Alguém avisa que é meme?

No meio de tanta notícia ruim, tretas e retrocessos mil, ele surge como uma salvação no feed: como aguentar 2020 sem um bom meme para alegrar o dia? E vamos de história.

Old que os memes já circulam por aí bem antes do que você imagina. Tudo o que afeta o nosso comportamento social e cultural por meio de informações que se espalham rapidamente pode ser entendido como meme. Uma ideia, a forma como nos vestimos, os bordões, as superstições, as gírias. Tudo isso pode ser meme.

Se você estava lavando o cabelo durante esse tempo todo e chegou agora ao assunto, o termo vem da palavra grega “mimeme” (imitação). Seu conceito apareceu pela primeira vez em 1976, no livro
O Gene Egoísta, do biólogo Richard Dawkins. Na obra, o autor utiliza o meme para explicar que a seleção natural, ancorada nos princípios do darwinismo, também pode ser aplicada fora do contexto biológico. Ou seja, o meme seria uma transferência de ideias e bens culturais que se espalha e evolui de pessoa para pessoa através da repetição.

O meme “Tava lavando o cabelo”, inclusive, é um ótimo jeito de explicar a teoria. Em 2013, a modelo Ariadna Arrastes, que ficou conhecida por ser a primeira participante trans do reality show
Big Brother Brasil, foi vítima de fake news quando usuários do Twitter espalharam montagens com layouts falsos de sites de notícia divulgando a sua morte. Depois do susto, ela publicou a seguinte mensagem: “Gente, que história é essa que morri? Tava lavando o cabelo…” A frase se espalhou e passou a ser usada em outras situações, diferentes do contexto original. Até hoje ela é um bordão que surge quando alguém cai de paraquedas em algum assunto, por exemplo.

No começo da web 2.0, os memes já davam as caras em um dos fóruns mais polêmicos da internet, o
4Chan. Controversa desde o início, essa rede social, lançada em 2003 pelo americano Christopher Poole, ganhou fama de anárquica. Com publicações anônimas e um apagamento sistemático de postagens antigas, o 4Chan moldou suas próprias regras e diretrizes e ficou conhecido por abrigar todo tipo de conteúdo, desde o vazamento de informações do governo, pornografia e pirataria até, claro, muitos memes. Essa terra sem leis é solo fértil para que eles tomem forma e, potencialmente, arrebentem suas raízes para existir no resto do ciberespaço. É o caso do “trollface”, o rostinho sarcástico mal-intencionado que serve como assinatura para quem gosta de perturbar a paz alheia ou pregar peças em outros netizens.

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Outro exemplo vazado do 4Chan aconteceu com o cantor Rick Astley, dono do single ”
Never Gonna Give You Up“, de 1987. Esquecido por décadas no churrasco após seu único grande feito, Rick ressurgiu em 2007 através do evento “Rickrolling”. A pegadinha consistia em enviar links de notícias importantes, que, na verdade, direcionavam o leitor para a URL do videoclipe da faixa. A ação ficou tão famosa por meio de paródias, frames e GIFs que, no dia 1 de abril (dia da mentira) de 2008, o próprio YouTube trollou seus usuários adicionando links falsos em todos os seus vídeos de destaque. Resgatado pelo meme, Rick Astley desistiu da aposentadoria precoce e voltou para os palcos nos anos posteriores.

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Na ELLE Brasil, os memes já foram tema central da edição de fevereiro de 2018, onde cinco capas usaram e abusaram de hits da época, como “Que tiro foi esse?”, de Jojo Toddynho, “Miga sua loka” e “Intrigada”. Em agosto desse mesmo ano, a irreverência da ELLE também entrou em ação quando a revista impressa deixou de ser publicada pela Editora Abril. O tweet de despedida, “Brazil, I’m devastated”, parafraseando a cantora Lady Gaga ao anunciar o cancelamento de sua participação no Rock in Rio de 2017, chocou os leitores e rendeu risadas entre lágrimas. #ForçaGuerreira

 

Vamos mostrar cultura pra esse povo?

Desde 2007, o site
Know Your Meme computa dados de memes. Com uma base sólida de informações relacionadas à cultura popular da internet, essa enciclopédia em formato de wiki é utilizada com frequência como uma fonte de estudos. O fenômeno, contudo, não é nenhuma novidade para o meio acadêmico. O que foi defendido por Richard Dawkins no passado já é completamente distinto do que circula pelas comunidades virtuais, e seu conceito vem sendo atualizado desde a década de 1980 por pesquisadores como a psicóloga Susan Blackmore. Esse vírus que se espalha pela mente já ganhou também o seu próprio campo científico: a memética. Não à toa, filósofos, sociólogos e linguistas esbarram com o estudo teórico dos memes em seu dia a dia há um bom tempo.

“Nos últimos anos, temos acompanhado uma crescente legitimação do campo de estudos sobre memes, muito em função do reconhecido papel político que esses conteúdos digitais têm desempenhado não apenas nas últimas eleições, mas em diferentes momentos da nossa vida social. Estudar esse contexto nos permite compreender, entre outras coisas, representações, valores e sentimentos compartilhados coletivamente no âmbito das redes”, explicou Viktor Chagas, professor da Universidade Federal Fluminense e doutor em história, política e bens culturais. Ele é um dos criadores do
#MUSEUdeMEMES, um webmuseu lançado em 2015, que possui o maior acervo de memes brasileiros. “O #MUSEU nasceu de um interesse em discutir o fenômeno de forma aprofundada. Além de ser uma vitrine de divulgação científica, ele é também uma referência importante para pesquisadores de todo o Brasil que se debruçam sobre o tema. Naturalmente, a ideia dele é ser também uma provocação sobre o lugar da cultura popular de internet, um questionamento sobre o papel desses espaços e da memória popular”, diz Viktor.

Copia, só não faz igual

Cada país possui a sua própria maneira de elaborar e consumir um meme. Os gringos podem até dar risada e compartilhar os GIFs da “Nazaré confusa” ou da Cuca, personagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo, mas a percepção deles é quase sempre diferente da nossa. Isso porque o meme se constrói a partir do contexto cultural do lugar. “Em países como a China, por exemplo, em que há um regime de maior controle político sobre a informação, os memes assumem um caráter mais subversivo, combatendo e burlando a censura estatal. Nos Estados Unidos, por sua vez, os memes se somam a um contexto libertário e integram a cultura troll, que questiona e tensiona os limites da liberdade de expressão. No Brasil, é muito comum o investimento em um humor autodepreciativo. Nesse contexto, a estética e a linguagem de nossos memes seguem uma orientação similar. É comum que situações do cotidiano e pessoas desconhecidas, especialmente das classes populares, retratadas em situações extravagantes ou absurdas, sejam convertidas em memes”, apontou Viktor.

Enquanto na Rússia criar memes com figuras públicas é crime, aqui não existe (ainda) esse tipo de censura. Muito pelo contrário: os brasileiros são conhecidos mundialmente como reis do meme. Basta lembrar a 1ª Guerra Memeal, que aconteceu no Twitter, em 2016. O embate contra Portugal, que durou três dias, começou depois que uma página portuguesa ganhou notoriedade na rede utilizando um de nossos memes mais famosos da época, o “in Brazilian Portuguese we don’t say…” (em português do Brasil nós não dizemos…), porém adaptado para o país europeu. Os brasileiros não deixaram barato a omissão do crédito nacional e armaram a maior confusão. O assunto rendeu e foi parar nos assuntos mais comentados – até as marcas entraram na farra. Por fim, os portugues aceitaram sua derrota e o perfil que originou todo o conflito emitiu um comunicado de paz.

Em época de quarentena, perfis dedicados a disseminar memes pela timeline têm sido um escape para os dias mais difíceis. Com quase 1 milhão de seguidores, o perfil
Saquinho de Lixo, no Instagram, é um dos maiores agentes em prol da saúde mental. “O nome é muito representativo de como enxergamos algumas coisas, inclusive a nós mesmos. O diminutivo da palavra traz um ar fofo, puxa para o afetivo e carinhoso, mas, se parar para perceber, ainda se trata do saco de lixo, isto é, o invólucro utilizado para armazenar o que é considerado nojento, seboso e inútil. Mas quem é que costuma fazer esse juízo? O Saquinho surge um pouco desta ideia: de que no meio do que alguns julgam repugnante e inutilizável – como para nós foi o contexto e resultado das eleições de 2018 –, também há a oportunidade de reunir beleza, força e riso, só que em outros termos”, declara o coletivo, formado por Alan Pereira, Davi Moraes, Isabelle Strobel, Júlio Emílio, Luis Porto, Rodrigo Almeida e Sofia de Carvalho. “É um período de muita ansiedade e pessimismo, então pensamos que talvez a nossa página, assim como tantas outras, funcione como um cano de escape nosso e das pessoas que nos seguem. Ah, isso tudo mediado pelos *música de terror começa a tocar* algoritmos, que ninguém faz muita ideia de como funcionam.”

Os integrantes do coletivo se revezam e discutem pelo Whatsapp para decidir qual será o post seguinte. A curadoria pode ir do lixo ao luxo e, às vezes, ainda ganha uma pontinha de crítica social. No ano passado, Saquinho de Lixo participou da exposição
À Nordeste, no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, com a videoinstalação Memelito. “Acreditamos que há interseções muito interessantes entre os campos da arte, da política e dos memes”, completa o coletivo.

Enfim, a hipocrisia

Uma vez que o brasileiro aprendeu a transformar qualquer tipo de situação em meme, e isso inclui rir da própria desgraça, com a política não seria diferente. “Não existe meme sem contexto político ou social por trás, então, se a coisa vai mal, isso se reflete na linguagem do meme. Em um cenário pessimista, também há espaço para a criatividade. Não que isso deva ser utilizado como uma fórmula mágica para resolver problemas de longa data – tem coisas que só a política pública e o engajamento coletivo dão conta. Mas como uma provocação mesmo, de incitar o movimento, a reação e, por que não, o deboche”, comenta o coletivo.

Em ano eleitoral, qualquer candidato se torna alvo fácil de memes. Muitas vezes, no entanto, eles podem ser fabricados de propósito. Para reconhecermos essa dinâmica de apropriação pelas campanhas político-partidárias, é preciso entender também que, num cenário como esse, o meme pode efetuar funções distintas, como convencer um cidadão sobre determinado ponto de vista, estimular ações ativistas (como acontece com os memes feministas e os do movimento negro) ou, simplesmente, como um jeito simples de fomentar o debate na sociedade. “Em cada um desses usos, temos efeitos diferentes envolvidos. Em todos, porém, os memes têm se apresentado como uma oportunidade de garantir o acesso ao debate público a parcelas da população que não necessariamente participavam da vida política nacional. Ainda que sejam apenas uma porta de entrada, e que não pode parar por aí, os memes cumprem um papel importante na nossa vida democrática: incluir esses grupos no debate”, descreveu Viktor. Em seu livro,
A Cultura dos Memes. Aspectos Sociológicos e Dimensões Políticas de um Fenômeno do Mundo Digital, publicado este ano pela editora Edufba, o professor reuniu autores de nove países, com discussões plurais sobre esse e outros temas. A obra é a primeira do gênero no Brasil e contém artigos que discutem o caráter contemporâneo dos memes, sua linguagem, seus usos como recurso para o ativismo político e os principais desafios para lidar com o fenômeno.

Com o crescimento do movimento conservador e de extrema direita nas redes desde as eleições de 2018, o GIF “Eu sou gado do Bolsonaro” também vem sendo utilizado por seguidores antibolsonaristas, e até mesmo pelos eleitores do atual presidente do Brasil. Foi nesse mesmo cenário que a boneca mais famosa do mundo se tornou um símbolo de sátira de visões elitistas e preconceituosas. Incapaz de reconhecer os seus privilégios, o meme “Barbie Fascista” inundou a timeline com frases irônicas sobre meritocracia, racismo inverso e campanha contra políticas de justiça social – tudo isso enquanto a personagem branca, loira e magra posa usando looks de grife, em carros conversíveis e iates.

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Vai ser choque de monstro

Se teve gente que ficou famosa (alô, Gretchen), também teve que ganhou dinheiro. Não é de hoje que o mercado tenta surfar nesse mesmo fluxo e rapidez com que os memes se propagam. Reaproveitando os temas mais comentados do momento, numa tentativa de se aproximar do consumidor, empresas buscam assiduamente um jeito de viralizar. Mas não se deve confundir o meme com o viral. Viral é um conceito de informação que se espalha sem sofrer alterações, ou seja, começa e termina nele mesmo. Hoje em dia é comum encontrar vagas de trabalho com a seguinte descrição: “Conhecer memes e saber usá-los é um diferencial”.

De olho nesse recurso, a agência de publicidade responsável pelo perfil bem-humorado
Cemitério Jardim da Ressurreição, localizado em Teresina (PI), conseguiu enterrar a sete palmos a visão tenebrosa que se tem da morte. O #Cemi, como ficou conhecido pelos seguidores, bombou em 2017 utilizando memes para divulgar conteúdos e vender seus produtos. Com mais de 160 mil seguidores, o que resultou em um aumento de 56% na venda de jazigos, segundo os proprietários, o case de sucesso rendeu ainda o prêmio principal na edição do Social Media Week São Paulo, um dos eventos mais importantes do segmento publicitário, daquele mesmo ano.

 

Uma publicação compartilhada por Jardim da Ressurreição (@jardimdaressurreicao) em 11 de Jan, 2019 às 1:30 PST

Mas não é toda marca que tem a mesma sorte. “É notável como a linguagem dos memes tem sido incorporada pela publicidade. Esse movimento faz parte, aliás, de uma dupla apropriação, na qual o marketing e a publicidade procuram incorporar a linguagem dos memes, ao mesmo tempo que a linguagem dos memes procura se apropriar das dinâmicas do marketing e da publicidade no ambiente digital. O problema é que quase sempre o publicitário não domina plenamente o universo dos memes, e o modo como mobiliza alguns elementos estéticos e de linguagem soam equivocados aos usuários das mídias sociais, gerando uma espécie de efeito de tiro pela culatra”, aponta Viktor.

Para Madama Brona, colunista da ELLE Brasil, o precioso do meme é sempre a sua espontaneidade. “Os usuários que publicam os melhores memes, muitas vezes, não tinham intenção alguma de produzir algo viral. Quando existe essa preocupação toda, geralmente o conteúdo fica chato. É difícil de se conectar com ele. Quando você cria sem grandes pretensões, aí sim ele se torna poderoso. Os memes se alimentam da vida”, diz.

Antes de escrever horóscopos e assumir sua drag astrológica nas redes sociais, Bruna Paludo, seu nome de registro, foi advogada e trabalhou com assuntos delicados, como fraude, violência doméstica e escravidão. “Coisas pesadíssimas”, define. Segundo ela, foram os memes que a deixaram famosa na internet. “Eles me salvaram. É uma relação especial que temos. Um jeito de deixar o meu dia mais leve, de me lembrar das pessoas, e funcionam até mesmo na hora de flertar.”

Investir nos memes deu certo. Há três anos, os seguidores de Madama Brona esperam ansiosos pelos horoscopinhos – como ela intitula carinhosamente suas análises do zodíaco. “As pessoas adoram dar risada de si mesmas. O horóscopo, enquanto astrologia dos signos, lida com o ego. Quando ele vem acompanhado por um meme, adiciono uma camada nova de informação e todo mundo se conecta fácil com aquilo. Eles são o tempero final do meu trabalho. Um texto sozinho, sem meme, vira outra coisa”, completa. Com uma vasta coleção, ela revela que já possui mais de 20 mil arquivos, incluindo prints screens e vídeos, em seu celular.

Embora sua engrenagem principal seja o humor, os memes também entregam outras camadas de informação. “Existem memes e memes, mas é possível distinguir de onde eles vêm. Um meme queer, de esquerda, reacionário, hétero, branco. Todos são diferentes. E, quando você percebe essas peculiaridades, consegue entender quais são os grupos sociais que estão se expressando através deles”, disse Brona.

Assim como já acontece com os emojis, os memes chegaram para democratizar e facilitar a maneira como nos comunicamos. Como parte intrínseca do DNA da internet, ainda não dá para prever qual mutação eles irão sofrer no futuro. Se sua essência remixada e simplista irá cair em desuso, também não dá para saber. Agora, se os memes fazem bem ou mal, tudo depende da maneira como você os usa. No momento atual, a única coisa que se entende é que eles são a propaganda mais eficaz da era digital.

Humor & piadas

A convite da ELLE Brasil, o Saquinho de Lixo fez uma curadoria especial dos cinco melhores memes publicados até hoje em seu perfil, de acordo com as vozes da sua cabeça:

Hannah Montana ”defenda o SUS”

Moodboard pé sujo

Neonordestino

Suco gástrico

Ratos ”te adoro desesperadamente”

 

Outras memepédias para seguir:

Miga sua loca  | White People Problems | Melted Videos | GIFs para a galera de humanas | O Brasil que deu certo