de desemprego em massa; e os drones se tornaram ferramentas militares e de vigilância exacerbada.

Mas o que a moda tem a ver com isso? Tem tudo a ver. A moda é parte essencial da imagem de futuro criada e difundida pela indústria do entretenimento desde a metade do século 20. Tudo começa nos anos 1960, junto com o youthquake, a revolução sexual e a corrida espacial. O mundo estava virando de ponta-cabeça, principalmente para quem o olhava do espaço e, a partir de 1969, diretamente da Lua.

 

À esquerda, looks de André Courrèges. À direita, look de Paco Rabanne.

À esquerda, looks de André Courrèges. À direita, look de Paco Rabanne. Foto: Getty Images

 

Embalados pelas promessas de renovação, estilistas como André Courrèges e Paco Rabanne criaram um novo código e uma nova maneira de se vestir. Inspirados na liberação sexual feminina e também nos foguetes e satélites que começaram a dominar o noticiário, apresentaram minivestidos com cortes geométricos e tecidos reluzentes, hoje símbolos da moda space age.O fenômeno chacoalhou as estruturas humanas ao ponto de todo o meio cultural começar a refletir sobre o assunto. E muitas vezes para além da estética. Duas produções icônicas daquela época, o filme Barbarella (1968) e a série de TV Jornada nas Estrelas (1966–1969) imaginam uma sociedade bastante evoluída. No primeiro, a astronauta interpretada por Jane Fonda (com figurino de Paco Rabanne) vive em um planeta Terra em que não existem mais guerras. Já na famosa série espacial, divisões de classe e raça são coisas do passado.

 

A atriz Jane Fonda no papel de Barbarella.

A atriz Jane Fonda no papel de Barbarella. Foto: Getty Images

 

Foi também nos anos 1960 que surgiram as primeiras produções afrofuturistas. No fronte musical, o jazzista Sun Ra combinava referências ancestrais da cultura egípcia com uma peculiar obsessão pela vida extraterrestre no próprio visual e nas composições. Na literatura, Octavia Butler ficou conhecida como a primeira autora negra a ganhar notoriedade na ficção científica. Em Kindred, livro de 1979, ela narra a história de Dana, uma mulher negra dos anos 1970 enviada a uma fazenda escravocrata do século 19.

Cunhado pela primeira vez em 1994 pelo teórico e crítico Mark Dery no artigo “Black to the Future”, o termo afrofuturista diz respeito à produção cultural referente a um futuro especulativo a partir da perspectiva negra, tanto africana quanto diaspórica. Em outras palavras, é uma ideia de futuro afrocentrado, já que boa parte das obras sci-fi segue padrão eurocêntrico.

 

Sun Ra.

Sun Ra. Foto: Getty Images

 

É um conceito bastante abrangente, engloba música, cinema, moda, arte e literatura. Exemplos recentes são o longa metragem Pantera Negra (2018), os clipes e os álbuns de Janelle Monáe e Erykah Badu, o filme brasileiro Branco Sai, Preto Fica (2014) e o livro de Fábio Kabral O Caçador Cibernético Da Rua 13.

Mas nem sempre o futuro foi pintado de maneira positivamente ideal. O cinema desenhou cenários bastante distópicos sobre dias por vir. Pense em O Quinto Elemento, Blade Runner, Mad Max, Tron, Matrix e por aí vai. Ainda assim, a imagem continua aquela de um mundo supertecnológico e avançado. Na moda, a ideia de um futuro sci-fi continua a ser desenvolvida desde a década de 1920. Nos anos 1980 e 1990, Thierry Mugler e Jean Paul Gaultier apresentaram looks e coleções emblemáticas nesse sentido. Após a virada do milênio, a presença da internet mediando quase tudo em nossas vidas não foi suficiente para uma mudança de visão. Para o verão 2007 da Balenciaga, Nicolas Ghesquière apresentou leggings metálicas, numa versão high-fashion do androide C-3PO, de Guerra nas Estrelas, clássico do cinema de 1977.

Até hoje, imagens de tecidos e detalhes metalizados, silhuetas geométricas e qualquer referência mecânica são diretamente associado a uma ideia futurista.

Futuro no pretérito

Para entender essa estagnação imagética, precisamos voltar no tempo. Bem antes da cultura pop sedimentar o universo estético em torno do tema, em 1909, o artista Filippo Tommaso Marinetti publicou um artigo no jornal parisiense Le Figaro. Era o Manifesto Futurista enaltecendo os avanços tecnológicos da época como potencializador para o rompimento com práticas e tradições do passado. Pregava-se ali a destruição de bibliotecas e museus e glorificava-se a virilidade, o patriotismo e a guerra. Marinetti acabou se tornando fascista e o Futurismo, uma das escolas artísticas mais machistas da história.

Mas o que importa aqui é notar como, diferentemente de outros movimentos artísticos da época, o Futurismo não se limitou à estética. Ele abordava todo um estilo de vida, comportamento e ideologia político-social. Justamente por isso, a moda teve papel de destaque dentro dessa doutrina. O foco no progresso mecânico e na liberdade de movimento pediam a revisão das vestimentas da época.

 

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Vestido criado pela artista Sonia Delaunay. Foto: Reprodução

 

Uma das primeiras propostas nesse sentido veio do pintor Giacomo Balla, em 1914. Eram peças de silhueta reta, com estampas e recortes coloridos e assimétricos. Os vestidos “Simultâneos”, da pintora Sonia Delaunay são outro exemplo. Feitos de vários retalhos tecidos em cortes e tamanhos diferentes, são versões vestíveis de suas obras.

Na Rússia, após a Revolução de 1917, o Construtivismo Russo também adotou alguns dos códigos futuristas no vestir, porém associados a uma cultura universal para o proletariado. Entre os principais nomes do movimento estão as artistas Varvara Stepanova e Lyubov Popova.

Corta para 2020. Enxergar futuro ou progresso tecnológico na moda de hoje requer esforço dobrado. Nem sempre o visual dá conta do recado, e são os processos de produção e criação que concentram boa parte das novidades.

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Looks da Away To Mars, marca com processo criativo colaborativo. Foto: Dilvugação

 

De um lado, existem as questões essencialmente técnicas: já temos tecidos que nos fornecem melhor adaptabilidade ou isolamento térmico, que são mais confortáveis e que não amassam, secam rapidamente, são impermeáveis e, agora, possuem até propriedades antibactericidas e antivirais, ajudando no combate e na prevenção da Covid-19.

Do outro, existem as tecnologias que se conectam a ideias e práticas alinhadas a maneiras mais responsáveis de ver e viver o mundo. Materiais biodegradáveis já são uma realidade. Processos de reciclagem e reaproveitamento de peças e tecidos antigos também. A inteligência artificial e o design 3D possibilitam produções mais acertadas com volume de resíduos reduzidos ou até inexistentes. Bem como processos de criação on demand e com colaboração direta dos consumidores. Do lado do consumidor, as realidades aumentada e virtual e o escaneamento 3D permitem uma experiência elevada em momentos de distanciamento social.

O resultado final – no caso, a imagem – tem pouco a ver com o que foi nos apresentado como ideia de futuro. Nesse sentido, o futurismo na moda do século 21 está mais próximo do viés ideológico da escola artística do que da produção imagética espacial que se inicia a partir da década de 1960.

 

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Looks de náilon prensado da Moncler feitos em parceria com o estilista Craig Green. Foto: Dilvugação

 

O futurismo surgiu no começo do século 20. Naquela época qualquer proposta estética imprimia o futuro como radical. Em 2020, a sobrecarga de imagens de nossas vidas faz com que nada tenha tal impacto. E com um mundo tão amargurado, fica difícil enxergar evolução e progresso. É mais cômodo continuar sonhando com um futuro ideal do que reconhecer e encarar as falhas que nos impedem de chegar lá. Em outras palavras, repensar nossa produção imagética de cabo a rabo pode ser o primeiro passo para desconstruir um sonho futuro para construir uma nova realidade.

 

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