Se a internet acompanhou evoluções, a do autorretrato foi uma das maiores. O auge parece rolar agora, no Instagram, mas a real é que muita rede social, do tipo de autoapresentação, engatinhou (e muito!) para que as atuais selfies em feeds e stories pudessem correr.
Mas, antes de mais nada, uma breve linha do tempo para entender como isso afetou a imagem de moda: o milênio virou. Em pleno ano 2000 uma série de facilitadores chegou por diversas direções. O principal deles são as câmeras frontais, surgidas no Japão, para ajudar nas teleconferências. Elas são usadas bastante nos Estados Unidos, ao longo de toda a década, e efetivamente popularizadas em solo nacional no ano de 2010, depois que a Apple colocou uma dessas na quarta geração do iPhone. A democratização da imagem com as câmeras digitais e com as câmeras frontais anda junto com o advento de plataformas de autoapresentação, como o Blogger (2000), o Fotolog (2002) e o Flickr (2004). Elas tornaram ainda mais acessível o desenvolvimento de páginas pessoais para o compartilhamento de fotos.
Estão aí a faca e o queijo na mão para quem é amante de moda, tem opinião sobre o assunto, se expressa visualmente de maneira interessante e não precisa da validação de um veículo robusto para existir. Ela é o seu próprio. Ainda que a intenção inicial não fosse se alçar à fama, mas, sim, construir diários pessoais despretensiosos, o esquema funcionou bem, e tão organicamente bem, que o resultado foi um sucesso absoluto. Eram imagens contrapostas à plasticidade dos grandes títulos de moda e campanhas publicitárias. Logo, mais próximas da realidade de cada um e, portanto, possíveis. Assim, nasceram os blogs e os blogueiros de moda.
Isso afeta, logo de cara, o jeito como se faz comunicação de moda. Patricia Handschiegel lança o StyleDiary.net, em 2004, compartilhando as suas compras recentes, os seus looks do dia compostos dentro de casa. Naquele mesmo ano, Bryan Yambao, o Bryan Boy, passa a compartilhar as suas paixões e histórias de grifes preferidas, como Marc Jacobs. Susie Lau, até então a Susie Bubble, cria o Style Bubble, para desovar os inúmeros comentários que ela faz em fóruns online para aficionados por moda, como o The Fashion Spot.
Escrever sobre moda, fotografar a si mesmo e postar na web vira uma tarefa aparentemente tão simples que não demora muito para uma blogueira de 11 anos virar estrela. Trata-se de Tavi Gevinson, com o seu Style Rookie, um blog lançado em 2008, com fotos dela mesma e tiradas engraçadinhas de texto sobre esse mundo tão sério e de nariz empinado. Em 2010 ela é perfilada na revista The New Yorker e, em 2012, se apresenta em um TED Talk. Chamada para sentar na primeira fila das principais semanas de moda internacionais, Tavi entra para a história ao tampar a visão de parte da velha guarda da moda (passada literalmente para trás) ao usar um chapéu enorme em formato de laço na cabeça.
Essa imagem pode ser entendida como o símbolo de uma geração de comunicadores de moda nascidos na web, sem compromisso com ninguém (muito menos com marcas), e que, por isso, podiam escrever e usar roupas ao sabor da diversão e do gosto pessoal. Em outras palavras, através daquelas plataformas, eles quebraram os protocolos rígidos dos veículos tradicionais ao postar tudo em selfies que acumulavam cada vez mais fãs. A forma como experimentamos moda mudou tanto no conteúdo quanto na imagem.
Em 2006 o Twitter chega junto, facilitando o compartilhamento de posts e criando uma linhagem até então cronológica de publicações e de fotos. O blogueiro pode lembrar os seus fiéis seguidores de que acabou de disponibilizar um material novo e essa legião de fãs cresce ainda mais. E é aí que alguns nomes veem a oportunidade comercial na coisa. Uma delas é Rumi Neely, do Fashion Toast, blogueira que transformou o seu acesso de visitantes em vendas de peças vintage e foi reconhecida pela CNN Money pelo faro de empresária. Temos também Emily Weiss, do Into The Gloss, e Leandra Medine, com o Man Repeller, mais tarde transformando o seu veículo de moda em formato de blog em uma revista digital oficial, profissional, reconhecida, ainda que independente.
Aimee Song e Chiara Ferragni. Instagram/Reprodução
Leandra Medine e Tavi Gevinson. Instagram/Reprodução
Começa assim, a abertura de caminhos para uma segunda onda de blogueiras. Elas aparecem no final dos anos 2000 e no início dos 2010 e é fundamental para entender a solidificação das selfies e dos autorretratos nas redes. Estas, aliás, também sofreram mais algumas evoluções. Novas plataformas sociais de autoapresentação entram para o jogo, como o Lookbook.nu, para upload de fotos com o look do dia, e o Tumblr que, apesar de microblog geral, caiu no gosto dos fashionistas por muitas vezes valorizar a imagem em detrimento do texto. Em paralelo, crescem os sites de street style, como o The Sartorialist, de Scott Schuman, e o Stockholm Streetstyle, do casal Caroline Blomst e Daniel Troyse. Aqui, a foto também é inserida em primeiro plano, impulsionando, assim, nomes, rostinhos e lookinhos de blogueiras como Chiara Ferragni, do The Blonde Salad, Aimee Song, do Song of Style, e muitas outras.
Em 2015, essa nova onda está tão firmada que o site Refinery 29 publica o seguinte texto: “A nova geração de blogueiras nem sequer tem um blog”. Sem juízo de valor sobre os conteúdos gerados, a publicação antecipava o fato de que essas profissionais estavam colocando a selfie, o autorretrato em um outro patamar. Agora, elas estão munidas de câmeras profissionais, o último look da temporada, assinado em parceria com a marca usada, vestido para o evento para o qual elas foram pagas para estar. Esse novo fluxo de blogueiras se aproxima novamente da ideia de celebridade, evitando uma imagem caseira e valorizando a grande edição, abraçando também o marketing na produção de conteúdo. Em poucas palavras, se a primeira geração ficou marcada pela liberdade, esta volta a namorar com padrões e reafirma alguns protocolos tradicionais.
As informações, bem como as imagens que as acompanham, começam a viver ciclos diferentes com o passar do tempo, bem do jeito que a moda gosta. Se durante uma temporada as imagens do feed andam carregadas, a nova estação baixa o filtro e a saturação. Quando degringola para o normcore, ela volta novamente para uma estética mais divertida ou ultraelaborada. Às vezes, você precisa ter algo a dizer, e, em outros momentos o mundo só quer mesmo um vídeo engraçado e banal para sobreviver. Aí reina a era do Instagram e das redes sociais como o Snapchat e o TikTok, plataformas responsáveis por mudar a fotografia ao longo dessa última década.
Selfie de Kim Kardashian. Instagram/Reprodução
Os aplicativos, que podem ser interpretados como a grande consequência de tudo isso, se dividem entre diários despretensiosos e autobiografias virtuais, com direção visual e marketing organizados. Eles oficializam e profissionalizam o influenciador, mas também democratizam imagens e informações. Eles hypam poses e ajudam na autoestima de uma galera, enquanto impulsionam as duckface mercadológicas das garotas Kardashian-Hadid. De hot-dog-legs a pau de selfies, essa história vai balançar entre autoexpressão e um mercado muito poderoso de profissionais especializados em poses e cliques de app. É dessa forma, por exemplo, que hoje em dia exista espaço para David Suh, fotógrafo de imagens para redes sociais, que dá cursos sobre a construção de fotos mais instagramáveis.
Mas o que é selfie, autorretrato, afinal?
Não é justo, no entanto, dizer que toda essa obsessão com a selfie, a ponto de afetar a indústria da moda e da fotografia, seja o mais puro suco de contemporaneidade. Muito pelo contrário, a fascinação por si mesmo, bem como por nossa própria imagem, é mais antiga do que podemos imaginar. Data do século 16 o Klaidungsbüchlein, que pode ser traduzido livremente como “o livro das roupas”, um compilado de iluminuras, parte da história da Alemanha renascentista, feito por Matthäus Schwarz. Esse homem, durante aquela época, se retratava em Augsburg de tal maneira que o material criado por ele, hoje em dia, além de um registro histórico, pode ser também entendido (de uma forma bem-humorada) quase como um Instagram do período da arte monástica, com Schwarz documentando a si mesmo e a seus lookinhos.
Narcisismo, empoderamento, vaidade, autoestima, se levar ou não a sério, abrir uma janela para o mundo, investigar intimamente a si, além de se autodocumentar para a história. A selfie, ou o autorretrato, é tudo isso e muito mais. E ela não é coisa nova na fotografia. Se estamos próximos de completar 200 anos de cliques, há pelo menos 160 existe selfie, como dá para ver na foto que o americano Robert Cornelius fez de si próprio. Em 1914, foi por meio de uma foto tirada no espelho que a grã-duquesa Anastasia Nikolaevna (isso mesmo, a filha do último czar russo) registrou a sua fisionomia real para o mundo. Ainda bem, porque ela foi morta precocemente quatro anos depois.
A grã-duquesa Anastasia Nikolaevna em autorretrato feito no espelho, em 1914.
Muito menos o autorretrato é coisa de agora. Nas artes visuais esse tipo de imagem existe em diferentes épocas, nos mais variados formatos e estilos. Em 1665, Diego Velázquez se colocou na pintura As Meninas, um efeito experimentado também por Rembrandt, Van Gogh, Gustave Courbet, Frida Kahlo, Andy Warhol, Lucien Freud. Esse último, durante uma aula em 1964, para estudantes de pintura da Norwich School of Art, disse: “Você vai morrer em breve e eu quero que você faça autorretratos nus e coloque tudo o que sente de relevante em sua vida e o que pensa a respeito de si nele. Tente torná-lo a narrativa mais reveladora e crível de você. Faça uma declaração visual, deixe a timidez de lado e extrapole. Tire a roupa e se pinte apenas uma vez”.
À esq., As Meninas, de Diego Velázquez e, à dir., Autorretrato, de Lucien Freud.
A frase do pintor pode ser uma pista do porque, histórica, psicológica e sociologicamente, nos encantamos por nós mesmos, nos fotografamos e nos deixamos para a posteridade – ainda que essa posteridade seja a fração de 24 horas de um story. O retrato que Beyoncé fez de sua gravidez, publicado em seu perfil no Instagram, pode ser tomado como um exemplo. No episódio, ela chamou o artista Awol Erizku para capturar a sua própria imagem grávida aos outros, com a maior clareza, o maior controle possível, seguindo os preceitos nos quais ela acredita, as visões de mundo que apoia sobre ela mesma e sobre aquele momento. Vale observar que a imagem de uma mulher grávida já foi considerada um impudor durante muito tempo e é aí que a visão que ela deixa de si, toda deusona, esperando os seus gêmeos, ganha ainda mais força, quando analisada dentro dessa perspectiva. Ainda que esse controle não seja completo, Beyoncé, ou quem quer que tire uma foto de si, mostra um esforço de como quer ser vista pelo mundo e, consequentemente, de como se enxerga.
Retrato de Beyoncé grávida, postado em seu perfil do Instagram. Awol Erizku/Reprodução
A selfie levanta reflexões, como o fato de que você se reconhece enquanto um indivíduo digno de ser retratado e, ainda por cima, enxerga a beleza nisso. Nem sempre é só sobre um biscoito. Muitas vezes é sobre uma tranquilizada própria com o espelho. A saída, sempre, é uma boa dose de autoconsciência e equilíbrio. Não é necessário o aplauso de alguém para seguir em frente, nem uma total presunção, tamanha segurança de si mesmo, a ponto de não querer um pouco de avaliação externa. Só não vale cair no mito original de Narciso, que só ouve e admira a si mesmo, anulando os sujeitos de fora e, consequentemente, anulando a si próprio. Porque quem vê muito o outro não se vê, mas quem olha demais pra si também não enxerga mais ninguém.