Rir para não chorar? O crescimento de páginas tragicômicas

Os perfis de memes tragicômicos nas redes sociais viraram um sucesso por aqui e mostram que fazer humor com as adversidades da vida é uma especialidade dos brasileiros. Mas o que isso pode representar?

No perfil de Pedro Vinício no Instagram você vai encontrar frases aparentemente simples alocadas junto de desenhos coloridos e infantilizados. No conteúdo, no entanto, há retratos de situações desconcertantes, com um quê de desastre e melancolia – mas que, no fim, todo mundo dá risada porque se identifica. O estudante pernambucano, de apenas 15 anos, tem a página desde 2018, mas passou a postar esse tipo de material no início de 2021. O sucesso foi instantâneo, com várias personalidades famosas compartilhando seus posts. ”A Marília Mendonça me segue. Acho que ela se identificou com a sofrência”, diz ele.

Contas como a de Pedro têm ganhado cada vez mais alcance, mas de onde será que vem o nosso interesse em algo que soa triste, mesmo que nos faça rir? De acordo com a linha freudiana, nosso aparelho psíquico está sempre em busca do prazer. Acontece que isso é conflitante com a realidade, já que os limites são impostos por ela. Então, o humor torna-se nosso recurso. ”Ele transforma adversidades em graça”, pontua o psicanalista e professor Daniel Kupermann, que é também autor de Ousar rir: humor, criação e psicanálise e Seria trágico… se não fosse cômico: humor e psicanálise (Editora Artes & Ecos). ”O humor é como um escudo protetor que busca sempre nos defender de uma dor excessiva, daquilo que chamamos de trauma”, continua. ”Por isso, conseguimos ter prazer mesmo diante de uma situação de sofrimento.”

Segundo país com mais mortes por coronavírus e que teve a compra da vacina negada sistematicamente 11 vezes, basta acordar no Brasil para perceber que realmente não faltam motivos para sofrer e a melancolia parece ser a serventia da casa (se for uma piada, é de muito mau gosto).

Viver tragédias como essas exige um período de luto, no qual se torna impossível dar risada, afinal, ”rir de tudo é desespero”, como explica Daniel. Mas aqui falamos do humor produzido de forma saudável, que podemos encontrar no cotidiano. Ele, no fim, não se associa tanto à melancolia, diz o psicanalista, já que ela, por sua vez, está relacionada a uma ”lucidez excessiva, um traço que se aproxima do adoecimento e representa a incapacidade de encontrar prazer na vida e ser criativo”. Acaba que o humor é o seu oposto, pois tenta ”transformar uma realidade para que possamos enxergar a partir de outro ponto de vista, em vez de fugir dela”. Ou seja, viver apenas a melancolia, na verdade, é uma ausência de humor.

”Para a psicanálise, o humor é a principal virtude, a nossa sorte”, continua Daniel. ”Por meio dele, conseguimos perspectivas diferentes sobre aquilo que está acontecendo. É uma fonte de criatividade”.

Rir é um ato de resistência?

Outro ponto importante é o que a psicanálise elucida como ativo e passivo. Quando nos deparamos com alguma dor, seja ela coletiva ou individual, podemos buscar uma forma de transformá-la. Então, ao procurar o caráter cômico de uma situação desconcertante, podemos imprimir o desejo de alterar aquela realidade penosa. Buscamos nas risadas um recurso para transformar. ”Numa situação trágica, você fica passivo. A rebeldia do humor é justamente dizer que posso fazer algo”, afirma o professor livre docente do Instituto de psicologia da USP.

Essa veia disruptiva não é mero acaso. Inclusive, e em memória, quem tem uma frase famosa sobre isso é Paulo Gustavo, que dizia: ”Rir é um ato de resistência”. Talvez ele tenha lido Freud, já que o autor austriaco falava basicamente o mesmo. ”Freud diz que o humor não é resignado, o humor é rebelde”, aponta Daniel. O psicanalista explica que, no geral, ele aparece como uma ferramenta usada por quem está sendo oprimido, seja pela realidade, seja por alguma autoridade e ideologia, como um tom de denúncia e de mudança.

A linha freudiana também entende o humor como a brincadeira do adulto. ”É o que de infantil sobrevive em cada um de nós, em nossa criança interior”, continua o psicanalista. Quem parece concordar empiricamente é Carol Thibes, criadora do perfil Bonecas Trouxas: ”Eu me levava muito a sério, mas hoje acho que isso é ter uma ‘mentalidade de velho”’. Ela lançou a página no Facebook, em 2014, junto com um amigo que havia sofrido uma decepção amorosa. Além dos percalços do dia a dia, a inspiração são as próprias fotos das bonecas, a maioria enviada por seus 165 mil seguidores.

Carol se intitula como uma ”médium de boneca” porque fica na tentativa de adivinhar o que os brinquedos estão pensando. Para explicar a energia do perfil, a gaúcha parafraseia RuPaul’s: ”É como falam no programa, se você não pode se amar, como vai amar outra pessoa? Se você não souber rir das suas desgraças, você vai rir de outras coisas?”, questiona.

As desventuras no amor também são um dos temas que mais viralizam na Paintzoas, página de Maria Fauvel. Em 2014, ela criou uma conta no Facebook impulsionada por amigos. Desde então, a artista compartilha fotos antigas em preto e branco com interferências escritas, que são feitas no programa Paintbrush. As imagens são coletadas por diversos lugares por onde ela passa: na rua, nas feiras ou em outros feeds digitais. Em sua visão, o humor oferece certa leveza, já que ”é impossível ser sério o tempo todo”.

Tá todo mundo ”meio assim”

A dureza da realidade, porém, pode deixar tudo bem pesado mesmo para quem vive de fazer piada. Carol relata que, por um tempo, ficou desmotivada para criar, mas conseguiu ver no humor um incentivo. ”É a coisa mais importante da minha vida porque sem ele não conseguimos nem sair da cama. Meu senso de humor me salvou de entrar em depressão”, compartilha ela.

O agravamento de nossa saúde mental, seja com quadros depressivos ou ansiosos, é um dos impactos da pandemia. No estudo One Year of Covid-19, o Instituto Ipsus aponta que 53% dos brasileiros participantes afirmam que ela piorou desde o início da crise sanitária.

A real é que (quase) todo mundo está passando por maus bocados. E é justamente esse consciente coletivo outra característica importante do humor. Ao mesmo tempo que as experiências dolorosas são individuais, elas podem ter um fundo comum. Passamos por muitos dramas semelhantes – às vezes só muda o CEP mesmo. O sucesso das páginas de Pedro, Carol e Maria mostra na prática esse processo de identificação acontecendo.

”A principal nuance é que o humor que positivamos ri de si mesmo. Você pode estar rindo do outro, mas você está incluído no objetivo visível. E rir de si mesmo celebra a ideia de que, no fundo, ninguém é superior”, explica Daniel. ”É como um riso mais universal. Você não ri da vida. Você ri com a vida, você ri com o outro, e não do outro”, completa.

Para Carol, ”rir da própria desgraça” é justamente o que firma o elo com seus seguidores. ”Muita gente já me deu o relato que estava em depressão profunda e disse que a página ajudou muito. Recebo várias mensagens de pessoas que estavam tristes, começaram a olhar os memes, e até esquecem a tristeza”, diz a criadora. Maria também acredita que essa interação é uma das características mais interessantes na manutenção do perfil. ”É como pegar algo particular e transformar em algo plural”, completa ela, que afirma já ter feito algumas web-amizades a partir do Paintzoas.

Se existem muitos motivos para sofrer, existem tantos outros para rir. Achar o humor não precisa ser tarefa árdua, já que ele está ”nas coisas mais simples do mundo”, como relembra Pedro Vinício. O estudante diz que suas inspirações vêm do ato de observar: uma conversa, um filme, uma música. ”A ideia está pronta na boca das pessoas”, compartilha ele, que tem como descrição do perfil na rede social a frase ”por trás de todos os desenhos ruins existe uma pessoa que tentou fazer você sorrir”.

Fazer um humor plural é sua meta, mas ele também alerta sobre a existência de “um humor sem graça, que não era nem pra ser chamado de humor”: ”O humor do presidente é sem graça. Ele tenta ser engraçado só fazendo coisa errada”, diz ele sobre quem confunde, ou finge que confunde, o humor com piadas preconceituosas.

É meme, mas é sério

Se a máxima ”toda brincadeira tem um fundo de verdade” é real, não sabemos. Mas é certo que o humor possibilita que um tema complexo seja apresentado de uma forma mais fácil de ser digerida. ”Ele te faz pensar, mas não deixa aquilo te consumir”, compartilha Maria, que reivindica a relevância do Paintzoas ao possibilitar um caminho novo para a realidade que pode ser dura: “Você não deixa de pensar naquilo, mas pensa de uma maneira diferente”, continua a artista.

Já Carol diz ver o Bonecas Trouxas como ”uma ferramenta para fazer refletir” e cita uma frase marcante que costuma ser associada a George Bernard Shaw ou Oscar Wilde, dependendo da fonte de pesquisa: ”Se você quiser falar a verdade para as pessoas, seja engraçado, ou elas vão te matar”.

Daniel concorda: ”Existem coisas que, se você disser rindo, têm mais impacto do que se disser diretamente. Rindo se diz a verdade, então essa é uma maneira de tocar as pessoas que pode ser mais eficiente”. Ele destaca, ainda, que o humor se difere do sadismo ou da ironia justamente porque ele tem a noção de pertencimento e identificação que os últimos não têm.

Pedro, por sua vez, julga o humor como uma expressão artística. Ao entendê-la como algo disruptivo, ele diz que seu objetivo é provocar as pessoas e fazê-las pensar, inclusive sobre uma positividade excessiva. ”O que faço é mais próximo do real porque ninguém é positivo 100% do tempo. As pessoas apenas tentam”.

Por fim, ousar rir na adversidade (sem desrespeitar a travessia necessária do luto, claro) é uma brecha que nos apresenta um ângulo, entre outros 359, de mudança. É um lembrete de que é possível, sim, ser diferente. E, ao lembrar disso, podemos angariar forças para que realmente seja. ”O humor é uma celebração à própria condição humana. É um reconhecimento de nossa insuficiência e, ao mesmo tempo, uma celebração da potência, criatividade e da vida”, finaliza Daniel.