Geração C

Contato é o primeiro tema da ELLE View. Por que mesmo?

2020 está sendo um ano estranho. Alguns dizem que é a grande sirene de virada dessa geração, desse tempo, o que pode significar coisas tão diferentes. O primeiro ano de uma nova era, o último para milhares de pessoas dizimadas pela Covid-19, pela fome, pelo descaso e por tantos outros nomes da morte. Até ontem mesmo estávamos obcecados com os millennials, passamos anos mapeando suas cartelas de cores, gostos e dilemas. Até ontem comemorávamos nossas campanhas de diversidade feito rainhas da inclusão, tão apaixonados por nossos espelhos. A casa da Barbie Good Vibes caiu, e não tem nova normalidade que dê conta do que está rolando. O que fazer?

Minha missão aqui é investigar o tema da edição. E o tema da edição é uma tentativa de abrir caminho pra pensar essa questão do que pode ser feito. Por isso pensamos em contato. Entrar em contato com a realidade parecia um bom primeiro passo. Lembra aquela música da Rita Lee: “acenderam as luzes, cruzes!”. De repente o rosa millennial revelou seu tom superdepressivo; a diversidade midiática mostrou o quanto tinha de hype de ocasião; a inclusão caridosa saiu de camiseta supremacista suave. “Que flagra! Que flagra! Que flagra!” Ground Control to Major Tom: socorro!

A Covid é uma doença cruel que bota lente de aumento sobre outras situações cruéis e que também alimenta políticas da crueldade. Contato: com a realidade brasileira. A concentração de renda brutal condiz com os que se livram do vírus, rebatizado pelas redes de micróbio. A desigualdade que bota uma parcela enorme da população na pobreza é a mesma que determina quem morre mais. O racismo bomba nas estatísticas dos enterros. No mundo inteiro marcas se mobilizam para ajudar as vítimas. Outras se aproveitam. No meio disso, pessoas tentam sair do papel de consumidores para tomar pé como, enfim, pessoas, pessoas que eventualmente compram uma série de coisas.

Lojas, bares, salões reabrem. Até os desfiles retornam, embora sem plateia. A fila da bolsa deluxe é maior que a fila do pão; o chopinho no Leblon é mais sagrado que a vida de muitos. Entregadores de delivery passam fome; indígenas vivem um novo período de aniquilamento; as hashtags falam tanto de genocídio quanto de aplicativos que trocam a cara da pessoa. A cabeça quase explode, melhor pausar.

Abrir os olhos pra dentro. Apagaram as luzes, cruzes. Hora de entrar em contato com a gente mesmo. Fácil não é, mas necessário. Nas redes, muitos desabafos. As lives sobre saúde mental chegam a cansar de tantas regras e fórmulas. As pessoas se apoiam como podem; surgem diferentes redes profissionais; as redes de amizade tentam se reformular. Contato: contatinho, contatão também, por que não, mesmo que seja pra um zap descompromissado, sexo virtual, “a gente faz amor por telepatia”, vai saber.

O corpo sente tudo, se transforma, às vezes muda sem saber de nada. Mas não quero falar disso sozinha, certeza de que preciso de ajuda, vou checar as fontes pesadas. Não querer falar sozinho: contato.

Nessas horas a gente liga pra quem confia. Fui falar com Paulo Beer, psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social pela USP. O cara tem um trabalho incrível, inclusive com os processos do acesso da população à psicanálise, sabia que teria algo a me dizer. Fiz uma pergunta confusa, mas ele foi generoso nas considerações.

Começou falando que a relação com o corpo e a presença é singular. Sair de casa, por exemplo, pode ser fonte de angústia tanto quanto não sair de casa, pesando aí muitas variáveis. Quer dizer, cada um pode ter uma experiência muito particular com a presença e a distância tendo o corpo na jogada. E que no contexto de uma análise, assim como na pandemia, estamos às voltas com algo que foi perdido. Uma pessoa, uma relação, um mundo. E que existe aí uma “reificação do que foi perdido”, como se isso pudesse ser reencontrado e como se de fato essa recuperação fosse a coisa mais importante do universo, que isso traria a resposta definitiva para as nossas aflições. Pensei que talvez por isso se insista tanto nesse papo de restaurar a “normalidade”.

Paulo acende uma luz falando de como a gente quer voltar pra um mundo que na real nunca existiu. Fala também da viagem que é dizer que depois da pandemia seremos necessariamente mais amorosos e melhores. Ele diz que tudo isso é querer evitar o conflito. Conflito que a Covid evidencia e também modifica, mas que não veio com ela, que é constitutivo de nossa própria existência. A gente é conflito, não pasmaceira (isso eu que disse inspirada nele, espero que não pegue mal).

Mas fiquei bolada mesmo com outra coisa que ele falou. Sobre os encontros. Encontro: contato. Um negócio muito bonito mesmo.

Paulo falou que o isolamento produz não só a redução de contatos com as pessoas, mas a “diminuição de encontros surpreendentes”. Aquele olhar que dá o recado, essas coisas. E pensei que mesmo nos bares cheios de almas vazias, como diz Criolo, isso também anda diminuído. Mas aí ele veio com uma que chega a dar esperança mesmo para essa pergunta incômoda sobre o que, afinal, dá pra fazer.

Ele diz assim: “precisamos inventar formas de reinventar o acaso”. Achei uma ideia cheia de vida, cheia de possibilidades. O acaso de um encontro: contato. Como seria esse acaso reinventado?

O que se conecta a uma outra questão. Conexão: contato. A questão de não termos respostas. Temos muitas perguntas e muita pressa. A pressa que, como pontua o Paulo, é pressa de evitar conflito.

Nisso de não ter respostas fazemos muita coisa ruim. Inclusive fingir que o outro não é mais “matável” que nós. Dizemos que todas as vidas importam e agimos para manter um sistema racista. Dizemos que o motoboy é essencial e deixamos que ele seja tratado como cidadão de segunda classe, sem direito a nada. Só que tem cada vez mais gente menos disposta a apagar esse conflito, a silenciar essas vozes. Mais gente querendo gritar junto.

Ligo para uma amiga, Camila Kfouri, também psicanalista, DJ, ativista dos direitos humanos, envolvida nos movimentos sociais, uma mulher que tá na luta. Nesse dia estou mais calma. Falamos dos fluxos que ainda circulam mesmo pra quem está isolado. Cartas, por exemplo, que nós duas andamos escrevendo. Cartas que gente como Elza Soares e Jup do Bairro escreveram e leram na cápsula do tempo desta edição. Mas também da troca de bolos, de rolos, de nudes. Tá tudo por aí: contato.

Camila também tem ouvido muito sobre horizontes roubados. Que pode ser um casamento adiado, uma viagem que não foi ou um familiar que morreu de Covid, o desemprego, a falta de qualquer estrutura social, a seca de perspectivas, pode ser muita coisa. Como analista diz que também está fazendo muito trabalho terapêutico no sentido mais prático da coisa, de aconselhar sobre riscos e sintomas do corona, por exemplo. Em um país que nega a Ciência e os direitos e faz das fake news moeda de opressão, informação de qualidade também é cuidado. “Estão tirando tudo na base da porrada”, ela diz, muito precisa. Violência literal e simbólica: contato.

A gente anda até sonhando mais com o espaço, pirando nos novos planetas que podem abrigar vida. Tem gente já querendo garantir terreno nesse céu sem Paraíso, na base do cifrão. Acompanho pelo Instagram a viagem dos integrantes da Estação Espacial Internacional, imagino como deve ser olhar tudo lá de cima, se eles acostumam, se choram quando olham pro planeta, que tipo de sonhos têm quando vão dormir, se anotam tudo num diário. Contato, contato, contato.

Mas penso que não adianta. O conflito, se tentamos fugir de foguete, embarca junto feito Alien, o oitavo passageiro. Falando em ET, vemos uma nova piração com o desejo de abdução, muitas notícias recentes sobre alienígenas, todo um Arquivo X a céu aberto. Na nave que nos puxa pra cima junto com as vacas, navios, pés de meia, bom senso e outras coisas misteriosamente desaparecidas, de brinde vai o conflito que nos constitui. Não tem jeito, gente.

O que fazer? A resposta é que não tem resposta pronta. A resposta é sonhar outro mundo. A resposta é rejeitar a solução genocida de dividir o mundo entre mais ou menos matáveis. A resposta é criar formas de viver o amor. A resposta é enfrentar o conflito sem querer resgatar um mundo que existiu e era péssimo, sem chamar de volta um que jamais houve.

Já que não tem resposta pra pensar um novo projeto geracional, eu chuto a letra C só pra nomear esse início de arquivo. Faz parte o choro, mas é C de contato e de seu irmão gêmeo, o conflito. Coragem, gente, coragem.