A chef Danielle Dahoui estava com dor nos pés e nas costas quando conversou com a ELLE, em uma manhã de terça-feira. Tinha dormido pouco e acabado de fazer faxina em casa, mas estava feliz. Por pouco, não entrou em uma triste estatística: a das 50 mil empresas do setor de gastronomia no estado de São Paulo, entre 250 mil, que fecharam as portas durante a pandemia, segundo a Abrasel-SP (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes).
As dores eram porque ela estava começando a voltar à rotina de trabalho – fazia apenas quatro dias que havia reaberto o Ruella, seu restaurante na Vila Olímpia, em São Paulo, que neste ano completa um quarto de século. Desde o início da pandemia, em março de 2020, a casa ficou mais de seis meses fechada. Dessa última vez, foram 47 dias sem funcionar, numa interrupção que deu um susto nos clientes mais fiéis ao vir acompanhada do temível aviso de: “Por tempo indeterminado”. A indefinição acabou sendo breve – e o Ruella voltou a funcionar em maio, pouco depois da flexibilização das regras de restrição em São Paulo, que passou a permitir o funcionamento de restaurantes até as 21 horas, com 30% da capacidade. E vem daí o sentimento de felicidade de Dahoui naquela terça: “Não tinha noção do quanto a gente é querida. Só estou recebendo amor no Ruella”, conta a chef, sobre a reação dos clientes, colaboradores, fornecedores e colegas.
Desde o início da pandemia, Dahoui tem se manifestado nas redes sociais e encabeçado com outros chefs movimentos para cobrar medidas mais efetivas do poder público para auxiliar o setor de bares e restaurantes. E tenta se equilibrar na linha tênue entre proteger a saúde da equipe e dos clientes e viabilizar a continuidade do negócio. No período em que teve que fechar a casa, a recifense tentou trabalhar com delivery, mas a estratégia não deu certo. “Muitos descobriram uma forma de ganhar dinheiro nisso, mas, falando do Ruella, ele é um restaurante romântico, que vende uma experiência. Você entra naquela viela e se desconecta… Então, foram alguns fatores pelos quais não consegui fazer virar o delivery”, diz Dahoui, que classifica o momento como o mais difícil dos seus 52 anos de vida. Agora, as coisas parecem estar engrenando novamente. Além de reabrir o restaurante, a primeira apresentadora mulher do programa de TV Hell’s Kitchens embarca em uma nova aventura culinária: vai passar uma temporada em Trancoso, Bahia, para gravar o Casa da chef, em que vai mostrar um pouco do seu dia a dia. Os detalhes da atração ainda não podem ser divulgados, mas ela adianta que a estreia está prevista para setembro.
Na entrevista a seguir, que Dahoui concedeu à ELLE por videoconferência, com sua gata passando em frente à tela, ela fala sobre esse período crítico que o setor de gastronomia está enfrentando e arrisca alguns palpites sobre o que vem por aí, com um pé no chão e o outro no otimismo.
A pandemia está sendo o momento mais difícil da sua vida?
Sim. Não tenho palavras para explicar o que eu estou sentindo, porque depois de tanto abre e fecha, por mais que você tente manter a sanidade, começa a achar que a vida está te mandando para outro rumo. Então, estou muito feliz por ter reaberto, mas ainda é muito sofrido porque tenho medo de que feche de novo. Nunca fui uma pessoa de ter medo. Pelo contrário, ele sempre serviu para me balizar, nunca para me paralisar, e hoje me paralisa. Tenho que fazer um trabalho enorme para respirar, me concentrar e falar “calma, vai dar tudo certo”. É o momento mais difícil, acho que da nossa geração toda, né?
E como foi anunciar para a equipe que ia fechar por tempo indeterminado?
Desde 16 de março de 2020 estava acontecendo uma história de sofrimento, e eu só fui contar para eles mais para a frente, quando percebi que não dava mais, que estava devendo 1 milhão de reais no banco. Mas eles já estavam preparados. Foi um processo de dor. Chorei muito, fiquei vendo até o último minuto um por um saindo, uma imagem triste demais.
Teve que demitir seus colaboradores?
Sim. Eu fiquei pagando salário de março a maio, e a MP 936 (medida provisória que permitiu a suspensão de contratos e a redução de salários e jornadas) entrou em junho, o que ajudou bastante. O governo pagava uma parte e eu completava o resto. Só que, em janeiro, acabou. Paguei até março e, em abril, já não consegui mais. Mandei todo mundo embora, mas eles viram que era o melhor mesmo, porque eu estava correndo o risco de falir. Eu não teria dinheiro para fazer a primeira compra de abril. E havia alguns funcionários infelizes, com condições de viver melhor no Nordeste, de onde são e onde estão suas famílias, e eles resolveram voltar para lá. Perdi chef, gerente, chef de bar e comprador.
“Se tivesse havido um trabalho bem feito desde o começo, seria diferente. A gente só está vivendo isso por ignorância, porque há negacionismo.”
Como os clientes reagiram a essa notícia?
Eu não tinha a dimensão do que é o Ruella. Nesse sentido, tem sido mágico. Esse é o ponto que mais me mantém lúcida, ver que eu construí um caminho muito legal até aqui. Todos os meus clientes me apoiando, muita gente querendo fazer vaquinha, amigos ligando para emprestar dinheiro… Estou tendo todo o apoio de pessoas que mandaram mensagem, contando suas histórias de amor que viveram no Ruella.
E a reabertura, como foi?
Estou recebendo muito amor. Você não tem noção do quanto eu chorei no dia em que reabrimos. Não sou de chorar, mas é muito lindo ver as pessoas entrando e querendo me dar amor.
Há muita rivalidade na gastronomia. A pandemia mudou isso de alguma forma?
Eu já tinha me unido a chefs em 2013. Estavam acontecendo arrastões em restaurantes e os donos se escondiam porque achavam que as pessoas não iriam mais frequentar. Eu me revoltei e a gente fez a primeira passeata, com mais de 250 pessoas da gastronomia. Então, eu sabia que a gente poderia unir as pessoas. Dessa vez, na pandemia, percebi que demoraria até ter uma vacina e logo conversei com a equipe. O governo fechou os estabelecimentos e queria mandar os colaboradores para casa recebendo 350 reais. Aquilo me doeu muito. Aí liguei para Janaína Rueda (do Bar da Dona Onça e da Casa do Porco Bar) e o Edrey Momo (da Tasca da Esquina e Pizzaria 1900, entre outras casas) e conversamos sobre a necessidade de nos unirmos. Montamos grupos no WhatsApp. Juntamos todo mundo e fomos reivindicar algumas coisas, como o auxílio salário, que conseguimos por meio da MP 936, e fizemos alguns movimentos, como o Não Deixe Fechar a Conta e Não nos Confundam. Também pedimos isenção de impostos, mas isso não deu.
Como se equilibrar entre abrir e ser tachado de negacionista e ficar fechado e não ter dinheiro?
No começo, tinha muito medo e não sabia nada, mas, depois, comecei a ver exemplos que estavam acontecendo em outros lugares. E pensei: “Vamos ter que reaprender, porque isso não vai ser resolvido rapidamente”. O equilíbrio está no respeito. Não pode se aglomerar, tem que lavar a mão, usar álcool em gel e máscara, respeitar as normas. Se tivesse havido um trabalho bem feito desde o começo, seria diferente. A gente só está vivendo isso por ignorância, porque há negacionismo, aquele imbecil e todos aqueles amiguinhos que acreditam que é só uma gripezinha. Mas tem que ter mais transporte público, porque não adianta pedir para não aglomerar e botar todo mundo no metrô e no ônibus lotados.
O que a pandemia mudou no seu dia a dia?
Eu era muito workaholic e descobri que menos é mais, que a vida é uma só e que a gente está aqui para ser feliz, com todas as tristezas. Hoje, eu não quero ter mais tanta coisa, quero ter tempo.
Você tem atuado em projetos sociais. O que isso representa para você?
Trabalho com o terceiro setor desde a adolescência. Quando abri o Ruella, comecei um trabalho com a Casa do Zezinho e outras ONGs. Continuei fazendo o que já fazia. Existem várias ONGs que estão com trabalhos muito legais e eu não tenho como participar, mas o que eu posso fazer é juntar gente que tem dinheiro com quem não tem. Mas acho também que a gente tem que exigir que o governo faça a parte dele. Eles não reduziram o salário deles, não reviram nada. É revoltante.
“Existem várias ONGs que estão com trabalhos muito legais e eu não tenho como participar, mas o que eu posso fazer é juntar gente que tem dinheiro com quem não tem.”
Como as redes sociais ajudam esse movimento?
É impressionante o poder gigante de unir as pessoas. Mesmo quem quer só aparecer e agora está fingindo que é bonzinho, dane-se. O importante é botar comida na casa das mulheres que não estão podendo trabalhar e passam fome.
Você tem um restaurante onde são realizados muitos casamentos. Acredita que vamos voltar a juntar um monte de gente em um lugar tão cedo?
Vou fazer casamento assim que for liberado, mas terei que diminuir o número de convidados para a metade, 60. E isso porque tem uma viela grande no Ruella. Mas as coisas vão voltar um pouco ao normal logo, sim. As pessoas precisam aprender a viver do jeito que dá, senão, vão começar a morrer de fome. Então, acho que a gente vai voltar. Preciso acreditar nisso ou vou ficar louca.
E ainda sobre esse retorno, vamos voltar a compartilhar comida?
Isso, nunca mais. Esquece. A gente tem que se reinventar, assim como tudo na vida. Tem coisas que não voltam mais. E tudo bem.
Quais seus sonhos a curto e a longo prazos?
Não estou fazendo grandes planos, mas, para já, quero conseguir sobreviver a cada 24 horas equilibrada e com saúde. E, se eu tivesse direito a um pedido, seria para que as pessoas fossem respeitadas e que tivessem as mesmas oportunidades. Porque, e não é papinho, não tem como ser feliz enquanto todos não tiverem as mesmas oportunidades e os direitos básicos garantidos.