O dilema do momento

A discussão sobre as redes sociais ganhou os holofotes com o documentário da Netflix. Quem fica, quem sai? Confira o que o diretor Jeff Orlowski, o especialista em ética Tristan Harris e a jornalista Patrícia Campos Mello têm a dizer sobre o assunto.

Não deu para ficar indiferente ao O Dilema das Redes. Houve quem anunciasse sua saída das redes sociais após assistir ao documentário, que estreou na Netflix no início de setembro. Foram várias matérias e resenhas dedicadas ao filme, elogios e críticas. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso chegou a fazer menção em sua entrevista no programa Roda Viva e a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz escreveu sobre o filme no Instagram.

O barulho não foi gratuito. O Dilema das Redes entrevistou profissionais-chave na construção de plataformas como o Twitter, Facebook, Instagram, YouTube e Pinterest, que se mostraram críticos e, por vezes, arrependidos – muitos deles não deixam os próprios filhos acessarem as redes sociais. São nomes como Justin Rosenstein, que ajudou a criar o famigerado botão de curtir do Facebook, Aza Raskin, o inventor do scroll infinito, e a ainda Bailey Richardson, que estava entre os dez primeiros funcionários do Instagram.

Bem além dos benefícios que conhecemos das plataformas, como a conexão valiosa entre pessoas ou o fato de ser um importante veículo de expressão para movimentos minoritários, o roteiro constrói um cenário quase apocalíptico. Aborda temas como o impacto negativo das redes e da infindável caça por likes na autoestima e saúde mental de jovens e exibe gráficos indicando o aumento no número de suicídios de pré-adolescentes. De acordo com dados dos Centers for Disease Control and Prevention, a taxa de suicídio entre garotas de 10 a 14 anos praticamente triplicou nos Estados Unidos entre os anos de 2007 a 2017. O documentário destaca ainda o ano de 2009 – quando as redes sociais ficaram disponíveis nos celulares – como o ponto da curva em que o crescimento se acentua.

“Faço uma analogia com a indústria de combustível fóssil. Tempos atrás acharam esses recursos: ‘Olha que incrível isso para a humanidade’. Só anos depois descobrimos que há consequências.” Jeff Orlowski

O filme trata também da tecnologia usada para a retenção da atenção do usuário, ao usar recursos simples, como a atualização de novas postagens no topo da página, conforme ele vai deslizando a tela para baixo em seu dispositivo, até técnicas mais avançadas, apoiadas na psicologia. Aborda ainda o uso dos muitos dados que usuários dispõem nas plataformas, em suas buscas ou interações, para a venda de propagandas segmentadas a eles e a influência do sistema de recomendações de vídeos, que busca os interesses próximos dos usuários, no crescimento da polarização política.

“Faço uma analogia com a indústria de combustível fóssil. Tempos atrás, acharam esses recursos: ‘Olha que incrível isso para a humanidade’. Só anos depois descobrimos que há consequências”, diz a ELLE o diretor Jeff Orlowski, que dirigiu dois documentários de temática ambiental antes de O Dilema da Redes. Ironicamente, o americano teve a ideia para a produção depois de ler posts no Facebook em que funcionários criticavam o modelo de negócio das companhias de tecnologia – e seriam posteriormente entrevistados pelo diretor no filme.

Um dos principais depoimentos do documentário é de Tristan Harris. Em 2013, o americano era um designer ético do Google, receoso sobre como as decisões de poucas pessoas da companhia afetavam bilhões pelo mundo. Preocupado com um aspecto “viciante” do Gmail, Harris resumiu suas inquietações em um documento interno batizado de “Uma chamada para minimizar a distração e respeitar a atenção dos usuários”. A apresentação repercutiu entre milhares de funcionários do Google, mas a alta cúpula preferiu ignorar. Tristan, então, levou a conversa a público em palestras do TED, ao programa da TV americana 60 Minutos e ajudou a fundar o Center for Humane Technology. “Focamos políticas de controle e tecnologias. Somos do Vale do Silício e temos relações com várias pessoas da indústria”, explica a ELLE.

“Se você discorda de alguém na política, mostre a essa pessoa o conteúdo da sua rede e peça a ela que mostre a dela. Vocês verão que estão vivendo em mundos completamente diferentes.” Jeff Orlowski

Uma das principais críticas do Facebook, no entanto, foi o fato de o documentário não ouvir pessoas que trabalham hoje nessas companhias. Quase um mês após a estreia do filme, a plataforma rebateu O Dilema das Redes em um longo comunicado, afirmando que devemos ter discussões sobre o impacto das redes sociais nas nossas vidas, mas que o filme reduz isso ao sensacionalismo, oferecendo uma visão distorcida sobre como as mídias sociais funcionam e criando um bode expiatório conveniente para problemas complexos. “Os criadores do filme não incluem ideias daqueles que atualmente trabalham nas empresas ou quaisquer especialistas que tenham uma visão diferente da narrativa do filme. Eles também não reconhecem – criticamente ou não – os esforços já realizados pelas empresas para resolver muitas das questões que levantam”, diz o comunicado. Em sete tópicos, que passam por algoritmos e privacidade de dados, o texto defende também o trabalho que a empresa vem fazendo contra fake news e pela integridade das eleições. E admite que cometeu erros na eleições presidenciais americanas de 2016.

O Brasil aparece justamente quando o filme trata desse tópico. No documentário, o presidente Jair Bolsonaro é citado como exemplo de uma campanha impulsionada pelas redes sociais e no contexto de uma crise democrática global. Como contextualiza a jornalista Patrícia Campos Mello em A Máquina do Ódio: Notas de uma Repórter sobre Fake News e Violência Digital (Companhia das Letras), o Facebook é a terceira principal via de informação dos brasileiros. Já o WhatsApp é a fonte mais importante, utilizada por 79% da população, segundo pesquisa do Senado de 2019.

No livro, lançado em junho, ela explica com profundidade como as redes sociais são usadas por líderes populistas pelo mundo, além de relatar a violenta campanha de difamação da qual foi alvo. Pouco antes do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Patrícia publicou uma série de reportagens que denunciavam o financiamento de disparos em massa de notícias falsas no WhatsApp contra Fernando Haddad, que beneficiavam Bolsonaro. E a jornalista, que já fez coberturas na Síria, no Iraque e no Afeganistão, precisou pela primeira vez de um segurança, em São Paulo.

“Talvez os instrumentos mudem um pouco, porque a Justiça e as plataformas vão combatê-los. Mas a tecnologia evolui, vão surgir outros. Temos que estar sempre alertas.” Patrícia Campos Mello

“Acho que o TSE está muito mais assertivo, proativo, proibiu o disparo em massa, que é um dos instrumentos de disseminação de desinformação”, conta Patrícia a ELLE, dois anos depois da reportagem. Para ela, o uso de dados de eleitores em campanhas veio para ficar, porque a customização torna a propaganda muito mais eficiente. “Talvez os instrumentos mudem um pouco, porque a Justiça e as plataformas vão combatê-los. Mas a tecnologia evolui, vão surgir outros. Temos que estar sempre alertas.”

Patricia enxerga três frentes para mudar esse cenário. Primeiro, uma legislação que responsabilize as plataformas sobre o que é divulgado nelas, mas que não criminalize cidadãos comuns, usuários de redes sociais. Da mesma forma, defende, é preciso responsabilizar criminalmente pessoas e organizações que façam operações de desinformação de forma orquestrada. A sociedade civil também deve contribuir, pressionando econômica e eventualmente as plataformas. “Houve, por exemplo, o movimento da Stop Hate for Profit, que organizou um boicote de grandes anunciantes durante um mês (julho) ao Facebook, pela percepção de que a plataforma não estava combatendo de forma suficiente o discurso de ódio.” Por último, uma educação midiática, que instrua sobre o uso das redes sociais, alerte sobre a manipulação de informação e oriente usuários a ter uma dose de ceticismo em relação às mensagens recebidas, além de responsabilidade com aquelas compartilhadas.

“A democracia não irá funcionar se cada um tiver fatos customizados.” Jeff Orlowski

“Minha grande esperança é que o público questione: de onde estou tirando minhas informações? Por que estão sendo entregues a mim?”, diz Orlowski. “Se você é um usuário assíduo das redes sociais e discorda de alguém na política, mostre a essa pessoa o conteúdo da sua rede e peça a ela que mostre a dela. Vocês verão que estão cercados por informações diferentes, vivendo em mundos completamente diferentes”, diz em uma referência ao isolamento em bolhas de pontos de vistas similares provocados por algoritmos. O diretor alerta para a impossibilidade de resolver problemas como mudanças climáticas e equidade racial se as pessoas não chegarem a um consenso sobre os fatos básicos relativos a essas questões. “A democracia não irá funcionar se cada um tiver fatos customizados.”

Para Orlowski, os problemas são solucionáveis. “São códigos que as pessoas criaram e que podem ser alterados. Ou as plataformas vão fazer por conta própria, ou a regulação vai forçá-las a fazer. O que me preocupa é o quanto isso vai demorar e as consequências”, diz. Já Harris defende que a mudança deve envolver toda a sociedade. “Entramos nesta era das trevas, em que as pessoas não sabem em que acreditar, em que perdemos a verdade. Não podemos contar com as plataformas para consertar isso. Eles não podem, em um passe de mágica, fazer com que todos que estão compartilhando informações falsas parem de fazer isso. Precisamos mudar em um nível cultural, compartilhando esse entendimento, fazendo com que as pessoas assistam ao documentário, conversando com nossa família, na escola, no trabalho.”

“Entramos nesta era das trevas, em que as pessoas não sabem em que acreditar, em que perdemos a verdade. Não podemos contar com as plataformas para consertar isso.” Tristan Harris

Orlowski não descarta os benefícios de uma rede social. “São sistemas que podemos usar para nos conectar e também podem ser positivos? Sem dúvida. Acho que poderíamos ter boas plataformas, que são projetadas para a sociedade, mas não é o caso de YouTube, Instagram e Facebook.”

Para Tristan, há modelos mais positivos para essas redes, mas provavelmente são diferentes do que temos agora. “Espero que a gente migre para algo melhor. Como Jarron Lanier (cientista da computação e autor de Dez Argumentos para Você Deletar Agora Suas Redes Sociais) diz no filme: ‘Os críticos são os verdadeiros otimistas, porque dizem ‘isto é burro, podemos fazer algo melhor’.”