Dedos se entrelaçam delicadamente. Lábios roçam a pele do rosto de um homem. Uma mão percorre uma cintura e avança entre os vãos de uma camisa de botão. As imagens em close dos corpos aparecem numa dança lenta na tela. Aos poucos, ao som da ária “Addio, del passato”, de La Traviata, nomes de homens surgem sobre os detalhes dos corpos: Alex, John, Mark, Stephen, Ângelo – todos vítimas da aids, bem como viria a ser Rafael França, o artista que empresta o corpo ao vídeo Prelúdio de uma morte anunciada (1991).
É essa a obra que abre a exposição Réquiem e vertigem, que a galeria Jaqueline Martins, em São Paulo, inaugura no próximo dia 22 e que homenageia França, morto no mesmo ano da obra que parecia anunciar sua morte, aos 34 anos. No vídeo, o artista, nascido em Porto Alegre, que migrou para São Paulo aos 21 anos, registra seu corpo e o do companheiro Geraldo Rivello, em carícias delicadas e reveladas apenas em fragmentos. É só no fim que o rosto de França aparece por inteiro, depois de um letreiro com a frase: “Above all they had no fear of vertigo (Acima de tudo, eles não tinham medo da vertigem)”.
Prelúdio de uma morte anunciada, de Rafael França. (Divulgação/Jaqueline Martins)
Curadora da mostra, a escritora Veronica Stigger vale-se justamente desse que foi o último trabalho de França para explorar algo recorrente na obra do artista – réquiem (o louvor aos mortos) e vertigem, que batizam a exposição. Os trabalhos dele são apresentados em diálogo com Leonilson (1957-1993), os estadunidenses Robert Mapplethorpe (1946-1989), David Wojnarowicz (1954-1992) e o argentino Luis Frangella (1944-1990), outras quatro vítimas da aids, em um intervalo de quatro anos. Também completam essa conversa trabalhos de Alair Gomes (1921-1992), Cibelle Cavalli, Mario Ramiro e Hudinilson Jr. (1957-2013) – os dois últimos, parceiros de França no grupo 3Nós3, coletivo de arte que fez ações nas ruas de São Paulo no final dos anos 1970 e início dos anos 80.
No ano em que se completam 30 anos da morte de França, a exposição é, como explica a curadora, uma homenagem à vida dele. Um dos precursores das experimentações em vídeo no Brasil, o artista estudou em São Paulo com Regina Silveira e outros grandes nomes da arte brasileira até se mudar para os Estados Unidos, para se tornar mestre pelo Art Institute of Chicago (os vídeos exibidos na mostra foram feitos em sua temporada estadunidense). Suas obras, que passam pela instalação e performance, hoje estão em acervos como o do Museu Reina Sofia, em Madri, e o do Museu de Arte Moderna (MAM), de São Paulo.
Rafael França, nos bastidoresFotos: Divulgação/Jaqueline Martins
Na exposição da galeria Jaqueline Martins – que busca resgatar a obra de artistas esquecidos e completa uma década em 2021 –, dez vídeos de França, realizados entre 1983 e 1991, conduzem um diálogo com os demais artistas. Ou ainda, como escreve Stigger no texto da exposição: os vídeos “são o fio condutor para uma exploração do modo como a vertigem (que, em sua obra, é réquiem e é erotismo) impõe uma alteração nos corpos, que se desmontam, se remontam, se travestem, se fragmentam, se dissolvem, adoecem, morrem, persistem, pulverizados como relíquias, nas imagens”.
Assim, no térreo da galeria, ao lado de Prelúdio de uma morte anunciada (1991), está a obra Prisioneiro (1979), uma série de xerografias de Mario Ramiro, em que o artista pressionava o rosto sobre o vidro da máquina de fotocópias. Já em Sufoco (1979), Ramiro tem o rosto coberto por um saco preto. “Outra vez, o que vemos são fragmentos, o corpo que se revela e se esconde, sempre em partes”, explica a curadora. Retratos feitos por Alair Gomes, vizinhos aos trabalhos de Mario Ramiro na exposição, deixam ver o dorso de um homem nu entrando no mar ou ainda os corpos de homens na areia da praia, em trajes de banho.
“A vertigem está na fragmentação e também na própria narrativa, que é tortuosa. Muitas vezes não entendemos sequer o que está acontecendo na cena”, afirma a curadora. “É como se cada fratura, cada descontinuidade, sugerisse um erotismo”, completa. A sensualidade dos corpos masculinos nos vídeos de França aparece também nos torsos pintados em tinta acrílica pelo argentino Luis Frangella ou no desenho de Leonilson em que dois corpos se entrelaçam.
Luis Frangella, sem título, 1983Foto: Divulgação/Cortesia Galeria Cosmocosa
Além do diálogo proposto entre as obras, Veronica selecionou trechos de textos de escritores que conversam com o trabalho de França e que escreviam na mesma época em que o artista produzia seus vídeos. Estão na mostra palavras de Ana Cristina César, Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll e Roberto Piva. “Os textos têm também essa relação central com o corpo”, explica a curadora.
A exposição segue pelo segundo andar da galeria, com as obras de França num percurso costurado pelos fragmentos dos textos nas paredes e por vídeos de Cibelle Cavalli Bastos e David Wojnarowicz. Há, em todo o trajeto, um movimento que oscila entre réquiem e vertigem. Como escreve a curadora no texto da exposição: “Não sente vertigem quem não encara de frente o precipício: quem não confronta o abismo. A propósito de Rafael França e dos outros artistas aqui reunidos, pode-se repetir a derradeira inscrição de seu vídeo, trazendo-a porém para o presente: acima de tudo, eles não têm medo da vertigem”.
Réquiem e vertigem
De 22 de maio até 31 de julho na Galeria Jaqueline Martins (galeriajaquelinemartins.com.br). Não é preciso agendar visitação.