Brasil is burning

A cultura ballroom nasceu entre trans, travestis, drags e pessoas queers negras e latinas nos EUA, mas ganhou voz, corpo e ritmo próprio com os membros das comunidades locais.

No Brasil, a cultura ballroom começa a ganhar visibilidade entre 1980 e 1990, acompanhada pelo crescimento da cena da música eletrônica no Rio de Janeiro e, logo depois, em São Paulo. Elementos de voguing eram comuns na comunidade clubber da época. Grupos de dança como o Apotheose of Dance ou o Move Your Body, ambos de Goiânia, já executavam movimentos de hands performance, vogue old way e new way no início dos anos 1990.

“Antes de conhecer o voguing, eu dançava funk, mas quando vi o clipe da Madonna, comecei a me inspirar nos movimentos dela. Comecei a assistir mais vídeos e com isso fui desenvolvendo a dança naquela época”, diz Wender Luz, 48, mais conhecido como Buiu, papa do vogue e ex-integrante do grupo Move Your Body. “As pessoas criticavam os movimentos, diziam que eram muito fortes, mas com o tempo a dança foi ganhando espaço. Lembro que eu estava na Eagles Boate e fui tomado por aquela música, comecei a dançar, e a boate inteira parou e ficou me olhando. Foi quando comecei a misturar vogue com outras batidas.”

Além de Madonna, outros grupos, como o New Can Dance, também exerceram forte influência nos movimentos de Wender. “O interessante é que cada movimento, cada posição do voguing, tem algo único. Toda vez que a gente dançava saía algo diferente. Todo mundo ficava vidrado naquilo! Começávamos devagarinho, e, de repente, as pessoas em volta estavam todas dançando juntas”, diz ele, que, hoje, atua como alfaiate e tem seu próprio atelier em Goiânia.

Responsável por algumas das festas e clubes mais históricos da noite paulistana, o DJ Mauro Borges, falecido em agosto de 2018, também incorporou elementos de voguing em suas produções. Quando sua banda, Que Fim Levou Robin, se apresentou no programa do Gugu, movimentos da dança eram visíveis na performance.

Félix Pimenta Zion, pai e fundadore da Kiki Casa de Pimentas e também pai da House of Zion – Capítulo Brasil, ressalta que, por se tratar de uma dança popularizada pelo mainstream, pode haver inúmeros grupos que não foram documentados, sobretudo em um período em que as redes sociais e a internet ainda eram muito restritas. “Existem muitas informações não registradas, inclusive de pessoas LGBTQIA+ que não tiveram a chance de ser reconhecidas. Muitas coisas não foram gravadas, não foram registradas, e isso torna difícil dar os devidos créditos, mas, sim, muitas pessoas chegaram até a comunidade ballroom através da dança voguing”, explica ele.

O Brasil é um país de dimensões continentais, são vários Brasis dentro do Brasil. Portanto, a cultura ballroom é atravessada pelas realidades e culturas de cada região, assim como a elaboração das categorias e como será a performance dentro de cada categoria. “Aqui no Pará, por exemplo, temos uma cultura rica e cheia de elementos folclóricos e urbanos”, diz a Legendary Rafa Botega. Ela foi a primeira pessoa a pessoa a receber o título de Legendary no Brasil. Ela é conhecida na cena ballroom como Prada Revlon Bodega, integra a International Iconic House of Revlon e é mãe da Kiki House of Bodega.

“Tudo isso é acrescentado ao ballroom, seja através de temas de categorias, seja na mesclagem de elementos de danças locais com o voguing. Me enche os olhos ver alguém adicionando passos do treme na performance do voguing”, continua ela.

Houve muitas contribuições para a estruturação da comunidade ballroom no Brasil. No início dos anos 2000, era possível encontrar informações sobre a cultura ballroom pelo site da House of Enigma e de outras casas. E se tratando de Brasil, é possível imaginar as inúmeras pessoas que, no mesmo período, colocaram seu tijolo nessa grande comunidade.

O primeiro ball internacional realizado no Brasil aconteceu em 2015, em Belo Horizonte, o BH Vogue Fever. Já existiam movimentações dentro da comunidade ballroom antes disso, mas como as nomenclaturas ainda não estavam bem definidas, é difícil precisar quando e onde exatamente elas aconteceram. Ainda assim, vale reforçar a importância desse evento, pois foi somente depois dele que a comunidade começou a se organizar e assumir outras identidades, como a cena Kiki, um movimento paralelo ao mainstream da cultura ballroom.

“Me enche os olhos ver alguém adicionando passos do treme na performance do voguing”, Legendary Rafa Bodega

Ela surgiu nos EUA em eventos sociais chamados “Kikis”, realizados em organizações de saúde, como a GMHC e a Hetrick-Martin Institute, onde a comunidade jovem podia acessar os serviços de prevenção ao HIV, testes, apoio psicológico e acompanhamento.

Segundo Fênix Zion, pioneire da cultura ballroom em Alagoas, a cena kiki local ainda é muito recente, mas tem como objetivo dialogar e contar a história da população negra e indígena. “Temos um ball arquivado por causa da pandemia, que propunha um atravessamento entre a dança voguing e o coco alagoano, uma dança cantada e acompanhada pela batida dos pés ou tropel, de origem africana, filiada ao batuque angola-congolês. Ela acontece principalmente na época junina ou em outras ocasiões que se quer festejar acontecimentos importantes nas comunidades rurais. Por ocasião da tapagem de casa, o coco aparece em todo o seu esplendor”, diz ele.

O pernambucano Edson Vogue, conhecido como Pioneer Mother Edson Vogue Guerreiras, atua como dançarino, pesquisador, ator e professor. Começou a dançar frevo profissionalmente em 2010 e voguing, em 2008. “Eu conheci o voguing em 2008 e passei a treinar pelo YouTube”, relata. “Conheci Félix por meio de uma dançarina, entrei em contato com ele e passei a atuar com voguing fortemente em 2012. Mas foi com a vinda do Trio Lipstick a Recife, em 2016, que pudemos ter mais contato com a cena”. Edson reforça que Pernambuco tem uma cultura popular muito forte, o que faz com as danças e músicas que perpassam os pernambucanos culturalmente acabem influenciando na estética dos balls e do voguing. A pesquisa dele, por exemplo, é com o frevo e o voguing, criando adaptações para se desenvolver um jeito autêntico e genuíno que considera localização, cultura e território.

“Nossa primeira ball teve como tema a cultura cearense, foi o ‘Becha Cearense Ball’, ainda não tinha ideia de que aquilo se tornaria algo tão grande”, diz Silvia Miranda, também conhecida como Yagaga. Travesti de 21 anos, ela é moradora de Fortaleza, no Ceará, mãe da Kiki House of Kengaral e fundadora do coletivo Becha Cearense — além de ser também produtora, professora de vogue femme e integrante dos coletivos Terra Prometida e Carnaval no Inferno.

“Naquele dia, tivemos do artesanato regional até os cangaceiros! Imagine várias bechas vestidas de cangaceiros, isso é revolucionário. Vivemos num estado onde a cultura do cabra-macho ainda é muito forte, então fizemos uma ressignificação disso. O nome da minha house também vem de uma expressão cearense — queima quengaral — que pode significar muitas coisas, mas é basicamente um grito para quando algo bem babado está acontecendo”, fala ela.

Tai Cazul Ninja, mother da Pioneer House of Cazul e filha da House of Ninja, explica que, no Rio de Janeiro, eles buscam agregar aos balls, além das categorias mais tradicionais, categorias como batekoo, inspirada na festa de mesmo nome original de Salvador, mas com sucesso nacional. Nela, se combina movimentos de passinho, vogue beats e funk carioca. “Na cena carioca, tivemos dois polos cruciais para a disseminação da cultura ballroom: o Centro Coreográfico [da Cidade] do Rio de Janeiro e o Comunidança, da UFRJ. Nesses dois lugares nasceram, respectivamente, a House of Cazul e a House of Kinisi, as duas pioneiras da cena local. O primeiro Kiki Ball sediado aqui foi no dia 27 de maio de 2016: a Conferência das Bruxas Kiki Ball, fornecida pela House of Cazul e pela mãe Bruxa Cósmica. Em 2018, nasceu a House of Alafia, em São Gonçalo, e, em 2019, surgiram House of Império, Casa de Cosmos e House of Cabal. No começo de 2020, nasceu a Ilê Nem [Ilê significa casa ou terreiro em Iorubá]. Atualmente, nós temos representantes de outras houses não originadas no estado do Rio como House of Bodega, House of Lafond e House of Mutatis”, diz ela.

Félix Pimenta Zion faz apontamentos importantes sobre a necessidade de se sentir pertencente “à comunidade ballroom, seja pelo ponto de vista da performatividade, seja até mesmo pela nomenclatura das houses”, e sublinhaque em alguns aspectos a comunidade ballroom brasileira apresenta mais autenticidade e está à frente do ponto de vista da identidade. “Estamos à frente em algumas discussões. Há a tentativa das pessoas da ballroom de resgate da identidade. A Casa de Candaces, por exemplo, está relacionada ao reino matriarcal da África, é uma house específica para corpos transtravestigeneres. A House of Black Velvet é específica para pessoas negras, assim como as House of Lafont, House of Alafia, House of Odara. Lá fora, eles ainda são muito presos a nomes de grifes relacionados à moda, aqui não, aqui tem nomes específicos de regiões ou de personalidades, ingredientes de comida, frutos, flores como a House of Maniva… É muito louco.”

É necessário pontuar que a comunidade ballroom é política, e tudo o que é produzido, pensado, dialogado está intrinsecamente ligado à responsabilidade social, coletiva e comunitária. “O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Subverter suas linguagens e seus espaços dando voz e enaltecendo essas corpas dissidentes é fundamental”, diz Father Aru Cabal, transmasculino, father da House of Cabal desde o início de 2020. Ele passou por algumas Houses em seus 6 anos de cena, é graduando em Comunicação Social, DJ, produtor cultural, performer, faz a capacitação de Embaixador da Juventude pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) e também é um dos coordenadores do TColettive — coletivo pensado para gerar resposta às decorrências da Covid-19 para as populações trans, não binária e interssexo.

“O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Subverter suas linguagens e seus espaços dando voz e enaltecendo essas corpas dissidentes é fundamental”, Father Aru Cabal

“Sempre vi a cultura ballroom dessa forma: pega a pirâmide de hierarquia social vigente — com o homem cis hétero branco no topo — e vira de cabeça para baixo, colocando os grupos menos favorecidos na parte superior. Ajuda não só as próprias pessoas pretas e trans em uma nova forma de autopercepção mas todos que fazem parte da cena a levar isso para o dia a dia”, explica Aru.

Para ele, moda é política: “fomos condicionados a perceber a moda de maneira elitizada e colonizadora. Todavia, é um grande reconstruir esse processo de abrasileirar nossa forma de nos colocar no mundo, de expressar quem somos através da vestimenta. É olhar para o decolonial. A roupa, assim como nossa própria identidade, vira só mais uma didática, só mais um recurso de combate.”

A comunidade ballroom é uma movimentação afrodiaspórica. Ela é potência revolucionária, é a síntese da frase “Eu não ando só”. É o grito de Crystal LaBeija, Madame Satã, Xica Manicongo e Lafond ecoando através de movimentos dos corpos e corpas que seguem resistindo e (re)existindo cotidianamente. E como bem disse Yagaga: “Não deixem de sonhar, não importa o quão difícil a caminhada pode ser. Essa comunidade vem para abrir portas e transformar pessoas. Invistam na cena. Invistam na cena local. Ballroom é muito mais do que vários eventos, é uma forma de vida!”