Não é feitiçaria, é tecnologia!

Não se engane, já existem robôs ajudando marcas de beleza a criarem produtos hiperpersonalizados para você. Em um futuro não muito distante, eles devem invadir a sua prateleira de vez!

Eu faço parte de uma geração que cresceu vendo a tecnologia ganhar cada vez mais espaço em nossas vidas com o passar dos anos. Por muito tempo, minha relação com esses avanços se dava de maneira muito natural, principalmente por ter sido apresentado tão cedo a eles. Pouco tempo depois do lançamento de uma nova rede social, por exemplo, eu já conseguia me virar bem dentro dela. No entanto, já aos 26 anos, estou começando a achar que perdi o bonde… Para se ter uma noção, eu não fazia ideia de que a inteligência artificial estava tão presente na minha vida. “Sabe quando você erra o caminho no Waze, ele oferece uma rota alternativa? Quem faz isso é uma IA. Quando você está escrevendo um e-mail no Gmail e, de repente, ele te ajuda a terminar uma frase: a mesma coisa”, exemplifica o professor, pesquisador e cientista-chefe do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, Ronaldo Lemos. “E, daqui para frente, isso só vai aumentar.” Portanto, esqueça aquela imagem de ciborgue de filmes como
O Exterminador do Futuro (1984). Os robôs da vez são máquinas sutis capazes de analisar dados e, a partir disso, gerar soluções que encurtam caminhos, agilizam processos e, no melhor dos casos, possibilitam situações de personalização extremamente refinadas. No mercado de beleza, essa ferramenta já está sendo largamente utilizada por diferentes empresas e, ao que tudo indica, pode tornar-se peça-chave para o desenho do futuro desse setor.

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Rodrigo Scotti é CEO da
Nama, uma empresa brasileira de inteligência artificial. Entre seus clientes estão gigantes como Unilever, Americanas e o Grupo Pão de Açúcar. Sobre as possibilidades da IA dentro no universo da maquiagem e dos cuidados com a pele e cabelo, ele acredita que o seu maior benefício esteja no auxílio às marcas na hora de desenvolver seus produtos: “De modo geral, por meio de uma análise do histórico do consumidor de determinada marca, é possível entender quais são os fatores que funcionam melhor para ele, que mais o interessam”.

Em linhas gerais, e por ora, são três as frentes de atuação mais diretas da IA em beleza: pesquisa de desenvolvimento de produto por meio de análise de dados, refinamento da experiência de consumo e, sim, quase que literalmente, robozinhos de beauté (como escovas de cabelo que medem sua saúde capilar e limpadores faciais supertecnológicos). “Vale lembrar, no entanto, que o eixo dessa relação da IA com o mercado de beleza ainda é a hiperpersonalização. O superdirecionamento de produtos é uma das características mais fortes do capitalismo atualmente. Assim, nada mais lógico de que seja por esse viés que essas cognições se fazem úteis”, argumenta Felipe Teobaldo, estrategista de Cultura Digital e futurólogo.

Parece complicado, mas não é. Por exemplo,
a máscara para cílios 5-em-1 Genius, da Avon foi desenvolvida com a ajuda de uma inteligência artificial da holandesa MediaMonks que levou em conta milhares comentários das clientes da marca em suas redes sociais e descobriu cinco demandas específicas apontadas pela maioria. A start-up norte-americana Proven Skincare, fundada por Ming Zhao, por sua vez, oferece produtos personalizados para cada cliente. Você responde um questionário de três minutos e, depois disso, uma IA seleciona os melhores ativos e seus veículos adjacentes para o seu tipo de pele, o ambiente em que você vive e sua rotina de trabalho. Por fim, a FOREO é a inventora do robozinho-esponja LUNA fofo que, através de seu sensores banhados a ouro, mede o nível de hidratação da pele e sugere movimentos e massagens de limpeza específicas para quem o utiliza.

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Quem segura as chaves do futuro?

“Hoje, temos um time de tecnologia que trabalha para criar inovações para o mercado de cuidados pessoais. Toda a nossa inteligência, desenvolvimento de produtos e fabricação são internos da FOREO”, revela Bianca Tavares, que trabalha como gerente-geral da marca no Brasil. A multinacional L’Oréal é também uma das entusiastas da intersecção entre inteligência artificial e beleza e, por isso, tem se dedicado arduamente para manter-se na dianteira dessas iniciativas. Assim como a FOREO, a L’Oréal tem um time “em casa” para suprir essa demanda. A ambição da marca é tornar-se a número 1 no mundo em Beauty Tech. E, em 2021, uma novidade avassaladora com sua assinatura chega ao mercado internacional. Trata-se do Perso, um dispositivo com 16,5 centímetros de altura (pesando pouco mais de 1 quilo) que oferece um serviço 3-em-1: ele analisa a sua pele e o ambiente em que você está para, dentro do próprio aparelho, criar fórmulas de skincare, base e batom líquido de acordo com as suas necessidades.


Vídeo de introdução do Perso, dispositivo de IA da L’Oréal que cria fórmulas de maquiagem e skincare específica para suas necessidades.

Mas, e quem não tem um laboratório ultratecnológico como o da L’Oréal ou o da FOREO? Estão fora da jogada? “Pelo contrário, existe uma série de ferramentas que já entregam códigos de maneira razoavelmente acessível para empresas menores. Existem, até mesmo, IAs de ‘open-source’ [em outras palavras: livres, abertas e gratuitas]”, lembra Teobaldo. Lemos, então, pontua que a IA sempre funciona melhor quando você tem a sua disposição um extenso banco de dados. Sem isso, talvez seja melhor emprestar uma ferramenta já treinada por terceiros. “O custo de começar a desenvolver alguma cognição do zero é muito alto. Mas, emprestar de alguém que já fez, nem tanto. E isso está se popularizando progressivamente.”

Aqui no Brasil, a TheraSkin, especializada em dermocosméticos, fechou uma parceria com a IBM para desenvolver o seu novo sérum, o Euryale C. “Com a ajuda da IA, conseguimos mapear e correlacionar uma enorme quantidade de informação (artigos e literatura científica) em um tempo muito reduzido. Assim, ficou mais fácil para nossos pesquisadores descobrirem soluções e proporem novas abordagens de tratamento para diferentes questões com maior eficácia e segurança”, conta o head de marketing da marca Carlos Regis. O resultado é uma fórmula inovadora na estabilização da vitamina C que, reconhecidamente, é instável e, dependendo de seu veículo, pode acabar perdendo o efeito com o tempo.

Problemas no paraíso

Uma vez que a inteligência artificial tem se estabelecido como uma realidade quase incontornável, quais são os perigos que ela representa para a sociedade? De modo geral, são duas as preocupações mais alarmantes e ambas podem ter reflexos na combinação da IA com o mercado de beleza. A primeira refere-se à diminuição ou eliminação de profissionais e empresas que já foram essenciais em outras épocas para a distribuição de um produto, como cooperativas de táxi e locadoras de filmes. Teobaldo acredita que, mesmo antes do “boom” da inteligência artificial, o autosserviço já vinha se consolidando no setor e, agora, isso tende a intensificar-se. “Quando a gente consome tutoriais de maquiagem no YouTube, ou faz uma compra online, ou, até mesmo, assina um serviço que entrega um box de produto de tempos em tempos na nossa casa, estamos entrando nesse terreno do autosserviço de beleza.”

De acordo com Teobaldo, é provável que esse impacto sobre o varejo aconteça de forma muito veloz. Principalmente porque, entre a década de 2010 e 2020, 50% do Brasil entrou na Internet, e boa parte dessas pessoas pertence à classe C. Isso implica que, hoje, temos uma maturidade no consumo digital muito diferente. O cliente está cada vez mais exigente diante desse tipo de serviço. “Assim, considerando a pandemia e a situação de isolamento social – que, em certa medida, aceleraram a entrada de muitas empresas no mundo digital –, talvez alguns dos desempregos que ocorreram durante a quarentena já sejam sintomas desse novo panorama”, sugere. Lemos concorda com ele no que diz respeito à inevitável popularização da IA e à substituição do trabalho humano por máquinas. No entanto, salva a pele dos maquiadores e maquiadoras: “Qualquer trabalho que envolva o contato direto entre humanos dificilmente vai ser substituído por IA. Agora, análises feitas por humanos podem, sim, ser substituídas. O controle do melanoma é um exemplo. Um sistema de inteligência artificial pode muito bem comparar uma mancha na sua pele com um banco de dados e te explicar qual chance daquilo se desenvolver ou não como um melanoma. É um processo que pode ser auxiliado por IA. Contudo, acho muito difícil haver uma substituição absoluta, principalmente de profissões que dependem dessa troca ao vivo.”

“Uma pessoa racista tem um impacto, mas um software racista pode ter um impacto muito maior.” – Felipe Teobaldo

O segundo grande problema a respeito da inteligência artificial é o fato de que, apesar de ser entendida como uma máquina lógica e imparcial, ela está longe de ser tal coisa. Pelo contrário, por trás do robô, há um ser humano: o programador ou a programadora. E, dependendo da leitura de mundo desse profissional, a cognição criada por ele pode ou não reproduzir pensamentos hegemônicos que violentam minorias políticas. E não precisa ir muito longe para perceber do que estamos falando. Por que será que as vozes de inteligências artificiais como Alexa (Amazon), Siri (Apple) e Cortana (Microsoft) são femininas? “Por que foram programadas majoritariamente por homens que, ao pensar sobre o gênero de um assistente, os definiram mulher. Essa é uma decisão sociopolítica. Nós criamos sempre o que carregamos em nós, a partir das nossas experiências. Não existe tecnologia isenta disso porque tecnologia é uma ferramenta de natureza dúbia — nunca neutra”, responde Teobaldo.

“No caso do uso de IA para o mercado de beleza, isso pode gerar problemas porque existem inúmeras comunidades sub-representadas (que, inclusive, muitas vezes, são majoritárias) nessas bases de dados usadas pela inteligência artificial. Por isso, vão ocorrer distorções quando essas análises forem aplicadas para a ideia de beleza”, continua Lemos. “Há um problema clássico em inteligência artificial que são bases de dados com poucos rostos de pessoas pretas. E, com isso, não raro, você pega IAs que não reconhecem o rosto de quem tem a pele escura.” Chama-se racismo algorítmico: falamos mais sobre isso na edição de julho da ELLE View que você confere
aqui. “Uma pessoa racista tem um impacto, mas um software racista pode ter um impacto muito maior”, alerta Teobaldo.

“Todos esses vieses hegemônicos da sociedade passam para dentro da tecnologia e, por isso, já existe um movimento contrário a isso. Aí é bom entender que a tecnologia só vai deixar de carregar o risco de ser racista, homofóbica, misógina quando a própria cultura não correr o risco de ser. E a gente está muito longe desse lugar ainda”, retoma. Nessa luta, estão organizações como
AI4ALL (fundada por Olga Russakovsky e Fei-Fei Li, que tentam trazer minorias políticas para o campo da inteligência artificial), Black in AI (um grupo de apoio criado pela etíope-estadunidense Timnit Gebru, co-líder de time de inteligência artificial ética do Google) e o AI Now Institute (em que as pesquisadoras Kate Crawford e Meredith Whittaker estudam a influência dessas tecnologias por uma lente multidisciplinar).

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Acenando novamente a nossa edição passada, na matéria
“Por que beleza ainda importa tanto?” mostramos que beleza, na verdade, é um campo em disputa. De um lado, estão padrões coloniais que repercutem pensamentos anacrônicos e violentos como racismo, gordofobia e misoginia. De outro, está um desejo de ampliar o conceito de beleza, de fazê-lo transcender a imagem como bem coloca nossa colunista Joice Berth: “A gente tem de sempre desconfiar daquilo que está vendo, ir além, conhecer as pessoas de fato, entender o que elas representam e até que ponto conseguimos ter uma interação social bacana. Que trocas podemos estabelecer entre nós? É isso que eu acredito que deve liderar as nossas aproximações e os nossos afetos. E, aí, acho que teríamos uma sociedade mais sincera, mais encantadora e mais verdadeira.”

Essa definição democrática de beleza parece fugir completamente à regra do funcionamento da inteligência artificial que trabalha tanto em cima de padrões. Isso posto, precisamos imaginar que, em um mundo no qual a IA está radicalmente engendrada nas nossas relações, é necessário redobrar forças na hora de encarar o espelho por um viés não normativo. “Quando a gente diz que uma inteligência vai ser capaz de ver o seu rosto e te recomendar ajustes de beleza, isso é dismorfia? Como é que uma inteligência artificial consegue entender particularidades, identidades e personalidades permitindo as suas existências?”, questiona Teobaldo. Segundo ele, se não conversarmos profundamente sobre essas normas e ignorarmos o poder da individualidade e da representação de cada pessoa, vamos criar máquinas de padronização. “Todo o debate identitário está se dirigindo às origens. O futuro não pode ser sobre todo mundo ficar idêntico. O futuro deveria ser sobre todo mundo conseguindo se aceitar. Todo mundo sendo feliz na diferença, na particularidade. É fundamental que essas máquinas do futuro não continuem sendo criadas em cima de parâmetros do passado.”