Ponto de interrogação

Sobre água, fogo e palavras.

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Ilustração @viamagalhaes

Rituais de passagem são parte do que entendemos por humanidade. Não é à toa. O nascimento, nossa entrada na vida, talvez seja a base dessa ideia. O corte que nos separa como um corpo mesmo antes de sermos capazes de compreender o que isso significa. Um ritual de água que vem de dentro. Os batismos de muitas civilizações remontam a esse momento. Nossa primeira casa, nosso primeiro planeta é líquido. E dele saímos assustados com a luz.

Em contraponto ao nascimento, a morte. O ritual do qual não participamos senão como lembrança, como legado, como a vida que pudemos viver. Estamos presentes de uma maneira difícil de explicar e, talvez por isso, o fogo esteja tão ligado às simbologias da morte. Velas, piras, cinzas.

Ao longo da história das civilizações, fogo e água também se alternam e se misturam nesses dois grandes marcadores da existência: uma maneira que encontramos de falar da ligação íntima entre esses extremos que delimitam a história de nossa passagem pelo mundo e pela vida.

A água faz parte de nós, anima e movimenta nossas células. A água que está no sangue, no cérebro, nos músculos e até na dureza dos ossos. Somos nosso próprio rio, dentro de nós falam marés. Quando olhamos o oceano, enquanto saltamos ondas ou entregamos oferendas, algo em nós pensa em espelhos. Nos enxergamos imensos.

O fogo é um símbolo social. Está na base de nossa história de alimentação, de nossa proteção, do que ferve e às vezes explode em rochas, do nosso medo do escuro. Olhamos nosso Sol e as estrelas, sabemos que a vida também queima e que um dia, assim como os gigantes incandescentes do universo, apagaremos. Mas, ao contrário dos astros, precisamos de outras pessoas para que nosso brilho sobreviva a nós mesmos.

Água, fogo, palavras. Somos seres de linguagem e, antes e depois de sermos falados por nós mesmos, precisamos que nos falem e que falem de nós.

Em um ano de tantas perdas, que todos os mortos sejam colocados em palavras marcadas em fogo para que não sejam esquecidos. Em um ano de tantas despedidas, que as chegadas sejam recebidas com lágrimas de alegria, que sejam regadas como sementes amadas.

Em um ano de tantas perdas, que os que partiram sejam bebidos em brindes e gritos de futuro. Em um ano de tantas mortes, que os novos vivos sejam celebrados, levantando nossos olhos às estrelas e nossas palavras ao presente.

Entre o nascimento e a morte está a vida. A cada abrir e fechar de olhos, temos uma série de escolhas, vivemos um milhão de dias, morremos um milhão de noites, desejamos e sonhamos.

Não chegamos condenados à repetição. Tudo o que pretende nos prender em ciclos sacrificiais idênticos, cruéis e mal enfeitados, que um milhão de tsunamis e vulcões te carreguem. Que haja a chance de liberdade a todos e a cada um.

Somos um mar e um céu de possibilidades vibrando e lutando pra acontecer.