Ponto de interrogação

É proibido dançar?

Outro dia li no Twitter um comentário intrigante. Uma mulher jovem tirava uma com a cara de uma mais velha, que aparecia dançando em um vídeo. “Você está ridícula, não tem mais idade pra isso.” A mulher do vídeo, calculei, deveria ter uns 50 anos.

Em outro vídeo, um casal mais velho, na casa dos 60 e tantos talvez, era tratado com um misto de fofura e bizarrice, como se fossem duas aberrações bonitinhas. Motivo: estavam dançando música eletrônica. Ridicularizar em tons pastel é o novo hit.

Jovens mandam brasa no trenzinho do funk: vulgares. Meninos fazem passinho em bonde: maloqueiros. Pessoas gordas fazem coreografia: patético ou, nossa, elas conseguem se mexer bem até.

Será que eu dormi muito na quarentena e algum desses monstros com cargo público proibiu a dança no Brasil?

Na verdade, o fenômeno é mais antigo e tem a ver com um dos desenvolvimentos mais nocivos do capitalismo. Se o corpo vira um “ativo” de mercado, se vira moeda de troca com valores diferentes, seus movimentos e sua performance também passam pelo crivo do comércio de vidas.

Pode dançar o corpo branco, magro. Só pode o grupo politicamente autorizado. O corpo negro só dentro de contextos permitidos pelo racismo mais ou menos velado. Qualquer passinho fora é prontamente apontado com dedos e risadas. Velha, gorda, cafona, coisa de bandido, maloqueira, exagerada, adoradora do capeta, não se enxerga. A polícia do “não pode” chega na jugular, bem cruel, venenosa.

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Ilustração @gusbalducci

Dançar é falar com o corpo, é uma das manifestações da vida. É emocionante ver bebês que mal aprenderam a andar ou que, ainda no colo, batem as primeiras palmas, sacodem as pernas satisfeitos. Nós dançamos, é algo que nossa espécie pratica e registra desde os tempos pré-históricos. Dançar é ocupar o corpo, fazer dele canal e lugar de nossa expressão, de nosso prazer e até de nossa dor. Ninguém tem o direito de controlar isso para caber dentro de padrões de exclusão. Não devemos nos dobrar a mais essa expressão da tortura.

Sim, dance sem ninguém ver, é bom e libertador. Mas por que a experiência de dançar diante dos olhos dos outros tem de ser tão carregada de julgamento? A quem temos que agradar com nossos movimentos, quem é que bota esses limites absurdos a uma expressão tão espontânea de estar vivo? Eles que segurem a vassoura e se saiam pro lugar triste, moralista e careta de onde saíram pra espalhar essas ideias.

Dançar sim, inclusive como rebelião. Dançar o quê e quando, do jeito que bem entendermos.

Dançar sempre. “Até o sol raiar.

Até dentro de você nascer.

Nascer o que há.”