Ponto de interrogação

Quais são as suas lembranças com músicas cantadas por mulheres?

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Ilustração @viamagalhaes

A memória mais antiga que tenho da imagem de uma cantora em ação é Clara Nunes mandando “Ijexá (Filhos de Gandhi)” num clipe daqueles do Fantástico. De imagem assim estática, Madonna na camiseta dada pela minha tia. Bem oitenta, branca, a foto da Madge em p&b, uma borda rosa e amarela estampada de oncinha. Eu devia ter uns 6 anos.

Madonna seguiu firme na minha trajetória de apaixonada por música, enquanto Clara Nunes só voltou muito depois. Mas naquele dia, assim como no dia em que ela morreu e passaram na TV um remix de suas músicas e vídeos, lembro de achá-la uma mulher maravilhosa, quase uma heroína, um ser sobrenatural, cheia de enfeites.

Também lembro das capas de Gal Costa. Índia, que era do meu pai. Fantasia, com “Açaí”, “Massa real” e, a preferida das reuniões de família, “Festa do interior”. Elba Ramalho também fazia sucesso na casa da minha tia.

Minha mãe teve um momento Baby Consuelo e lembro muito dos looks punk, new wave qualquer coisa, cabelo colorido. Só anos depois fui conhecer a Baby Novos Baianos, maravilhosa em muitas fases.

E Rita Lee. Meu disco de infância dela foi Bombom, a capa meio pop art, achava ele bonito e misterioso. Embora não pensasse com essas palavras, era uma sensação nomeada posteriormente e que, por isso mesmo, podia ser bem outra coisa. Tinha “Desculpe o auê”, mas minha preferida era “On the rocks”. “É uma neurose/ Uma overdose/ Sou dependente do amor!/ Beibeeee, meu coquetel de paixão, com mel e limão/ On the rocks, on the rocks, on the rocks”. Não tinha a menor ideia do que significava, mas soava massa. Anos de análise passam pela minha cabeça pensando nesse trecho rs.

Música sempre foi pra mim uma coisa muito pessoal. É clichê dizer que música é essencial, que não dá pra ficar sem, mas sabemos que muita gente manda essa pra fazer a linha. Mas quem sabe sabe o que é a companhia de uma música quando o bicho pega. Ou como ela pode ficar marcada na memória quando milhares de dias e horas simplesmente desapareceram na peneira do tempo.

Penso aqui especialmente nas cantoras, nessas mulheres que davam notícias de coisas e sentimentos em canções tão importantes. Que com suas vozes e estilos, cabelos, vestidos e gestos disparam séries de identificações, sonhos e desejos.

Tina Turner e “We don’t need another hero” no rádio do carro enquanto meu pai me levava pra escola. Diana Ross sendo dublada no programa Silvio Santos. Brenda Russell com “Piano in the dark” na trilha de Vale Tudo, com o casal Afonso e Solange na capa. Lembro de um dia no estacionamento do aeroporto de Cumbica, Gal, “Vaca profana”. “E o resto inunde as almas dos caretas” foi o que pegou naquele dia, nunca me esqueço disso. E não foi quase nada, uma música no rádio, espera, silêncio e barulho de grandes aviões.

Daniela Mercury e “O canto da cidade” bate até hoje, Marinêz e a banda Reflexus cantando “Madagascar” no Globo de Ouro, um pouco fora da ordem cronológica, um novo arranjo que meu cérebro inventou agora. Cindy Lauper colorida, Nina Hagen fazendo careta de garota de Berlim, a gente vai montando historinhas com nossas garotas. Meu Deus, Whitney Houston cantando “The greatest love of all”. A gente não entendia nada da letra, mas ela fazia ser intenso. Maravilhosa demais, linda e, como entendi tempos depois, também muito triste.

Tenho uma queda por música de bad, é verdade. Minha mãe conta que cantava pra eu dormir uma música da cantora Katia (sim, a Katia sempre lembrada por ser cega, muitas vezes preconceituosamente). Chama-se “Lembranças”, vai vendo. Escutem e vocês entenderão, é uma pancada daquelas pesadíssimas com voz doce, composta pra ela pelo Roberto Carlos. É linda na real. E romântica no talo. Corta pra uma adolescente absolutamente dramática.

A adolescência e parte dos 20 geralmente trazem nossas musas, aquelas que vamos de fato copiar. Madonna primeiro. Depois Courtney Love fase Live through this. Muito, intensamente. Kim Gordon, a mais cool, a que dizia o que eu achava sexy em cada movimento. Björk e PJ Harvey dia e noite. Hope Sandoval com seu cabelão, sua sainha e sua voz de pele macia. As irmãs Kim e Kelley Deal, do Breeders.

É interessante lembrar que nos anos 90 e início dos 2000 durante muito tempo quase tudo o que eu ouvia era feito e ou cantado por mulheres. L7, Bikini Kill, Pin-Ups Babes in Toyland, Hole, Belly, Liz Phair, Pin-Ups, Fiona Apple, Drugstore, Tori Amos, Erykah Badu, TLC, Lauryn Hill. Muitas me levaram a ícones de gerações tipo Joan Jett, Poly, do X Ray Spex, Stevie Nicks, do Fleetwood Mac. Debbie Harry, Siouxsie, só as babado.

Fora os momentinhos. Tive um bem forte de Kate Bush, que no fundo nunca passou. O que mais me pegava nela era esse lance de dançar num outro mundo de mil personagens. Outro de divas rainhas que você ouve chorando, tipo Nina Simone. Ai, o momentinho Janis Joplin foi bem fofo, tenho muito carinho. Também não passa porque depois que você ouve a vida muda.

Ouvir certas coisas na voz de uma mulher quando você está se tornando uma e ser pega pela música perfeitamente envolvida com aquelas palavras é coisa que deixa marca. Aliás, Alicia Keys, jamais superei ela ligando pro Michael, gente do céu.

O evento Beyoncé “Crazy in love”, já uma jovem adulta. Não sei vocês, mas eu pirei real, de dançar em cima da mesa. As festas cheias ou sozinha com M.I.A. no talo, por causa dela conheci a maravilhosa Deize Tigrona, virei muito fã.

O dia em que eu falei com Amy Winehouse no telefone pra uma entrevista, depois de ter lutado pra conseguir uma capa de jornal para a cantora jovem e então desconhecida no Brasil. Ela me emocionou demais, viva e com sua morte confusa e apressada.

Nos últimos anos, não tive tantos novos amores de minas na música, exceto dois. Lana Del Rey. Me julguem, eu adoro várias músicas, tô nem aí. Ela é um lado meu do drama caricato que não vou mais esconder, quem não gostar que lute. Jup do Bairro. Rap, conceito, letras porrada, força, ela é realmente especial e acima da média.

Quem me conhece vai dizer que esqueci de falar da Patti Smith. É que ela é muito especial pra mim, preciso de outro espaço. Madonna também. Não sei o que eu teria sido sem ela em um sentido muito prático. Muita coisa do que não era dito na minha casa e nem nos meus círculos ela falava. Ela trazia notícias do mundo.

Não vou problematizar várias questões que me ocorrem a respeito de quem tocava ou deixava de tocar, das desigualdades de oportunidades, porque estou falando de lembranças pessoais, embora em outra ocasião possa sim revê-las à luz do presente de forma mais crítica e dentro de uma perspectiva histórica. Mas isso vocês podem ver ao longo de toda esta edição.

Minha intenção aqui foi fazer um mexidão de memórias para que cada leitor possa interrogar as suas. Pensar no que ouvir mulheres pôde fazer por vocês e o que vocês fizeram disso ao longo da vida.

Sou tão apegada às minhas cantoras que tenho raiva de mim nesse momento por deixar tantas pra trás nesse fluxo de pensamento, tipo todas as gatas do house europeu de boate, também a Mina, a Françoise, a Alcione e dezenas de outras. Mas tudo bem, elas em mim entendem que não dá pra mostrar tudo em um texto só. Talvez nem em um milhão deles na verdade.

Termino com uma péssima bem farofa-chiclete da Rihanna, antimuse de beleza e presença sobrenaturais. Essa música brotou num shuffle de sugestões esses dias e foi como uma epifania pro meu ano e talvez pro de todos aqueles que, mesmo desacreditados e no meio de uma avalanche mundial de terror, ainda encontraram um jeito de viver o amor. Pode ser num encontro, reencontro, amizade, espelho ou até no espaço fora do tempo de uma música em tempos de apocalipse: we found love in a hopeless place.