Carta da diretora

“Dance like nobody’s watching; love like you’ve never been hurt. Sing like nobody’s listening; live like it’s heaven on earth.”

Assisti ao primeiro espetáculo de dança já adulta. Não lembro agora exatamente qual foi, mas não esqueci o impacto que ele teve sobre mim. Senti um transbordamento e também uma frustração enorme, que demorei um pouco a identificar de onde veio. Confesso que somente agora, no exercício de escrever esse texto, pensei mais a fundo sobre isso. Descobri que sempre tive uma relação ambígua com a dança. E vou contar o porquê.

Estudei em uma escola pública que tinha um conservatório de música na parte de cima. Cresci ao som de pianos e outros instrumentos sendo afinados, vozes meio dissonantes nas aulas de canto e turmas de bailarinas das famílias de classe média alta da minha cidade. Nunca tive em casa incentivo para fazer parte disso. Me contentava em ser ouvinte e espectadora. No começo da adolescência, criei coragem e me matriculei na aula de jazz. Era moda na época, mas em breve confirmei que não levava jeito pra coisa. Nunca consegui dar um salto estrela, e isso me envergonhava. Mas é dessa época uma de minhas melhores lembranças: uma carta que escrevi para minha irmã pedindo de presente de aniversário um collant, polainas e meias para a apresentação de jazz que ia rolar em pleno palco da Exposição Agropecuária, maior festa da cidade. Lembro bem desse look; da apresentação, no entanto, não me recordo. Carnaval também não era meu forte. Sempre fui magrela e branquela, do tipo que não fazia sucesso em ambientes como praia e roda de samba. Nunca consegui aprender a sambar. Mas cresci em uma casa de pessoas tão confiantes, que minha mãe se achava a maior sambista da avenida e meu irmão imitava o John Travolta. Ambos acreditavam que estavam arrasando. Não estavam, não. Mas quem se importava?

Mais tarde, em uma viagem para o interior dos Estados Unidos, fui a uma festa de rua e pude observar algumas pessoas dançando. Fiquei meio encantada ao ver como elas dançavam sozinhas, de um jeito completamente sem sentido, mas felizes e alheias a qualquer julgamento. Vi uma mulher bem gorda dançando como se não houvesse amanhã e aquilo me deu tremenda felicidade. Essa cena me marcou, talvez, porque de alguma forma me projetei ali: dançando mal como se ninguém estivesse vendo, só sendo feliz e pronto! Um corpo livre, leve e solto. Virginiana controladora que sou, nunca me dei a esse luxo. Por isso, sempre flertei com o balé clássico: porque ele é todo controle e perfeição de movimentos. Esse rigor parecia me caber melhor. Mas hoje percebo que a beleza daquela cena foi entender que não existe um corpo certo pra dançar, e isso é libertador. A dança nasceu com a gente, mesmo que a gente ache que não tenha nascido pra ela.

Quando começamos a discutir mais a fundo o tema da edição, esse foi o mote. A dança sempre esteve aí, mas, durante a pandemia, foi ela que nos ajudou a manter a sanidade. Já tive a oportunidade de assistir a apresentações como as da inesquecível Pina Bausch, do Grupo Corpo, do balé contemporâneo Nederlands Dans Theater, mas hoje, confinada em casa, me divirto mesmo é vendo as danças que viralizam nas redes sociais, paro em qualquer vídeo de passinho e sigo cada vez mais fã de quem coloca o corpo pra jogo em qualquer lugar, sem medo de ser feliz.

Que esta edição e a música de Rita Lee que deixo aqui pra vocês sirvam de inspiração.

Beijos,

@susanabarbosa