“Quando me perguntam o que eu faço ou qual é a minha motivação, respondo que é a luta pelo acesso à saúde e à atividade física para pessoas gordas negras e fora do padrão”, diz Ellen Valias. A moradora do Jaraguá, bairro da Zona Oeste de São Paulo, é estudante de educação física e palestrante e, em seu perfil no Instagram, já reúne quase 100 mil seguidores, ávidos por seu conteúdo, que debate de forma inteligente e assertiva a gordofobia na sociedade e principalmente no ambiente esportivo.
Com linguagem pop (estamos falando de memes e challenges, por exemplo), Ellen coloca o dedo na ferida e revela a urgência em solucionar a questão da desumanização do corpo gordo nos treinos ao redor do país. Apaixonada por esporte desde muito cedo – em especial, pelo basquete –, ela enfrentou inúmeras dificuldades e empecilhos para a sua entrada nesse universo. Problemas que vão desde a falta de roupas adequadas para o seu corpo até a ridicularização sofrida por ela por parte de seus colegas de quadra, quase sempre homens. “Sempre fui uma criança gorda e entendi já muito nova que meu caminho seria diferente. Ao mesmo tempo que identificava a gordofobia que sofria, ainda não sabia dar nome a ela. Meu amor pelo basquete, no entanto, era tamanho que eu tentava ignorar tudo isso para continuar jogando, mas isso me machucou muito”, diz em entrevista à ELLE Brasil.
Foi por isso que, em 2015, Ellen criou o Rachão Basquete Feminino, um projeto que reúne mulheres para “bater uma bolinha” sem compromisso com treinos e técnicas de basquete. O importante é se encontrar e se fortalecer. Por enquanto, devido à pandemia do novo coronavírus, o Rachão está em pausa. Contudo, quando ainda era possível se encontrar, ele já chegou a reunir mais de 100 mulheres em uma quadra. No dia 15 de junho, mais um projeto de Ellen ganha vida: trata-se do e-book Corpo gordo: construindo uma nova relação com a atividade física. Com ele, a ativista pretende mostrar às pessoas que se sentem oprimidas na academia que “o esporte é um investimento que você faz em você mesma. Você vai se sentir uma pessoa que se movimenta e está em movimento”.
Quais os principais sintomas da gordofobia no esporte?
O corpo magro é o corpo considerado saudável, é o corpo-padrão. Assim, tudo o que estiver fora desse ideal será excluído ou marginalizado. A gordofobia é a desumanização, invisibilização e patologização do corpo gordo. A sociedade olha para esse corpo com a ideia de que ele não merece existir. Na atividade física, a gente vê isso de várias formas. Se você não consegue encontrar roupas para ir à academia, isso é um acesso negado. Quem joga pensando que a roupa vai rasgar o tempo todo (como eu fazia antigamente), não consegue estar 100% no jogo. Agora, as coisas estão melhorando nesse sentido, mas já foi muito ruim. Isso sem contar a ridicularização. Se você joga bem, tem que ouvir que “olha, a gordinha está jogando bem hoje”. Se vai no chão, você é a gorda que caiu, e todo mundo ri. As pessoas magras não passam por isso e podem estar sempre concentradas no que estão fazendo na quadra. E daí eu pergunto: como é que as pessoas gordas vão se manter nesse ambiente tão hostil?
Você sente que os profissionais de educação física estão mais preparados para trabalhar com pessoas gordas atualmente?
Ainda hoje existem muitos profissionais que nem sabem o que é gordofobia. Foi por isso que eu fui para a educação física. Ficava indignada com a falta de acolhimento com o corpo gordo. Como é que o profissional acolhe um corpo gordo se ele nem sabe o que é gordofobia? Isso precisava estar nas faculdades. Como é que uma criança gorda vai ter uma relação boa com atividade física se ela é ridicularizada pelos amigos o tempo todo e os professores não fazem nada a respeito? O esporte tem que ser o contrário dessa lógica de punição. É sobre bem-estar, saúde física e mental. Não tem nada a ver com emagrecimento.
“A gordofobia é a desumanização, invisibilização e patologização do corpo gordo. A sociedade olha para esse corpo com a ideia de que ele não merece existir.”
Fale mais sobre o esporte como método de punição. O que isso quer dizer?
Se você faz atividade física para “compensar” o hambúrguer que comeu, você não está com o seu bem-estar como objetivo. Você está se punindo por ter comido algo que gosta. Fazer atividade física para emagrecer, para caber em um vestido, é tirar o bem-estar do foco do exercício. É uma lógica punitivista. Uma maneira de subverter isso é pensar em como o seu sono vai melhorar, como você vai se sentir bem ao se movimentar, se sentir viva. Quando dou palestras a profissionais de educação física, questiono: vocês estudam quatro anos para fazer as pessoas emagrecerem? É só esse o objetivo? A atividade física faz muito mais do que isso.
Como você sente o feedback do público ao seu conteúdo?
Recebo muitas mensagens das pessoas dizendo que, de fato, passam por situações horríveis em ambientes esportivos. Fiquei surpresa, inclusive, com a quantidade de gente que veio falar isso para mim. Fico feliz em saber que minha mensagem está chegando, tocando e se espalhando. Estamos no começo dessa discussão ainda. No mundo da atividade física, a pessoa gorda não existe ainda. Mas, eles estão sacando que, em breve, não vai mais dar para contornar esse assunto. Tenho recebido mensagens de profissionais da área pedindo desculpas, por exemplo. Tem muita gente entendendo e reconhecendo. Sempre estive muito sozinha nos espaços. A história da gorda que querem contar é a da que emagreceu e foi salva, casou… É a história que sustenta a indústria do emagrecimento e da estética, e do #projetoverão, entre outros absurdos.
“Estamos no começo dessa discussão ainda. No mundo da atividade física, a pessoa gorda não existe ainda. Mas, eles estão sacando que, em breve, não vai mais dar para contornar esse assunto.”
Qual a mensagem mais importante do seu trabalho?
Se você é uma pessoa gorda, eu sei que você acha que não gosta de atividade física porque é preguiçoso, relaxado ou porque não tem força de vontade. Eu digo para você: fica tranquilo. Tira essa culpa das suas costas. Ela não é sua. É um acesso negado. Procure seguir e conversar com pessoas gordas que passaram por isso para você entender que ainda dá tempo de abraçar a atividade física. Ainda dá tempo! Para as pessoas magras, estudem o que é gordofobia. Não custa nada. Se você conhece uma pessoa gorda ou tem algum parente gordo, um amigo gordo, pergunte como essa pessoa se sente. Se coloque no lugar dela. Se você é uma pessoa privilegiada, que faz atividade física na academia, olhe ao seu redor e pergunte: por que as pessoas gordas não estão aqui? Será que elas são todas preguiçosas? Será que elas não gostariam de estar aqui? Se no ambiente em que você faz atividade física só tem pessoas iguais a você, alguma coisa está errada.