Quem veste quem te faz rir?

Ao olhar para filmes e programas humorísticos que fizeram história, podemos compreender a importância dos figurinos na dramaturgia e a necessidade da moda em também contar a piada.

Ao longo de 15 anos, foram exibidos mais de 400 episódios da série A grande família, da Rede Globo. Foram 14 temporadas, a última em 2014. E haja figurino para tudo isso. A maioria, aliás, feitos exclusivamente para os personagens interpretados por Marco Nanini, Marieta Severo, Lúcio Mário Filho, Guta Stresse e Pedro Cardoso e outros.

O último representou genuinamente o famoso Agostinho Carrara, até hoje um ícone de moda por causa de seus looks, que misturavam estampas e cores para lá de espalhafatosas. ”Ele não seria tão engraçado se não vestisse aquela calça e aquela blusa específicas”, explica Cao Albuquerque, figurinista da série por 14 anos. Ele conta até as “reclamações” de Pedro, que relatava ser parado na rua, várias vezes, para receber elogios pelas suas roupas e não necessariamente por sua atuação.

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Agostinho Carrara, interpretado por Pedro Cardoso, com seus looks icônicos em “A grande família”.Fotos: Reprodução/TV Globo

Para o figurinista, a moda tinha um fator importante na interpretação do personagem, pois eram elementos significativos para o telespectador pensar: ”Não vou sentir raiva das falcatruas do Agostinho, já que ele está tão bem vestido”. De fato, imagine o personagem caracterizado com um moletom cinza. Com certeza perderia a graça.

”A roupa nos leva a contar a história que queremos”, continua Cao. Ela é também falada no texto, já que em qualquer arte cênica o figurino dá o tom do personagem. É um dos alicerces materiais que sustentam a narrativa e na comédia não é diferente – mas, nesse caso, um dos principais pontos de distinção é a busca pelo riso, pelo humor. Não que você não possa rir assistindo o Jornal Nacional. Às vezes, até acontece. Mas, se o realismo impõe limitações, a comédia oferece uma perspectiva a mais. E isso não é pouca coisa. Na verdade, é essencial para manter nossa sanidade e abrir nossos olhos para enxergar possibilidades criativas.

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Fotos: Reprodução TV Globo, Globo Filmes, SBT e Multishow

As roupas televisionadas também impactam o mercado de moda e principalmente o comportamento de consumo. Nesse contexto, é interessante perceber como isso se deu por tanto tempo em uma produção como A grande família. Existe o fator do sucesso da série, claro, já que ela era tão assistida quanto a novela das 9. Mas o figurino também foi um grande responsável por sua fixação no imaginário popular. Passados 20 anos da estreia, ele ainda é referência e já chegou até a estampar campanhas da Gucci e Dior (de brincadeira, claro). ”Tinha gente que ligava na Globo para perguntar como seriam as roupas do próximo episódio. Uma senhora ligava semanalmente para saber o que Dona Nenê ia vestir”, relembra Cao.

Para compor os looks, o figurinista pensou em cada personagem associado a uma década. Por exemplo: Lineu é localizado nos anos 1960, com uma aura mais rígida e Nenê transita pelos anos 1950, com o contexto de uma ‘dona do lar’ e vestidos tubos. Já Bebel e Tuco eram mais contemporâneos, com elementos visuais dos anos 2000. Além dessa questão temporal, o profissional resgatou referências da sua própria família, lá do interior da Bahia. ”Levei muitas fotos para mostrar que minha mãe é maravilhosa, mas seu gosto é excêntrico”, conta ele, que também teve passagem pelo Casseta e planeta e TV Pirata.

Ao longo do tempo, as personagens da série global foram mudando e, a cada ano, o figurinista pensava em alguma pista para sinalizar essa passagem de tempo, como uma camisa ou uma cor. Sua favorita foi a produção de Marilda, seguida de Nenê e Agostinho. Outro ponto importante é que, nesse gênero, muitas das roupas são confeccionadas exclusivamente, justamente por causa da possibilidade criativa a mais. Nas lojas, fica difícil encontrar o que se idealizou.

Quase a praça mais antiga do Brasil

“Mulheres, cheguei!” O bordão do perigote das mulheres, o homem mais lindo do mundo, é dele: Zé Bonitinho. Simbólico personagem criado e interpretado por Jorge Lacerda, ele marcou as telas da TV brasileira na década de 1960 até os dias de sua partida, em 2019. Sua aparição mais famosa foi em A praça é nossa, programa de Manoel de Nóbrega, que teve a primeira exibição em 1957, sob o nome de A praça da alegria, na extinta TV Paulista. Mais tarde, passou pela Record e TV Rio, até ir ao ar no SBT, em 1987, onde permanece até hoje, apresentado por Carlos Alberto de Nóbrega.

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Zé Bonitinho, protagonizado por Jorge Lacerda e parte do elenco de “A praça é nossa”.Fotos: Reprodução/SBT

Além dos bordões clássicos de Zé Bonitinho, as roupas tinham outra característica marcante: um conjunto de terno supercolorido, o cabelo com topete e uma gravata enorme, propositalmente exagerada. Tudo para dar o tom galanteador e caricato do personagem. O responsável por criar essa narrativa visual há 21 anos anos é Luiz Fernando Godoy. Segundo ele, ”o figurino de comédia é aquele em que você precisa dar mais ênfase a determinados detalhes, algo que no cotidiano você não daria. No humor, você tem mais liberdade para criar”.

Além de Zé Bonitinho, outro destaque foi Vera Verão, que ganhou vida com a atuação de Jorge Lafond. O ator faleceu em 2002, aos 50 anos e no auge de sua carreira. Apesar do conteúdo problemático de algumas piadas e da construção da personagem, o ator foi uma figura relevante para dar visibilidade à comunidade LGBTQIA+ em uma mídia de massa.

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Jorge Lafond interpretando Vera Verão em “A praça é nossa”.Fotos: Reprodução/SBT

Como boa parte da produção audiovisual convencional, a comédia também padece sobre uma hegemonia patriarcal branca. Em todas as séries, filmes e programas analisados pela reportagem, é nítida a ausência de personagens não brancos, sendo negros, indígenas, amarelos etc. Isso pode ser explicado pelo racismo estrutural e recreativo, ainda presente em grande parte do humor. Outras minorias também são pouco representadas, como é o caso da comunidade LGBTQIA+, ou ainda construídas de forma muito caricata.

Vai que cola (e colou)

Com 30 anos de carreira, Carol Li estava acostumada a criar figurinos realistas ou de época, até que foi parar na comédia – e se apaixonou pelo processo. ”Vamos para um lugar que é do sonho e da imaginação”, diz ela, que assina os figurinos de Vai que cola há sete anos.

O programa integra o quadro do canal Multishow desde 2013 e mostra cenas da vida cotidiana, com um elenco de humoristas renomados, como Marcus Majella, Samantha Schmütz, Cacau Protásio e Tatá Werneck. Quem também fez parte do quadro fixo, até 2016, foi Paulo Gustavo, que faleceu de Covid-19 em maio deste ano. O programa, a caminho da nona temporada, planeja uma homenagem ao ator.

Nas roupas e no cenário, tudo é bastante colorido. Isso não é uma exceção do programa, mas sim um ponto de semelhança com os outros já citados. A figurinista explica: ”O humor é vibrante, então as cores são muito importantes”. Tudo é pensado e produzido por ela e sua equipe – que tem uma costureira de prontidão no set para eventuais mudanças de última hora, o que costuma acontecer com frequência, já que a comédia tem certa flexibilidade e espontaneidade no roteiro.

Carol acredita que os humoristas, mesmo sendo atores como quaisquer outros, têm um uma maneira particular de criar, e cita Paulo como exemplo: ”Ele pensava em um personagem e visualmente já imaginava como era sua cara. A partir disso, começávamos a construir o que ele vestiria”. Para ela, o figurino é um artifício que ajuda a moldar o tom do humor, sendo que a moda ajuda a constituir o elemento cômico e a roupa também conta a piada.

Nos telões com dona Hermínia Amaral

Paulo Gustavo atuou em Vai que cola, mas talvez sua produção de maior sucesso seja Minha mãe é uma peça. Inicialmente exibida como uma peça teatral, a obra tornou-se o filme com maior bilheteria da história do cinema nacional. Ao todo, a trilogia vendeu mais de 26 milhões de ingressos. A figurinista responsável por dar vida a Dona Hermínia por meio das roupas foi Reka Koves.

Ela trabalhou por anos na indústria da moda até que resolveu se aventurar nos figurinos de TV. Fez várias produções realistas e de época, e seu primeiro longa foi Meu nome não é Johnny. Dele, relembra uma frase que Selton Mello lhe dizia: ”Você só vira o personagem depois do figurino”.

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Dona Hermínia, protagonizada por Paulo Gustavo, em “Minha mãe é uma peça”.Foto: Reprodução/”Minha mãe é uma peça”

No entanto, a figurinista não acredita em uma segmentação. ”Não é porque é comédia que a roupa tem que ser caricata, a não ser que seja opcional”, afirma ela, que também assinou a trilogia de De pernas pro ar. Ao criar um figurino, Reka diz pensar “até no tipo de comida que a pessoa come, qual seu signo e o que ela mais gosta de fazer”.

No caso de Minha mãe é uma peça, ela relata que houve uma mudança significativa do primeiro para o segundo filme. Se antes Dona Hermínia não era tão vaidosa, nas sequências, a mãe de Marcelina e Juliano se produzia com mais rigor. Vale dizer também que as piadas de cunho gordofóbico e homofóbico diminuíram de um longa para o outro.

Quanto às inspirações, Reka destaca o próprio ator principal. ”Paulo gostava muito de posar. Ele pegava o figurino e posava. Ali, vi uma referência às pin-ups”, conta, ao lembrar que presenteou o humorista com um livro sobre o tema. ”Então, trouxe um pouco disso, junto dos florais, que foram mudando de padronagem na trilogia”, completa.