No ano em que comemora os 45 anos de uma trajetória na qual exportou a dança contemporânea brasileira de Minas Gerais para o mundo, o Grupo Corpo se viu impossibilitado de subir ao palco por causa da pandemia. “Tudo começou a ser cancelado: nossas turnês fora do Brasil, uma a uma, até a última, que seria no fim do ano, para comemorar os 45 anos do Corpo”, conta à ELLE o diretor artístico Paulo Pederneiras. Na programação para 2020, estavam cinco apresentações ao lado da Orquestra Filarmônica de Los Angeles, uma das mais importantes dos Estados Unidos, assim como a temporada anual no Brasil, que Paulo considera “sagrada”.
Cena de Gira, de 2017: o espetáculo visceral teve parceria com o grupo Metá Metá, de Kiko Dinucci.
Diante do futuro nebuloso desse início de ano, o grupo procurou outras maneiras de seguir dançando. Primeiro, criou aulas online gratuitas para ajudar os profissionais de saúde, batizadas de Grupo Corpo de Plantão. “Isso foi um sucesso extraordinário, e a gente viu a força que o Corpo tem nas redes, coisa que nunca exploramos muito”, conta Paulo, 69 anos, também responsável pela cenografia e pela iluminação dos espetáculos da companhia. Dali em diante, disponibilizaram gratuitamente vídeos de espetáculos na íntegra do grupo, lançaram minidocumentários sobre as obras mais importantes da companhia, com trechos interpretados por bailarinos em suas casas como complemento, e lançaram um curso online para não bailarinos, com suas 1.200 vagas esgotadas. “A gente ficou muito feliz de saber que o Corpo tem essa penetração. Você pode passar essa experiência do grupo para muita gente que não teria acesso, para lugares distantes do país. Existem outros palcos para descobrirmos e sabermos como atuar neles.”
Quatro irmãos
O primeiro palco da companhia foi em Belo Horizonte, onde o grupo nasceu entre os irmãos Pederneiras – Paulo, Rodrigo, Miriam e Pedro –, uma família que não tinha histórico na dança. Miriam, hoje assistente de coreografia e à frente da ONG da companhia (Corpo Cidadão), começou a dançar em um grupo. Depois, se interessaram também pela dança Rodrigo, que se tornaria coreógrafo do grupo, e Pedro, diretor técnico. A companhia conta ainda com o coordenador técnico Gabriel Pederneiras, filho de Rodrigo e da ex-bailarina Cristina Castilho, hoje diretora de comunicação do Corpo. “Nós temos muita confiança uns nos outros. Isso é a coisa mais importante. Apesar de a gente brigar – e a gente não briga pouco –, no dia seguinte estamos conversando de novo”, diz Paulo. “Desde o começo, nunca tivemos uma escala de importância [entre os integrantes], que na época era muito comum em companhias tradicionais.”
Os irmãos Pederneiras são acompanhados há muitos anos pelo cenógrafo Fernando Velloso e pela figurinista Freusa Zechmeister. “A manutenção desse núcleo foi muito importante para o desenvolvimento de uma linguagem, que não se cria da noite para o dia. Acho que isso é ótimo e, ao mesmo tempo, perigoso: você pode se acomodar. E tem que estar exigindo o tempo todo”, diz Paulo. “Acho que este foi o meu papel de querer sempre ver coisas que as pessoas ainda não tinham feito, isso importava muito para a gente. Gosto de pensar que, nesses 45 anos, o Corpo ainda é uma companhia contemporânea.” Para a artista gráfica Joana Lira, que viu seus desenhos ganharem movimento pelas mãos de Freusa em Gil (2019), trata-se de uma equipe muito afinada. “Eles são muito cuidadosos, muito minuciosos. Freusa tem um olhar de águia. Ela botou esses desenhos para dançar de um jeito que eu nunca tinha visto.”
O sucesso veio logo no primeiro espetáculo, Maria Maria (1976), com música original assinada por Milton Nascimento e coreografia do argentino Oscar Araiz. A obra ficou dez anos em cartaz e levou o grupo a 14 países – desde então, a companhia já visitou mais de 40 países. Em 1978, Rodrigo assinou seu primeiro trabalho como coreógrafo da companhia. A partir da década seguinte, elementos de danças populares e folclóricas começaram a ser transformados em movimentos de dança contemporânea e incorporados às coreografias do grupo, como nos espetáculos 21 (1992) e Nazareth (1993), numa linguagem que acabou virando marca registrada da companhia. “Com raras exceções, do 21 para cá mantivemos todos os espetáculos no repertório do Corpo”, lembra Paulo.
O mesmo espetáculo também marca a retomada de trilhas compostas para a companhia em simbiose ao movimento dos bailarinos, uma marca registrada do grupo. Alguns dos maiores nomes da MPB – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, João Bosco, Arnaldo Antunes, Marco Antônio Guimarães (Uakti) – já assinaram trilhas para a companhia. “Eles têm liberdade total. Cada autor faz de um jeito. O Lenine disse que passou a compor de uma maneira completamente diferente depois que fez a obra para o Corpo.” Paulo ressalta a parceria com José Miguel Wisnik, que já assinou três trilhas para o grupo. “É a pessoa a que me reporto nesta área musical e quem também me ajuda muito quando vislumbro alguém para fazer a trilha. É uma referência muito importante para mim.” Foi por meio de Wisnik que o convite para uma parceria chegou ao grupo Metá Metá, nome de destaque da cena paulista. “As trilhas eram uma referência para a gente, ser chamado pelo grupo já é um reconhecimento”, conta o músico Kiko Dinucci, integrante do grupo. Formado por seguidores do candomblé, o trio levou referências das religiões afro-brasileiras para o grupo, que passou a visitar terreiros para a pesquisa, conta Kiko. O resultado é Gira (2017), uma das obras mais viscerais da companhia. “Foi muito emocionante ver aquela música reinventada. É como se os corpos fossem outros instrumentos da música.”
Seleção sofrida
Ao longo de quatro décadas e 40 coreografias, mais de cem bailarinos passaram pelo grupo. “Antigamente, a gente abria seleção para o Brasil todo. E era uma coisa muito dura, frustrante. A última vez que a gente anunciou duas vagas, tivemos mais de 400 pessoas. Para duas pessoas ficarem felizes, 398 ficaram frustradas. É uma conta esquisita demais, desumana demais”, conta Paulo. Hoje o grupo procura novos integrantes entre indicações dos bailarinos do grupo, em outras companhias e viagens pelo Brasil. “A gente vai olhando quem tem a maneira de se movimentar do Corpo, aí podemos fazer uma audição não de 400, mas de 20 pessoas.” Há bailarinos que seguem no time mesmo fora dos palcos. É o caso de Ana Paula Cançado, que dançou com o grupo por 19 anos e, desde 2011, é assistente de coreografia. Já a diretora da São Paulo Companhia de Dança, Inês Bogéa, que foi bailarina do grupo entre 1989 a 2001, organizou Oito ou Nove Ensaios sobre o Grupo Corpo (2001), livro com textos de Luis Fernando Verissimo e Zuenir Ventura.
Gil, de 2019, levou aos palcos os desenhos de Joana Lira.
Apesar da trajetória de 45 anos e de todo o reconhecimento do grupo, Paulo conta que a renovação de patrocínio e apoio não ficou mais fácil com o tempo. “Nunca pensei que fôssemos chegar aos 45 anos com essa batalha que é para manter tudo.” Além da companhia e da ONG, o grupo possui uma escola de dança. Os cortes no patrocínio da cultura por empresas estatais atingiram em cheio os bailarinos, que perderam no início de 2020 o apoio financeiro da Petrobras, depois de 22 anos. “Isso foi um baque não só para o Corpo, mas para muitos outros. Chegamos a ter patrocínios exclusivos. Cada ano é um ano e é muito difícil”, diz Paulo. “É uma fase dificílima pela qual todas as artes no Brasil estão passando por vários motivos, o principal deles, a pandemia. Fico pensando nas tantas vezes que já vi o céu cair sobre minha cabeça.”
Mas a companhia segue com planos e prepara uma compilação da linguagem corporal do grupo, com foco em profissionais e companhias de dança. “Cada movimento é decupado, como se a gente fizesse um arquivo corporal da movimentação que o Rodrigo criou ao longo desses 45 anos.” Para Paulo, a dança hoje tem um público maior que no início da companhia. “É difícil a gente falar sobre a gente mesmo sem parecer pretensioso, mas acho que nesses 45 anos a dança no Brasil mudou radicalmente, e o Corpo fez parte dessa mudança. Gosto de pensar que o grupo também a influenciou.”