Chego no baile embrazando
Mando um quadradinho andando
Sou seu terror bem assim
Famoso rei (ou rainha) do passinho
“Rei do Passinho”, Bonde do Passinho
Em 2008, Rodrigo Silva da Costa (apelidado de Bitala) comemorava seu aniversário de 16 anos com a família e os amigos dançando no quintal de sua casa em Pilares, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O grupo decidiu publicar um vídeo no YouTube que mostrava os quatro garotos rabiscando o chão com os pés e muita desenvoltura e colocou como título “Passinho Foda”. O YouTube havia sido lançado há apenas dois anos, as superproduções ainda não existiam por lá, e o vídeo postado de forma despretensiosa acabou se tornando viral. O que eles não imaginavam era que aquele momento acabaria influenciando toda uma geração.
“A gente ia na padaria, as pessoas estavam dançando. A gente ia no baile, e, quando a gente entrava, ele parava”, relembra Bruno Barcelos, no vídeo “Dez Anos Depois”, gravado em 2018 com os quatro amigos do vídeo original, pelo diretor, antropólogo e documentarista Emílio Domingos.
Foi na internet e nos bailes que a juventude conseguiu disseminar o passinho — que não se sabe exatamente quando começou, mas que teve a sua popularização com o vídeo “Passinho Foda”. A internet, especificamente, foi uma plataforma fundamental para os jovens, e, por meio das redes sociais da época, como Orkut, MSN, Facebook e Youtube, eles dialogaram e iniciaram um movimento potente, criando redes orgânicas de encontros, trocas e criação.
É difícil explicar em palavras o que é o passinho. Com movimentos rápidos das pernas e dos pés, durante muito tempo, inclusive, ele foi conhecido como a mistura de todas as danças. Essa união de estilos, atrelada ao ritmo potente do funk carioca, atravessou, no início do ano 2000, corpos de jovens das comunidades cariocas que estavam extremamente disponíveis para o novo.
Hoje, o passinho continua se espalhando pelo mundo, sendo estrela de vídeos virais em plataformas como o Nowness [que publicou
um vídeo com o grupo Os Fabullosos] e está presente em premiações internacionais, como o UK Music Video Awards. Dos vídeos caseiros a grandes produções, o passinho permite os mais diversos recursos na criação da linguagem corporal e também nos convida a expandir o olhar para as inúmeras possibilidades de construção de um novo imaginário para a juventude periférica.
Mas o passinho não é apenas uma dança que enche os olhos de quem assiste uma apresentação ou mesmo a um vídeo em alguma rede social. Conhecido como “movimento passinho”, ele é amplo em diversidade e pluralidade de corpos e lugares. É um movimento comunitário e em constante transformação. Nascido nas favelas, é totalmente funkeiro e foi construído com a força, a manha, o swing e a dedicação integral dos jovens das comunidades cariocas. São muitos braços, mãos, pernas, corpos e movimento colocando diariamente mais um tijolo nessa linguagem política e transformadora.
O passinho bebeu de muitas fontes, assim como a maioria das danças, para encontrar nos bailes, nas ruas, nas casas de amigos, nos vídeos das redes sociais e nas batalhas a sua linguagem autêntica. Por isso, convidamos algumas relíquias, assim chamados os precursores do movimento, para contarem suas experiências e vivências neste universo tão importante para a cultura brasileira.
Um passinho de cada vez
Em entrevista à série
De Passinho em Passinho, de Emílio Domingos, Jackson Fantástico declara: “Eu não conheci o passinho, eu sou o passinho, então não tem como eu falar de onde ele veio. Ele veio da favela, de onde eu vim, ele veio do asfalto, do chão onde eu treinava. Era no quarto, era na sala, até no banheiro eu fazia vídeo. Na praça, na praça seca, na batalha, no baile, na rodinha lá, tá tudo englobado, então quando as pessoas vêm falar disso pra mim eu digo, MANO, EU SOU O PASSINHO”.
Emílio Domingos diz que o passinho está conectado diretamente com a ancestralidade do povo negro, com a cultura negra. “Pra mim não tem distanciamento entre o que é o passinho e o que são os passistas das escolas de samba, da capoeira e toda essa corporeidade do povo brasileiro, que é muito específica e muito característica nossa”, reforça o documentarista que também dirigiu o filme
A Batalha do Passinho.
Jefferson de Oliveira Chaves, conhecido antes como “Cebolinha do Passinho” e hoje somente como “Jeff, O Cebolinha”, é uma relíquia do movimento, tendo formado o primeiro grupo de passinho chamado Bonde do Passinho. Roteirizou a série
O Passinho da Favela, em parceria com Emílio Domingos, além de ter viajado para inúmeras cidades dentro e fora do Brasil por meio da dança.
Cebolinha conta que o funk não tinha uma dança própria — foram os corpos, a partir de suas próprias experiências com outras danças, que se adaptaram ao funk. “Hoje, o passinho é uma dança totalmente autêntica, ele tem suas próprias bases, sua própria linguagem corporal, mas ainda está aberto a trazer outras referências, outras danças”, diz ele. “Como era uma dança nova, o passinho necessitava beber de outras fontes, eram poucas bases no início, mas hoje não, hoje ele é uma dança completa”.
Foi entre os anos 1980 e 1990 que grupos de rap passaram a utilizar pequenas mostras de sons incorporadas em suas músicas para criar suas próprias identidades. Com o passinho não foi diferente: samplearam do axé, da capoeira, do breaking, do popping, do samba, experienciando uma corporeidade única, se transformando e se renovando todos os dias até o que hoje é uma indústria geradora de empregos, que acolhe jovens de todas as idades e cria possibilidades de subsistência.
Na música “Rei do Passinho”, do grupo Bonde do Passinho, é possível identificar o sample de uma canção de James Brown com o grito inconfundível do cantor, assim como Cidinho & Doca utilizaram um clássico do do gênero Miami Bass, “Planet Rock”, do lendário Afrika Bambaataa, na música “Cidade de Deus” — é importante frisar que Afrika Bambaataa é um personagem fundamental na história do movimento hip-hop, movimento este que está bastante presente na movimentação do passinho.
“Eu costumo dizer que o passinho é mais que uma dança, é um estilo de vida, é uma cultura complexa e cheia de oportunidades”, diz Igor Pontes da Silva. Criado em Manguinhos, no Rio de Janeiro, e conhecido como Iguinho, ele é também uma das relíquias do passinho. Aos 27 anos, é líder da Passinho Foda e integrante da Imperadores da Dança, duas das primeiras famílias de passinho no Brasil. “Hoje, temos dançarinos de passinho, professores, MCs, DJs, diretores, produtores, tudo dentro do passinho”, diz ele. E Emílio Domingos complementa: “é uma forma de economia que ajuda muita gente, incluindo até senhoras que vendem comida, bebida… tem todo um mercado que acontece com vários profissionais envolvidos”.
O desafio das mulheres
Marcelly de Mello da Silva, conhecida como Celly Idd, relíquia do passinho e representante feminina ativa, contribuiu para a formação das mulheres no que ficou conhecido como o movimento Passinho Foda, no Rio de Janeiro. Cria do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, ela é parte da primeira geração e conta sobre questões que a atravessaram por ser uma das poucas mulheres da época a dançar o passinho — além de falar também sobre a importância da internet para a sua evolução dentro da técnica.
“Em 2007, minha tia se mudou para o Morro do Fubá [Zona Norte do Rio], e foi lá onde conheci alguns dançarinos e mais movimentos de passinho, pois eles treinavam abaixo da janela da casa dela. Sempre que eu pedia pra me ensinarem, eles se recusavam por eu ser mulher, e aprendi algumas coisas olhando os homens dançarem”, relembra ela que cita a página do Orkut “Passinho Foda” como um espaço onde pode pesquisar e aprender sobre passinho com vídeos de outros dançarinos. “Fiz um amigo que morava na minha comunidade, e ele foi o primeiro a me ensinar sem julgar pelo que sempre julgavam (mulher não dança passinho). Ele abriu mão disso tudo e apenas disse: ‘eu te ensino o que eu sei, e você me ensina o que você sabe’.
Dentre os dançarinos e grupos que a inspiravam estão nomes como Baianinho Imperador, Cebolinha, Jackson, Xuxa, Pablinho, VN, Hiltinho, Fantásticos e Os Fabullosos. Com o passinho, Marcelly construiu uma trajetória rica e teve a oportunidade de conhecer e levar seu trabalho a diversos lugares do mundo.
No estilo do passinho
“A moda sempre esteve presente na cultura do funk”, afirma Renata Prado, estudante de Pedagogia da Universidade Federal de São Paulo, idealizadora e articuladora da Frente Nacional de Mulheres no Funk e também dançarina, coreógrafa e professora de funk. “Nós temos o nosso lifestyle, temos o nosso dialeto e temos o nosso próprio gingado. A moda está presente de forma muito direta, pois criamos o nosso estilo de roupa, sabemos quais marcas queremos consumir e quais acessórios são necessários para criar uma simbologia que remete à nossa cultura. Um óculos e um corte de cabelo conseguem definir facilmente a moda do momento no universo do funk”.
Iguinho, líder do Imperadores da Dança, relembra o começo de tudo: “Dançarino nenhum queria chegar igual no rolê, então cada um tentava deixar sua marca com um boné, um brinco, um corte de cabelo… é tipo a coroa, se não tiver na régua não dá. Eu tenho um pouco da influência americana passada por clipes, trouxe para mim as tatuagens e as tranças”.
“Antigamente, dançarino de passinho pintava a unha, ia pro baile pra ver quem tinha a melhor unha pintada, a gente disputava a melhor francesinha, o melhor desenho na unha, não eram todos, mas alguns”, diz Cebolinha.
Apesar das influências de fora, o movimento do passinho tem uma moda muito autêntica e singular da favela, como diz Cebolinha: “Os dançarinos sempre estão cuidando da estética, se vestindo bem, tanto que o Emílio [Domingos] fez um filme que trata da moda só na questão do cabelo. Antigamente, dançarino de passinho pintava a unha, ia pro baile pra ver quem tinha a melhor unha pintada, a gente disputava a melhor francesinha, o melhor desenho na unha, não eram todos, mas alguns. A gente sempre foi muito vaidoso, vaidosas”.
O filme citado por Cebolinha chama-se
Favela é Moda e foi lançado em 2019. Nele, é possível ver como a moda do passinho acompanha a dinâmica da favela, como aponta Celly Idd: “a moda vai mudando, assim como o BPM vai mudando, o ritmo, os pontos, o passinho vai mudando para acompanhar”.
Dream Team do Passinho
Renata Prado representa a geração do funk anterior ao passinho, que tem como referência as pioneiras do Bonde das Maravilhas, que utilizam a técnica do macetinho, o que nos leva a 2013.
Ela aponta que o passinho ganhou notoriedade e visibilidade na mídia com uma batalha da Coca-Cola em parceria com o programa
Caldeirão do Huck e também com a tragédia envolvendo Gambá, que ficou nacionalmente conhecido como Rei do Passinho, e que teve sua vida interrompida em 2012, aos 22 anos.
Hilton Santos da Cruz Junior, conhecido como Hiltinho Fantástico, foi o campeão da batalha de 2013, participou do clipe “Todo Mundo Aperta o Play”, da Coca-Cola, e integrou o Dream Team do Passinho. “Comecei bem novo, já curtia entre os 7 e 8 anos e fui me apaixonando mais e mais por meio de um DVD da Furacão 2000, que mostrava um grupo (bonde) chamado Os Hawaianos. Eu fui me aprofundando até que um dia descobri um vídeo no YouTube [o “Passinho Foda”] e me entreguei de vez pra essa dança apaixonante”, relembra ele.
Dream Team do Passinho fotografado na edição de março 2015 da ELLE Brasil.Bob Wolfenson
“O Dream Team mostrou o passinho ao público leigo um pouco mais rápido por causa de sua rápida fama, o que trouxe mais gente pesquisando a fundo a cultura por completo. Também levou o passinho ao nível boy band, apesar de já existir na cena o Bonde do Passinho, um grupo menos famoso, porém pioneiro”, relata Iguinho.
“O Dream Team do Passinho foi uma família com a qual eu aprendi e ganhei muitas coisas boas. Eu me reconheci como artista dançarino por meio desse grupo incrível e ganhei fãs, coisas que eu nem imaginava que tinha ou teria, e isso me deu gás e me dá até hoje”, diz Hiltinho. “Alcançar pessoas com a minha arte, ser inspiração para crianças… Por mais que seja uma responsabilidade, é uma responsabilidade gostosa. Fico feliz de reanimar pessoas que estão tristes, depressivas, no mundo errado das drogas ou do crime com a minha arte, sabe? A dança para mim é isso: é inspirar, é fazer alguém feliz, é curar. A dança salva, e isso eu falo com toda a certeza do mundo!”
A trajetória está só começando
Conhecer nossas origens faz com que criemos conexões mais profundas com a nossa comunidade e com nós mesmos. Nesse sentido, Renata Prado reforça que para compreender o passinho é preciso também assimilar os caminhos do funk até aqui — algo similar ao ideograma africano Sankofa, que é representado por um pássaro com os pés firmes no chão e a cabeça virada para trás, segurando um ovo com o bico. O ovo representa o passado, imprimindo a ideia de que o pássaro voa para a frente, para o futuro, sem esquecer do passado.
Ela relembra que, em meados dos anos 1970, o soul funk invadiu as terras brasileiras e conquistou a população negra que habitava os morros do Rio de Janeiro. “A representatividade do funk americano foi tão forte que gerou um grande impacto na cultura negra daqui, a ponto de influenciar o estilo de vida dessas pessoas, desde a música, a moda, o comportamento e o pensamento político. A musicalidade do funk americano foi tão marcante que eles criaram o funk carioca: um ritmo musical descendente da cultura norte-americana, que nasceu nas favelas do Rio de Janeiro e invadiu as periferias de todo o Brasil, se tornando referência musical brasileira no mundo inteiro”, diz ela. Renata ainda atenta que, por se tratar de um fenômeno cultural de jovens negros e periféricos, o Estado tenta até hoje coibir o movimento funk, chegando a criar projetos de lei para proibir a realização de bailes funk nas comunidades.
“É de extrema importância a valorização do funk e do passinho para que essa cultura se torne um polo de economia criativa para vários jovens de todo o Brasil. Com a valorização da cultura do funk, consequentemente, o trabalho da classe artística da periferia passa a ser valorizado e, assim, garantimos a cidadania da juventude negra e periférica.”
A relevância do passinho é tamanha que, desde 2018, ele é considerado patrimônio cultural imaterial do Rio de Janeiro, graças a um projeto de lei da vereadora Verônica Costa, conhecida como Mãe Loira do Funk. Esse reconhecimento deveria se reverter em mais iniciativas para a valorização e a divulgação da dança, mas não é bem isso o que se vê na prática. “A classe artística da dança do funk não tem o total apoio do Estado quando o assunto é infraestrutura”, explica Renata, que conta que todas as quartas-feiras, os dançarinos de passinho do Rio de Janeiro se reúnem de forma autônoma em uma praça na Zona Norte, na favela de Manguinhos, para treinar suas habilidades artísticas.
Esses encontros acontecem sem o apoio do Estado e sem o apoio dos espaços públicos que estão próximos ao PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) de Manguinhos, que é o local onde acontecem os treinos. “Os dançarinos se auto-organizam e fazem esses encontros acontecerem. Já em São Paulo, Minas Gerais e Recife, o tratamento do Estado com a cultura e a classe artística do passinho é a mesma: o descaso”, afirma ela, que é também idealizadora do projeto Academia do Funk e cujo trabalho foi homenageado pelo Prêmio Zumbi dos Palmares, da Assembleia Legislativa de São Paulo, e pela I Sessão Solene de Homenagem ao dia 25 de Julho (Dia internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha), pela Câmara Municipal de São Paulo.
O movimento funk mostra cotidianamente a força da cultura na construção de um projeto de sociedade agregador e acolhedor. Que a sociedade brasileira dê aos jovens instrumentos para que consigam seguir a trajetória que escolherem pois, infelizmente, escolher ainda é um privilégio de poucos. Seja como MCs, DJs, dançarinos, técnicos de som ou de luz, profissionais do audiovisual ou o que quiserem, que a sociedade brasileira assista a esses jovens geniais que, mesmo sem infraestrutura, seguem apresentando e introduzindo ao mundo o que há de mais bonito, impactante e transformador: sua arte!