Um ano, uma vida

Ninguém passou incólume por 2020. Para algumas pessoas, no entanto, este foi um ano de transformações intensas. E, para os nossos quatro entrevistados, essas mudanças foram surpreendentemente boas.

Pandemia, medo, quarentena, polarização… Qualquer morador do planeta Terra teve a vida completamente revirada por esses acontecimentos em 2020. Mas, embora esses meses não tenham sido exatamente fáceis para ninguém, acredite: há quem já olhe para os últimos dias do ano com carinho e saudosismo. São pessoas que neste período conseguiram unir propósito e profissão, encontraram um novo talento, conseguiram se soltar de amarras e, de alguma forma, se redescobriram. A seguir, conheça algumas dessas guinadas de vida emocionantes.

O grande ano da Pequena Lo

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A noite da virada para Lorrane Silva ocorreu entre 12 e 13 de agosto. A mineira, de 24 anos, foi dormir em seu quarto, num apartamento na cidade de Uberaba, interior de Minas Gerais, como uma influenciadora famosinha, com mais ou menos 80 mil seguidores. Acordou uma celebridade. Seu vídeo, uma paródia sobre “como seria se eu estudasse na High School Musical”, viralizou e ganhou mais de 1 milhão de visualizações. Em uma semana, multiplicaram-se os likes, seguidores, comentários, engajamento… Em menos de um mês, o número de admiradores saltou para 1 milhão. Sem contar as mensagens carinhosas de personalidades, em especial da comediante Tatá Werneck. “Por ser mulher e humorista, sempre me inspirei nela. Imagina como foi para mim abrir meu Instagram e ver ali uma mensagem dela, dizendo que tinha virado minha fã?”, conta com um sorrisão nos lábios e nos olhos.

A fama estourou assim, de uma hora para outra, como aquela chuva de papel picado na cerimônia da Paraolimpíadas no Maracanã em 2016 (a humorista esteve entre os bailarinos naquele gramado, aliás). À primeira vista, parece milagre ou um golpe de sorte. Mas, na verdade, o resultado aparentemente repentino veio de um esforço de mais de cinco anos: um trabalho de escrever roteiros, produzir e gravar que, até hoje, começa às 8 da manhã e só termina por volta das 9 da noite.

Desde menina, Lo sonha em estar na frente das câmeras como atriz e humorista. Com a democratização dos meios de comunicação promovida pela internet, criou seu próprio canal no YouTube em junho de 2015. Batizou de Pequena Lo e chegou com a proposta de fazer humor com diversas agruras do cotidiano: da aflição universal de perceber uma sujeirinha no dente em encontros importantes aos desafios específicos de uma pessoa com deficiência. Ela nasceu com uma doença genética rara (tão incomum que nem sequer possui nome), afetando o crescimento dos ossos. Mede 1,30 m e precisa de ajuda para realizar tarefas simples, como apertar o botão do elevador, pegar produtos no alto das prateleiras em supermercados e até entrar no Uber. “Tem motoristas simpáticos, que se prontificam a sair do carro e ajudar. Mas outros… Como seria bom se as pessoas tivessem mais empatia”, acredita.

No início da carreira artística, a mãe, a pedagoga Rosimary, e o pai, Hélio, dono de uma empresa de dedetização, não curtiram nada a ideia de a filha se expor no YouTube. “Eles sempre me amaram, deram força, ressaltaram minhas qualidades. Mas ficaram com medo de eu ser colocada numa vitrine pública, à mercê de anônimos na internet”, lembra.

Dito e feito. A jovem leu todo tipo de barbaridades escritas por preconceituosos escondidos sob o anonimato. “Doeu, claro. Mas vi que os haters eram a minoria e segui em frente. Sempre tive uma boa autoestima. Além disso, os estudos na faculdade de psicologia ajudaram bastante”, conta Lo, que pegou seu diploma na Universidade de Uberaba (Uniube) em janeiro de 2020.

Nos primeiros dias deste ano, Lo pensou em ingressar na carreira de psicóloga. Ao perceber que isso tomaria um precioso tempo para produzir conteúdo para seu canal, adiou os planos. Talvez conduza divãs no futuro, mas, em 2020, optou por se focar no sonho de virar uma artista reconhecida.

Em março, veio a pandemia. E a jovem, que também sofre de asma, precisou se enfurnar no apartamento em Uberaba, onde vive com a mãe. Acabou intensificando a produção das esquetes e, aos poucos, arrematando seguidores. A fama foi crescendo devagarzinho, “mineiramente”, até que as caretas e a dancinha de High School Musical a catapultaram ao Olimpo das redes sociais. Para a humorista, o impacto presencial do seu agigantamento virtual se revelou em setembro, quando rompeu os seis meses de confinamento para passear no Shopping Uberaba. Lo “causou”. “Foi uma loucura! Tinha gente nervosa, que chorou de emoção ao me ver. Nem pude ficar muito tempo porque comecei a provocar uma aglomeração”, lembra.

Neste fim de 2020, a jovem vive uma realidade de starlet. A mãe, Rosimary, largou o emprego em uma escola como pedagoga para se tornar assistente pessoal da filha, que faz em média duas viagens a trabalho por mês. Para gerenciar a agenda e os anunciantes, precisou contratar um staff: empresário, produtora, assessora de imprensa… Por semana, Lo grava dez ações publicitárias em suas redes sociais, que hoje somam cerca de 6 milhões de seguidores (metade deles só no TikTok). A renda familiar triplicou. “2020 foi muito complexo. Por um lado, teve a tristeza da pandemia, com muita gente morrendo, medo de morrer, restrições. Mas por outro lado foi o melhor ano da minha vida, a validação de cinco anos de muito esforço”, avalia.

O processo da guinada deverá se estender para 2021. Para cursar psicologia, a mineira, nascida em Araxá, havia se mudado para Uberaba com a mãe em meados de 2015. A partir de janeiro, Lo e Rosimary terão um novo endereço: um apartamento na Vila Olímpia, em São Paulo. “Vem aí muito trabalho!”, celebra a aquariana (só por um dia ela não é capricorniana), que completará 25 anos em 21 de janeiro de 21. Lo finaliza o projeto de ter seu próprio talk show e negocia um espaço em uma televisão aberta.

Sobre o futuro, planeja seguir trabalhando como atriz, humorista e apresentadora. Nunca namorou sério, diz que está aberta a conhecer alguém especial. Formar uma família também consta em seus planos.

Volta e meia, alguém pergunta a Lo o segredo de seu sucesso. Um questionamento normalmente feito por pessoas que tiveram seus sonhos paralisados ou postos em dúvida por causa do surpreendente 2020. A resposta é infalível. “Acredite em você, faça o que gosta, trabalhe muito e, principalmente, tenha muita, mas muita paciência. Com essas quatro atitudes, dá para chegar aonde se quer”, acredita.

Movimento de paz

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“Descobri na pandemia que possuo uma incrível habilidade: levar paz e bem-estar às pessoas”, comemora Willian Gasparo, 30 anos. Em março, por causa da quarentena, o solista do grupo de dança Cisne Negro – que costumava hipnotizar plateias ao cruzar palcos voando em saltos aos moldes de Mikhail Baryshnikov – teve o espaço reduzido a um apartamento em São Paulo. A companhia seguiu pagando o salário integral, não faltava dinheiro, mas… O que fazer com tanto tempo livre?

Para aplacar a ansiedade, Willian usava a sequência de posturas aprendidas na Premananda Yoga School. Ele foi apresentado à técnica em meados de 2016, quando havia completado um ano na Cisne Negro, como uma forma de preparar corpo e mente para aguentar as complexas coreografias. “No início, eu achava um saco aquela coisa do ‘permaneça’. Como assim ficar parado? Sou bailarino, amo movimento! Depois, vi o quanto aquelas sequências me proporcionavam disciplina e tonificavam meu corpo”, lembra. O dançarino ficou tão apaixonado que decidiu mergulhar na técnica milenar indiana e se formou professor em 2018.

“Que tal levar essas técnicas milagrosas para o pessoal que também pena trancafiado em casa?”, pensou Willian. Então, decidiu fazer duas lives por dia, todas gratuitas. “Alguns amigos me diziam ‘Que trabalhão! Você está louco de fazer isso!’, mas minha maior recompensa eram os depoimentos. Teve gente que contou ter largado ansiolíticos porque havia, enfim, se acalmado por causa das aulas”, comemora. As lives do bailarino passaram a atrair centenas de pessoas, entre elas, celebridades, como a atriz Maitê Proença.

Em agosto, com o coronavírus ainda protagonista da cena, a companhia Cisne Negro precisou rescindir seu contrato. Willian compartilhou a situação com a turma online. As lives gratuitas seguiriam, mas precisava fazer aulas particulares para lidar com os boletos mensais. Em poucos dias, acumulou cerca de 100 pupilos.

A ioga foi mais uma virada na vida do paulista de Taquaritinga, a 346 km de São Paulo. Willian é filho de pequenos produtores de cana-de-açúcar, laranja e gado. Por gerações, a família se manteve no campo e seus pais criavam o menino para seguir o legado. Como Billy Elliot, protagonista do musical de Stephen Daldry que virou peça na Broadway, ele conheceu a dança na escola e caiu de amores à primeira vista. Mas o pai do jovem decretava que “balé era coisa de menina e não dava dinheiro”. A cada machadada no campo e as consequentes unhas sujas de terra, Willian tinha a certeza de que seu lugar era nos palcos. Talentoso, ganhou bolsa na escola de dança da cidade. Ainda na adolescência, entrou em uma trupe que tocava em bailes de formatura. Ganhou dinheiro e um convite para atuar em uma companhia em Ribeirão Preto (SP). Em 2015, fez prova para o Cisne Negro. Passou de primeira e se mudou para São Paulo.

Em setembro de 2020, o Cisne Negro voltou a se apresentar (ainda que em espetáculos pela internet) e recontratou Willian, que decidiu conciliar a atividade com as aulas de ioga. Acorda às 5 da manhã e trabalha em uma jornada das 9h às 23 horas para dar conta das atividades. Se está cansado? “De jeito nenhum! Amo o que faço!”, diz. Recentemente, ofereceram um espaço para que o professor pudesse lecionar ioga presencialmente. “Ainda estou em dúvida. Gosto da liberdade de fronteiras proporcionada pela internet”, conta.

Trabalho com propósito

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Sabe aquela máxima “há males que vem para o bem”? É o caso da professora Talita Barbosa Matos Peixoto, 41 anos. Com o salário das aulas em uma faculdade de administração reduzido e o tempo em casa aumentado, foi em 2020 que ela conseguiu tirar da gaveta o projeto do Clubinho Preto. Trata-se de um clube de assinatura que oferece conteúdo educativo e de cultura antirracista para crianças.

Por 49,90 reais e uma taxa de frete, o pequeno assinante recebe um livro e um segundo item que pode variar entre brinquedos, roupas e acessórios – sempre com a proposta de batalhar contra a discriminação.

Era uma ideia que estava no papel desde o nascimento de Thales, filho de Talita com o engenheiro Marcos. O menino completou 4 anos de idade em outubro. “Eu e meu marido enfrentamos inúmeras situações difíceis por causa da cor da pele. Precisamos construir um mundo melhor para que nem meu filho nem outras crianças passem por isso”, conta.

Nascida e criada em Benfica, bairro carioca na região central, Talita mantinha sempre o corte joãozinho. “Cabelo ruim”, rotulavam. Ela era uma “baixinha da Xuxa”, conhecia cada passo de todas as coreografias das Paquitas. Mas, diferentemente das colegas brancas, sabia que jamais poderia se candidatar ao cargo de assistente da apresentadora. Elas precisavam ser loiras. No Brasil dos anos 1980, a referência de beleza se restringia aos padrões caucasianos. Bonecas brancas, atrizes brancas… Os cabelos lisos e a pele branca ofuscando nas revistas, televisão ou até nos xampus à base de camomila (para clarear os fios), não refletiam nem de longe a realidade brasileira, em que metade da população é composta de negros e pardos. “Você é moreninha clara”, diziam a Talita, como uma espécie de “elogio”. Uma das únicas negras da escola particular e também na faculdade, por anos ela não conseguiu enxergar sua beleza. Para compensar, entrava de cabeça nos estudos em busca de sustentar o rótulo “inteligente”.

Pois é esse cenário que Talita deseja ajudar a mudar com seu trabalho. Os desafios são imensos. A empresária se lembra especialmente da primeira semana de junho, quando veio à tona a notícia da morte do menino Miguel, 5 anos, que caiu do prédio em Recife quando estava aos cuidados da patroa de sua mãe. “Naquele dia, foi extremamente difícil trabalhar. Chorei diante da televisão e também ao precisar explicar o que aconteceu ao meu filho, um menino negro como a vítima”, lembra Talita.

A divulgação do Clubinho Preto havia começado dois meses antes da tragédia, em 7 de abril, e o Instagram “bombava”, demandando pelo menos um post por dia. Talita imaginava que precisaria investir pesado em marketing digital pelo menos até agosto para só então angariar assinantes. Só que ocorreu um “delicioso engano”: assim que fez o primeiro post, já começaram a aparecer os pedidos. A nova empreendedora precisou adiantar às pressas as caixas com as encomendas. No início de dezembro, ela possuía cerca de 100 clientes fixos, que consomem um portfólio de aproximadamente 300 produtos. “Fico garimpando fornecedores. Há empresários incríveis nesse mercado. Ao mesmo tempo, você acredita que até hoje vou a determinadas lojas, procurando bonecas negras e alguns vendedores franzem a testa, sem entender o porquê do meu pedido?”, diz Talita.

Entre sua clientela, 65% são crianças negras e 35%, brancas, em uma iniciativa de pais que querem educar os filhos para uma sociedade mais justa, sem racismo. Os pequenos consumidores brancos recebem um conteúdo mais educativo. E os negros, obras e produtos relacionados à autoestima.

“Diferentemente de outras raças, precisamos o tempo todo repetir para nossos filhos que eles são bonitos e perfeitos, não importam o formato do nariz, a ondulação dos fios dos cabelos… Na infância, muitos nos olham como meninos de rua e, depois, como bandidos em potencial. Nosso trabalho de educar é ainda mais árduo do que o normal por causa do preconceito”, diz.

Em 2021, Talita pretende continuar com a empresa e também seu trabalho como professora universitária. “É importante estar nesse local, até como forma de representatividade. Não tenho como abrir mão”, justifica. Além disso, vai expandir seu Clubinho para adolescentes e busca aumentar o portfólio de produtos. Afinal, é importante dedicar-se a essa faixa etária, naturalmente cheia de desafios e inseguranças, ainda mais para quem possui pele negra no Brasil. “A causa racial sempre foi uma bandeira na minha vida. Nos últimos meses, migrou também para meu negócio”, finaliza.

O renascimento de Apocalypse

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Os seios fartos e voluptuosos passaram a integrar o corpo de Ana Carolina Apocalypse, 62 anos, em 27 de novembro de 2019. Magrinha, baixa estatura, um cabelo chanel com os brancos assumidos e as blusas decotadas fazem parte do visual dela. Ainda assim, tem gente que insiste em chamá-la pelo nome de batismo. “Favor dirigir-se ao consultório, senhor José Apocalypse”, ouviu de uma recepcionista há um mês. Ela relutou. Segundo chamado. Respirou fundo. Acabou obedecendo na terceira vez em que a funcionária insistiu. “Minha senhora, eu pareço José? Por isso, escrevi na ficha meu nome social e gostaria de ser chamada por ele”, explicou, pacientemente. A enfermeira retrucou com um muxoxo e apontou o consultório do médico (que pediu desculpas pela grosseria da funcionária. Que bom…).

Aninha diz que não se zanga com provocações como essas. “Prefiro a simpatia e o sorriso como uma forma de educar. A discussão sobre a identidade de gênero é muito nova e as pessoas vão levar um tempo para entender”, acredita.

Ainda na infância, percebeu que havia nascido no corpo errado. Aos 5 anos, levava bronca por desfilar pela casa com os vestidos da mãe e da irmã mais velha e passou a vesti-los escondida. Na adolescência, acreditava-se homossexual. Mas acabou se apaixonando por uma mulher pouco antes dos 30 anos, casou-se e teve uma filha. Manteve-se como pai de família ao longo de 17 anos. “De vez em quando, usava as calcinhas da minha ex para dormir. Ela não se importava. O relacionamento só terminou por desgaste natural. Nada a ver com sexualidade ou minha identidade de gênero, que, naquela época, nem havia encontrado”, conta.

Em 2017, cerca de dois anos após a separação, Aninha descobriu ser uma mulher trans ao assistir ao drama da personagem Ivana/Ivan (Carol Duarte), na novela A força do querer, de Glória Perez, exibida na Rede Globo. “Via a menina lutando contra os seios e eu pensava: ‘Nossa, dá para mim!'” Procurou o SUS para fazer terapia e o processo de transição de gênero. Um dos momentos mais cruciais foi contar para a filha, a farmacêutica Cristina, 30 anos. “Ela aceitou na hora! Deu um abraço e disse que sempre soube”, conta.

Outra etapa a vencer: o trabalho. Aninha tomava hormônios, que aos poucos mudavam suas feições, até o dia em que perguntou ao chefe se permitiria vestido para seu dresscode. Ela sempre atuou como motorista para empresas, dirigindo até caminhões. Um ambiente rotulado como altamente masculino e, mais do que isso, com o machismo estampado em frases de alguns para-choques. “Meu chefe entendeu perfeitamente, disse que não haveria problema e perguntou como gostaria de ser chamada.”

Eis a questão… Durante semanas, Aninha ensaiou com a terapeuta alguns nomes: Maria, Estela, Valquiria, Ana Beatriz e Ana Carolina. Escreveu todos em um pedaço de papel, fechou os olhos e passou a percorrer o dedo na página. “Mi-nha mãe man-dou es-co-lher esse da-qui.” Parou em Ana Carolina. Manteve seu sobrenome de batismo, Apocalypse.

Em 2020, Aninha enfim se assumiu para o mundo. Com a ajuda da filha, abriu uma conta no Instagram para falar sobre sua transição. Em poucos meses, ganhou likes, seguidores e comentários de personalidades como Juliana Paes e Carol Duarte, atriz que apontou o caminho de sua verdadeira identidade. Também ganhou um patrocinador, o tradicional creme Nivea. “Enfim, estou me sentindo uma rainha! A vida para mim está começando agora e para além de 2020”, comemora.