Pontos de visibilidade

Uma costureira do agreste pernambucano usa a moda a seu favor para construir um mundo mais justo e sem preconceito.

 

Nós passamos boa parte da vida querendo que alguém nos veja. Já ouvi dizer que amor é estar atento aos detalhes, e, mais do que ver, olhar. Quando falamos de moda e expressão, isso é ainda mais latente. Mas, no mundo de injustiças em que vivemos, algumas pessoas sofrem simplesmente por ser quem são, e o desejo de ser visto pode acabar sendo substituído pelo de passar despercebido. É como um grande desamor.

Foi o que aconteceu em boa parte da vida de Érica Leal, que nasceu em Carpina (PE). Aos 20 e poucos, como ela diz, foi atraída pela cidade que ao lado de Toritama e Caruaru, compõe um dos maiores e mais produtivos polos têxteis brasileiros: Santa Cruz do Capibaribe. Muitas pessoas esquecem, mas a base da moda é composta de costureiras como Érica e as mais de 100 mil pessoas envolvidas nos 14 mil empreendimentos de confecção de roupas desses municípios, onde os negócios informais predominam.

Érica mudou-se em 2009, procurando um emprego estável e uma vida melhor. Trabalhou em alguns restaurantes e, mesmo sem saber costurar muito bem, foi contratada em uma marca de beachwear, onde permaneceu por quase oito anos. Ela se afeiçoou pela costura, mas diz que vida não melhorou muito naqueles tempos. A pernambucana relatou, em uma conversa por vídeo, que viveu muitas dificuldades por ser uma mulher trans, costureira e sem conhecimento de seus direitos. Durante sua jornada, até chegou a comemorar que conseguiu ser contratada sem que soubessem de sua identidade de gênero.

No primeiro emprego, ela afirma que era constantemente humilhada, não podia usar o banheiro e não tinha seu nome social respeitado. Segundo Érica, esse era o comportamento das pessoas que trabalhavam na marca e que chegou ao extremo. “Um dia, uma delas tentou me furar com uma tesoura e disse que não gostava de gays e homossexuais”, relata a costureira, hoje com 32 anos. ”Pensava que, quando tivesse meu primeiro emprego, teria uma estabilidade, mas comecei a achar que esse mundo não era para mim. Foi quando liguei a TV e vi uma campanha sobre violações de direitos que falava do Disk 100. Saí atrás de um orelhão, encontrei em um bairro vizinho, liguei no número e recebi orientações e acolhimento”.

Após esse episódio, passou pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), por psicóloga, advogados e assistente social. Acontece que, segundo Érica, a transfobia (tipificada como crime pelo Supremo Tribunal Federal em 2019) não acabou ou mesmo foi averiguada no seu trabalho.

O mundo girou e a costureira diz ter descoberto que a dona da marca não respeitava a CLT. Por mais ou menos cinco anos, ela conta que teve seu FGTS recolhido pela empresária. Encontrar esse furo foi o que lhe garantiu a saída da empresa com seus direitos garantidos. Érica desabafa que, enfim, se sentiu livre: ”Quando ela viu que eu abriria uma ação, resolveu dar minha alforria. Digo que fui libertada de lá”.

Com o dinheiro da rescisão, resolveu investir em máquinas de costura para produzir em casa. Foi a sua primeira tentativa de empreender na confecção e, nessa época, conta que também passou a se empoderar e conhecer a fundo seus direitos enquanto trabalhadora e enquanto mulher trans. Mas, por não ser tão familiarizada com a produção para além da moda praia, acabou voltando a procurar emprego em outra marca de roupas de Santa Cruz. Lá, relata que ninguém sabia que ela era uma mulher trans, e achou melhor assim. ”Consegui entrar despercebida, mas muitas não conseguem. E isso me dói”, relembra.

Pouco tempo depois da contratação, Érica pôde fazer a cirurgia de redesignação sexual. Precisou levar um atestado ao dono da empresa, que, segundo ela, acabou descobrindo sua identidade de gênero por isso. Três meses depois de voltar ao trabalho, tempo mínimo para que houvesse seu desligamento, foi demitida. ”Eles precisavam de costureira, havia uma placa de ‘procura-se’ lá na frente. Mesmo assim, o dono me tirou. Isso foi um ato de transfobia. Ele não queria uma pessoa trans na empresa dele”, afirma.

Érica voltou, então, a trabalhar em casa. Prefere assim e conta que há quatro anos a empreitada vem dando muito certo, obrigada. Dessa forma, conquistou uma renda maior, passou a empregar alguns funcionários e ter mais autonomia, pois o salário comum de uma costureira por lá é o mínimo. “Quando trabalhamos em uma fábrica, temos que levar nossa garrafinha, só podemos levantar três vezes para ir ao banheiro, aguentamos nove horas olhando para uma agulha”, relata.

Apesar da jornada difícil, Érica diz que ama costurar. ”Faço tudo com amor. Monto uma peça, olho e penso como é gratificante estar contribuindo com a autoestima de outra pessoa”. Esse amor, no entanto, continua sendo uma relação complexa, que, muitas vezes, não parece ser retribuída. ”Temos os desfiles no Moda Center (polo de comércio de vestuário da região), mas eles não mostram quem está por trás daquilo, daquela roupa”, questiona.

”Faço tudo com amor. Monto uma peça, olho e penso como é gratificante estar contribuindo com a autoestima de outra pessoa”.

Questionar virou um verbo de ordem para Érica e essencial para o trabalho que vem desenvolvendo agora. Depois de tudo o que viveu, ela diz que é gratificante ser quem é. Virou ativista, faz parte de dois coletivos transsexuais da cidade e de mais um que busca melhorias nas condições para as trabalhadoras da confecção, chamado Mulheres do Polo, além de lecionar costura. ”Eu acredito que, lutando nesse coletivo, luto pelo espaço das trans costureiras que existem no município de Santa Cruz”, diz a pernambucana, que, em 2020, chegou a ser candidata a vereadora levantando essas bandeiras.

Ao longo de sua jornada, Érica foi vista, sobretudo, por ela mesma. Sua história com a moda não é repleta de felicidade, apesar de ter superado muitas das injustiças. O ideal seria que não houvesse tantos obstáculos para alguém se amar, ser amada e encontrar sua paz. Mas, se a moda pode ser sobre amor, e o amor é sobre ser notada e celebrada, isso foi algo que a costureira aprendeu a cultivar com o tempo, por ela, por quem veio antes e por quem virá depois.

”Hoje, tenho um sentimento de gratidão, fortalecimento e empoderamento. Eu acredito que lutando na costura vou lutar também pelo espaço das outras trans que existem no município. É gratificante estar onde estou e conseguir contribuir, do meu jeito, para melhorar a vida das pessoas do futuro. Afinal, se eu tenho esses direitos, é porque outras trans lutaram por eles”, finaliza.

Sobre moda e amor é a nova coluna da ELLE View, em que convidamos nossas leitoras e leitores a enviar histórias sobre sua relação com a moda: de amor, de sonho, de alegria e também de desafios. Quer ter a sua história contada? Escreva para pautas@elle.com.br com o título “Sobre moda e amor“. Vamos ler cada uma delas e selecionar mensalmente uma para aparecer por aqui.