Observação, intuição e imaginação

Faela Maya é a roteirista, atriz, diretora, câmera, montadora, enfim, a concretizadora da novela Pobreza Brasil, que vem construindo em Jaguaribe (CE) uma verdadeira escola de atores e um novo olhar para o papel das novelas.

Rafaela Maya estava assistindo um filme de terror com os amigos quando o grupo teve a ideia de criar uma história com a mesma tensão da tela, só que, dessa vez, eles seriam os personagens. Maya era a mais acostumada aos longa-metragens – tanto por espiar as televisões alheias escorada do lado de fora da janel,a quando ainda não tinha o aparelho em casa, quanto pelas madrugadas viradas vendo Corujão – e logo ficou encarregada de escrever a história para o grupo. “Criei os personagens, distribuí os papéis e todo dia eu escrevia um episódio”, relembra. “A história era tipo um assassino em série que ia matando os amigos, uma a um, e a gente só poderia descobrir quem era o assassino no final.” A brincadeira revelou uma paixão pela escrita, um gosto por compartilhar universos mágicos, mas também uma ferramenta que se tornaria fundamental na busca pelo seu próprio eu.

Hoje com 29 anos, Rafaela é a idealizadora, roteirista, atriz e diretora da novela Pobreza Brasil. Com episódios que ultrapassam 150 mil visualizações, a primeira temporada foi desenvolvida para ser consumida em seu Instagram, sem investimento e com todo elenco formado por não-atores. “Eu era blogueira fracassada. Meus stories davam entre 15 e 20 visualizações e, se eu abrisse uma caixinha de perguntas, eu mesma tinha que mandar alguma coisa porque ninguém engajava!”, diverte-se. “Assistindo alguns vídeos aleatórios no YouTube, surgiu a ideia de fazer conteúdo para os stories, e, por que não, uma novela? Os primeiros episódios foram no improviso, mas, a partir do quinto, eu comecei a roteirizar.” Antes do sucesso da novela – que só se consolidou com força do episódio 20 –, um esquete de humor não relacionado à trama viralizou. Barzinho Clandestino teve mais de 400 mil visualizações e a conta de Faela Maya começou sua decolagem.

Novelas boas têm tom de familiaridade, seus dramas são incontornavelmente humanos e, embora seu sentido — o porquê — seja nítido desde o primeiro capítulo, são as ações e emoções — o como — que carregam as pessoas pelos episódios. É a vida comum, os problemas corriqueiros, mas do outro lado da tela as pessoas falam como nós gostaríamos de falar. Pobreza Brasil não foge à regra: a diarista Tereza busca sustentar sua filha, Tronco, após perder o emprego (por ter pedido para sua chefe assinar sua carteira de trabalho) e ser cortada do Bolsa Família. “A maior lição ao fazer a novela foi entender um pouco melhor o lugar em que eu vivo e as pessoas que estão ao meu redor”, revela. “Querendo ou não, me fez parar para pensar e observar as pessoas que cruzam diariamente comigo. Escrever é um processo de atenção também — observação, intuição e imaginação. Meu maior aprendizado foi olhar para dentro de mim e ver o que tem no outro que também tem em mim. É um tipo de empatia coletiva, entende? A novela me proporcionou isto: ampliar minha visão do mundo dentro do que eu mesma vivo.”

“Escrever é um processo de atenção. Meu maior aprendizado foi olhar para dentro de mim e ver o que tem no outro que também tem em mim. A novela me proporcionou ampliar minha visão do mundo dentro do que eu mesma vivo.” Faela Maya

O elenco começou pequeno: uma sobrinha, uma amiga e duas vizinhas. Tronco Mapuá (Joelma Moreira), Altiva Magro (Letícia Pereira), Margô Resefild (Ysla Kauane) e Tereza, que é interpretada pela própria Faela Maya. No episódio cinco, Chica das Cafonas aparece para rivalizar com Altiva. “Veio a pandemia e queria continuar a novela, expandir o universo dessas famílias”, conta, “Fui criando outras personagens, chamei minha mãe, meus primos, vizinhos que eu já conhecia.” As orientações da diretora se restringem a conteúdo da fala, tom e expressão, permitindo que haja espaço para que cada não-ator tenha a liberdade de atuar. Enquanto público, é muito prazeroso acompanhar o desenvolvimento das pessoas envolvidas. Os personagens se tornam mais envolventes a cada episódio porque a investida de Maya, no fim, tem se tornado um laboratório de atores em Jaguaribe (CE).

Escrevivência

“Até hoje escrevo no caderno. Eu prefiro”, conta Faela. “Meu processo de escrita começa pensando no capítulo como um todo, o que precisa acontecer. Assim, divido o episódio entre cinco e seis atos, faço um fichamento de ações e só então começo a escrever falas.” Apesar da generosa dose de humor nos roteiros de Pobreza Brasil, ela não se considera comediante. “Eu conto causos do cotidiano que eventualmente são engraçados”, declara. Sua primeira investida no gênero mais desafiador de escrever foi quando atuava como professora no programa Mais Educação, no qual pessoas da comunidade ministram aulas em escolas públicas. Para dinamizar as aulas, começou a escrever peças com a proposta de que fossem apresentadas uma vez por mês na hora do intervalo. Em paralelo, escreveu um livro infantil que fala sobre solidão, luto, cuidado e confiança. Mas esse preferiu deixar na gaveta, pelo menos por enquanto.

Faela cursou pedagogia e depois biologia, graduação que antecedeu as artes cênicas. “Eu lembro que na biologia tinha um gramado em frente à minha sala e, no intervalo das aulas, eu saía, me jogava no gramado e gritava ‘Eu quero ser de humanas!’, completamente louca”, relembra entre uma gargalhada e outra. O teatro sempre foi um sonho para Maya, desde as apresentações bimestrais do ensino fundamental em que participou. E, em 2015, ela decidiu viver o sonho. Saiu de Jaguaribe e foi para Fortaleza, se instalou na Casa do Estudante e cursou artes cênicas por quatro semestres. Teve que voltar, mas ainda deseja concluir os estudos. “Quando fui para Fortaleza, eu larguei o emprego, na busca da minha paixão, uma coisa bem sublime”, relembra, “Aproveitei e me assumi como mulher trans – foi a vida virando de cabeça pra baixo.” Durante a transição, a escrita de Faela não foi nem para a prosa nem para o roteiro. Abrigou-se em poemas existenciais, lembrando que, às vezes, é preciso se perder um pouco dentro de si para se encontrar.

Dessa profunda investigação emocional, uma verdade criou raízes em si: “Eu me conheço a ponto de não deixar ninguém apontar o que eu sou”, dispara. Essa autoconfiança foi fundamental para fortalecer Faela em sua volta à Jaguaribe e também na produção de Pobreza Brasil. “É curioso porque a novela estourou no capítulo 20, que foi dificílimo de gravar por questões sonoras da rua”, conta. “Todo mundo estava na rua nesse dia com som ligado, eu lembro de terminar de gravar e estar exausta, triste mesmo porque parecia que os vizinhos estavam fazendo isso de propósito – e depois eu descobri que era mesmo.” Além disso, a produção de guerrilha cobra muita persistência. Todos os episódios são gravados com celular e editados no notebook de Faela. No começo da temporada, em 2019, seu sobrinho queimou metade da tela do computador acidentalmente. Assim, boa parte dos episódios foi editada com metade da tela e um processamento que não era o mais ágil. “Um vídeo de oito minutos demorava oito horas”, diz. “O computador travava, tinha que esperar, tomar um café e deixar destravar naturalmente. Se eu mexesse, tchau, perdia o arquivo. Quando voltava, pegava para editar, rezando para não travar de novo. Travava, respirava fundo… A edição foi um processo de muita paciência, e acho que evoluí bastante. Eu transcendi a matéria porque passei muita raiva”, brinca. Em setembro de 2020, felizmente, Maya conseguiu comprar um computador melhor e tem passado menos raiva.

Além da brilhante evolução dos não-atores em suas performances, a escolha de planos e movimento de câmeras também são exemplos de um aprendizado constante e coletivo. Faela nunca estudou fotografia, então toda a cena – como se posicionar no plano, iluminação, movimento de câmera – tem uma produção intuitiva, regada ao repertório de noveleira. O clone (2001), Xica da Silva (1997), Mulheres apaixonadas (2003) são grandes referências nacionais. Café com aroma de mulher (1994) e Betty, a feia (1999), ambas do Fernando Gaitán, compõem o rol de produções colombianas preferidas da diretora. Faela pensa em fazer filmes, algo mais lúdico e fantasioso, com o mesmo tom de comédia que tem explorado hoje. E pontua uma carência do circuito nacional de novelas: onde está o resto do Brasil, além do Sudeste? “As novelas do Leblon ou da Avenida Paulista não geram identificação com a maior parte do país”, provoca. “As emissoras deveriam investir mais em novelas regionais. O Ceará, por exemplo, tem diversos sotaques e eu gostaria de ver isso. É muito potente quando a gente vê nosso modo de ser, nossas culturas, nossa linguagem. Gera identificação e a gente procura isto o tempo todo: se identificar com o que a gente está vendo.”