Ponto de interrogação

Apenas um pequeno mantra para antes de o dedo desbloquear a tela.

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Ilustração @viamagalhaes

Oh yeah, well, all right
Let’s rock, tonight
All night
Ramones

Da próxima vez que desbloquear a tela do celular, tente não ser sugado. Não só pelos likes. Não só pelo impulso de deslizar o dedo sem pensar em nada.

Tente não ser sugado. Pela necessidade de tudo comentar, de a tudo responder. Pelas mentiras que são espalhadas de propósito, feito uma peste de ratos com patrocínio multinacional.

Talvez você possa flutuar um pouco, mas tente não ser sugado. Pelo algoritmo racista. Pelo algoritmo que finge te servir enquanto tenta moldar suas entranhas. Pelo algoritmo que não se fez sozinho, e que responde aos interesses de cofres e cérebros que sonham com cofres.

Talvez você já tenha sido puxado, mas tente não ser sugado. Pelo pelotão do cancelamento. Pelo batalhão do descancelamento. Pelos exércitos de bots repetidores, metralhadoras de ódio. Pelos humanos automatizados, mais tristes que os robôs, marchando em fila.

Tente não ser sugado. Pelo pânico de ser sugado. Pelo pavor de ser sugado. Pelos CEOs arrependidos, cada vez mais milionários, que dizem que você não tem alternativa senão ser sugado.

Tente não ser sugado, mas, se for, acredite que você pode reverter a situação. Que você ainda pode fazer algum tipo de escolha além da que te oferecem.

Da próxima vez que desbloquear a tela, não pense nela como um inimigo invencível ao qual você se entrega passivamente, esperando que te use e te diga o que fazer.

Tente fazer algo que diga alguma coisa. Como falar com alguém. Como encontrar alguém. Como se conectar com alguém. Não como esperam que seja. Quando acontecer você vai saber porque vai ser diferente. Não de um jeito esquisito nem na linha “nossa, só essa pessoa me entende”. Isso geralmente dá ruim. Mas de um jeito que faça você se entender melhor com você e com o que você quer do mundo. Gente que te faça querer mudar as coisas pra melhor, em vez piorar tudo, de te afogar em lamentações e ideias destrutivas.

Tente se lembrar de que um celular é um telefone, de que uma rede também é duas latinhas com um fio conectado. E que, entre milhões de frases feitas e palavras ocas, é possível conversar de verdade. Criar conexões. São tantas distrações e às vezes a gente esquece que pode. Que a rua é feita de gente, que precisa do espaço público, mas que, na falta do ar livre, pode espalhar essa ideia no ar. Lembra do Ramones, we want the airwaves.

Tente não esquecer que a gente pode. Sei lá, entre um erro e outro, dar certo.