Ilustração @viamagalhaes
O cômico parece se valer de atmosferas favoráveis para se estabelecer como tal, o que equivaleria a dizer que em tempos alegres e abundantes o riso seria mais solto. Embora isso se mostre em geral verdadeiro, há uma outra especificidade do que é cômico que apresenta sua força exatamente em cenários opostos a isso, ou seja, em situações difíceis.
Do humor, uma das variedades do cômico, podemos dizer algo bem próximo, similar.
Pensei em um dos meus vídeos preferidos do Paulo Gustavo, uma pessoa capaz de fazer rir só com uma careta, o que de saída já ajuda muito. Nesse trecho do programa 220 volts, que foi recuperado e viralizou depois de sua morte, ele interpreta uma celebridade/influencer que faz uma sessão com palavras de ordem como “muda Brasil” e “estou indignada”, “chega de corrupção”. O profissional que fala com ela orienta, “faz com mais verdade, novela das 8”. E ela bate mais cabelo, faz aquela cara de seriedade canastrona que bem conhecemos dos vídeos constrangedores que circulam por aí.
O que vou fazer aqui é uma espécie de explicação introdutória de alguns mecanismos que entram em ação no humor, o que é o oposto do que o favorece. Ou seja, se logo de cara tiver comparação, reflexão, teorização etc., vira outra coisa. E, claro, perde a graça.
Paulo nesse vídeo, se formos pensar, está falando de coisas deprimentes. De pessoas egoístas e sem noção, no limite, cruéis, que se aproveitam de momentos sociais difíceis para autopromoção marqueteira. Estendendo, ele fala do ridículo da nossa própria indignação momentânea, cena de folhetim, do tipo feita pra cumprir tabela e pegar bem na bolha. Então, falando assim, não tem graça nenhuma. Para rir disso é preciso que algumas coisas aconteçam.
Freud, entre muitas considerações e descrições minuciosas, descreveu o humor como uma defesa no sentido psicanalítico. E, mesmo que a gente não vá aqui entrar na definição, é interessante pensar que está em jogo um processo que esconde ou suspende algumas coisas para que a cena toda crie prazer.
O humor pode deslocar parte do afeto negativo que surgiria se abordássemos a questão pelo modo reflexivo, didático, filosófico. Não nos identificamos de cara com a personagem nem derivamos consequências de sua atitude. Na realidade, somos fixados em sua caricatura feita com o corpo do humorista, seus gestos e frases feitas, sentimos, talvez, até vontade de imitá-la, dividindo a graça com nossos amigos que também viram.
Em determinadas situações, rimos porque, grosso modo, parece que não é com a gente, que não aponta pra nós nem nos atinge, embora mantenha uma certa proximidade. O que nem sempre é verdade. Mas esse deslocamento promovido no contexto do humor torna o riso possível.
Até em casos mais graves, o resultado é mantido. Alguém que faz piada do próprio sofrimento num momento desesperador não diminui necessariamente sua dor, mas talvez fale dela de uma forma ainda mais reveladora. Sim, parece haver um alívio envolvido, mas, ao mesmo tempo, uma constatação do tipo a situação é tão ruim que para nos aproximarmos dela precisamos de ajuda, de uma intervenção que não seja tão sisuda e convencional.
Longe de ser uma bobagem ou algo a serviço da covardia e da humilhação, o humor, assim como o chiste, é um dom precioso, uma inteligência de vida. Pode ser um jeito de falar do que dói, um refresco de nossas próprias tiranias, ajuda para lidar com os horrores do mundo.
Diante do caos, o palhaço talentoso abre mão do controle e do desespero e aposta na escuta. A partir disso, propõe um certo jogo criativo, ousado, complexo, ao mesmo tempo engenhoso e desastrado, contagiante no melhor sentido. Pode ser aquilo de rir pra não chorar, mas talvez seja também o caso de rir para poder chorar, algo que vai contra a sobrecarga de realidade que anestesia, embrutece, deprime e paralisa.
“Respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada”, diz a música. Acho que é por aí que luta a palhaçada.