Prêt à danser

Com forte conexão, moda e dança produzem momentos artísticos emocionantes em seus encontros nos palcos e nas passarelas

Em maio de 1909, os Ballets Russes fizeram sua estreia em Paris e iniciaram um prolífico capítulo na história das artes. Avant-garde e independente, a extraordinária companhia fundada por Serge Diaghilev rompeu com o romantismo que predominava nos espetáculos de dança na França até então e concebeu uma nova forma de expressão corporal. Com força e sensualidade, Vaslav Nijinsky seduzia a plateia dando saltos em que mais parecia voar. Nos bastidores das montagens, o grupo promovia uma fusão de talentos multidisciplinares: entre seus colaboradores estavam Pablo Picasso, Henri Matisse, Jean Cocteau e Igor Stravinsky. A moda não ficou de fora dessa movimentação. Glamorosos e extravagantes, os figurinos da companhia, com referências que iam do folclore russo à Art Nouveau, logo começaram a influenciar grandes estilistas. Paul Poiret notoriamente bebeu na fonte dos Ballets Russes para criar suas calças de harém. Grande apoiadora de Diaghilev, Coco Chanel vestiu com suas peças esportivas o elenco de Le Train Bleu (1924), balé que abordava o estilo de vida da Riviera Francesa. Nascia, assim, o primeiro grande casamento da dança com a moda – uma via de mão dupla, que percorre caminhos interessantes nos palcos e nas passarelas. Os Ballets Russes inspiraram diversas coleções desde então, como a célebre homenagem feita por Yves Saint Laurent na temporada de inverno 1976.

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Hoje, estilistas mais experimentais têm dado um novo olhar para as companhias de balé tradicionais, que buscam inovar e se renovar para atrair um público jovem. Em 2014, a dupla holandesa Viktor & Rolf fez tutus quadrados – inesquecíveis – para o Dutch National Ballet. Enquanto isso, Gareth Pugh, um dos criadores mais conceituais da cena britânica e bailarino por formação, concebeu figurinos para Carbon Life, do Royal Ballet, um dos principais grupos de dança do mundo. Com espírito dark, como era de se esperar, os looks angulares incluíam uma máscara pontiaguda. Outra que volta e meia se dedica à área é Iris van Herpen, a rainha da “couture high-tech”, habituada a criar as peças de seus desfiles como se fossem parte de uma coreografia. Dançarina na adolescência e interessada em anatomia, ela já desenhou figurinos à la dominatrix para o New York City Ballet e usou impressão 3D para desenvolver peças para um balé da Ópera da Antuérpia. Mas poucas experiências se comparam ao encontro de Rei Kawakubo com o coreógrafo vanguardista americano Merce Cunningham no espetáculo Scenario, de 1997. A fundadora da Comme des Garçons criou peças com enchimentos que deram formas surreais aos bailarinos, como corcovas e ombros agigantados.

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Na outra ponta dessa relação, a figura da bailarina – forte e, ao mesmo tempo, delicada – desperta enorme fascínio na moda. Volta e meia, ela e sua indumentária típica surgem como inspiração nas passarelas em coleções que exploram collants, meias-calças, sapatilhas, drapeados e o clássico tule. No verão de 2019, Maria Grazia Chiuri levou essa ideia para o desfile da Dior, acompanhada de uma coreografia criada pela israelense Sharon Eyal. Apaixonada pelo assunto, Chiuri já havia abordado o tema quando ainda comandava a Valentino ao lado de Pierpaolo Piccioli, no inverno 2016. Entre as homenageadas estava a americana Martha Graham (1894-1991), eleita a bailarina do século pela revista Time, com seu inconfundível figurino minimalista que incluía longas saias de jérsei – uma peça que valorizava a dramaticidade de seus movimentos. Martha começou desenhando as próprias roupas e, mais tarde, manteve parcerias com estilistas, como seu amigo Halston.

Uma das relações mais admiráveis entre profissionais da dança e da moda foi a cultivada pela coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009) com o japonês Yohji Yamamoto. “Não estou interessada em como as pessoas se movem; estou interessada no que faz elas se moverem”, dizia Pina, cujas obras eram baseadas nas experiências humanas e se aproximavam do teatro. Ambos geniais e cerebrais, eles se tornaram grandes amigos, se inspiraram e se homenagearam ao longo da vida. Adepta de um visual sóbrio e de peças de alfaiataria em estilo andrógino, a bailarina se tornou a musa e a síntese da silhueta perfeita de Yamamoto. Em 1998, quando Pina completou 25 anos à frente da Tanztheater Wuppertal, a companhia que comandou em seu país, o estilista criou os figurinos da comemoração – além de ter celebrado a coreógrafa em diversas coleções ao longo de sua carreira.

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Acima de tudo, a dança proporcionou momentos inesquecíveis nas passarelas, com desfiles que se aproximaram de grandes espetáculos e entraram para a história. Em um desses capítulos mágicos, Alexander McQueen convidou o coreógrafo Michael Clark a criar uma performance com modelos, bailarinos e roupas glamorosas na temporada do verão 2004. Um salão parisiense do século 19 serviu de cenário para a coleção Deliverance, numa apresentação inspirada nos concursos de dança surgidos na Grande Depressão americana, que testavam a resistência de seus participantes – tema do filme A Noite dos Desesperados, de Sydney Pollack. Com a atuação impressionante de modelos como Karen Elson, o desfile foi apontado pela crítica como o melhor de toda a temporada.

Em fevereiro deste ano, antes de a Covid-19 se espalhar e deixar o mundo de cabeça para baixo, Marc Jacobs encerrou a semana de moda de Nova York com uma apresentação pujante: convocou a coreógrafa Karole Armitage, conhecida como “punk ballerina” desde os anos 1980, a fazer uma performance ao lado de 50 dançarinos. Com movimentos abruptos do elenco e uma coleção que remetia a uma Nova York nostálgica, sem estampas e com silhuetas bem simples, o desfile no Park Avenue Armory celebrou a individualidade e a dança de maneira nada frágil. Ícone de subversão, Armitage tem relação antiga e próxima com a moda – Christian Lacroix e Jean Paul Gaultier já fizeram figurinos para seus espetáculos. Depois que a pandemia começou, Marc Jacobs fez um balanço do cenário atual ao lado do jornalista Tim Blanks, do Business of Fashion, e concluiu: “Eu ficaria muito feliz se esse fosse meu último desfile”. Entre a extravaganza e a esperança, Marc conseguiu resgatar por meio da dança a emoção que andava meio escassa nas passarelas.