O cabelo-arte de Janice Mascarenhas

Conheça a história, as ideias e o trabalho da hairstylist que acabou de conquistar o prêmio Dazed 100, da celebrada publicação britânica, disputado por criativos ao redor do mundo todo.

image 69

Foto: Paulo Almeida

Janice Mascarenhas tinha o hábito de trançar o próprio cabelo durante as aulas na escola. Sentava nas primeiras carteiras e, por isso, os outros alunos reclamavam: “Tira o cotovelo, Janice! Não dá para ver a professora”. Mas o que era problema durante a aula virava sucesso no recreio. Todo mundo queria ter os cabelos trançados por ela, que, à época, era especialista na trança tipo espinha de peixe, tão em alta entre os lisos e alisados dos anos 2000. O sonho, contudo, não era se tornar uma cabeleireira. O jornalismo é que a encantava. No entanto, uma gravidez inesperada mudou os seus planos. “Tive duas gestações ao longo desses oito anos. Foi um exercício de paciência, mas, nesse período, fui vivenciando e pesquisando o cabelo sem necessariamente trabalhar com ele”, conta em entrevista à ELLE Brasil.

Ela já foi vendedora de loja, vendeu comida na rua (ela também ama cozinhar) e, enquanto passava por esses empregos, seus amigos sempre repetiam: “Vai fazer cabelo. Você vai bombar”, lembrando-a de seu talento. Uma de suas amigas foi além e a inscreveu em um curso de beleza afro, no Rio de Janeiro. Aquilo acendeu a sua autoconfiança e a ajudou a aperfeiçoar suas técnicas. Depois, essa mesma amiga incluiu o nome de Janice em um festival de cultura negra e LGBTQIA+, em Berlim. E não é que ela foi aprovada no
CuTie.BIPoC Fest?

“Eu fui chamada para performar no festival e não tinha ideia do que ia fazer”, relembra. “Supostamente, eu apresentaria a minha pesquisa sobre diáspora brasileira, mas, ainda que inscrita e aprovada, não entendia que aquelas conversas que tinha com minha companheira faziam de mim uma pesquisadora. Parecia o começo da minha trajetória com o cabelo, mas o cabelo estava comigo a vida toda. Eu é que não conseguia perceber o quão valioso era esse conhecimento porque eu não queria viver no mercado de salão de beleza.”

shaolin
O artista e modelo Shaolin com tranças e adornos de argila assinados por Janice.Foto: Bruno Santiago

O prazo era apertado: somente uma semana para ter uma ideia de performance e ir apresentá-la em outro país. De madrugada, a inspiração prestou uma visita. “Pensei em colocar um cabelo de 2m na minha raiz sem trançar. Iria me sentar e começar a trançar as mechas para sentir a reação das pessoas. Qual vai ser dessa galera? Será que vão me ajudar a trançar?”, indagava-se. “Porque a galera preta, em qualquer lugar do mundo, sabe que trançar demora um bom tempo e, se eu me proponho a trançar aquele cabelo gigante, eu preciso de ajuda. Queria mostrar que, mesmo sem falar nada, as mulheres pretas se entendem através do cabelo.”

“Na minha fala, eu me permito passar os valores que meus ancestrais gostariam que eu passasse e usar meu lugar de responsabilidade para toda a comunidade.”
Janice Mascarenhas

Ainda que confiante na ideia, Janice imaginou que ficaria pelo menos cinco horas até as pessoas começarem a entender sua proposta. No entanto, assim que começou a fazer a primeira trança, uma mulher se levantou, pegou uma mecha da parte de trás da sua cabeça e começou a ajudá-la. E, uma a uma, foram ao encontro de Janice. Mais de 15 pessoas se empenharam no movimento de revezar os fios e, em uma hora, toda a cabeça estava trançada. “Eu fiquei o tempo inteiro de cabeça baixa, não via o que estava acontecendo em si. Mas quando eu levantei a cabeça as pessoas estavam chorando!”, remonta emocionada.

Os desenhos da cura

Desde criança, Janice assistiu a vida da sua mãe como manicure. Desde o começo, atendendo a domicílio, até a cadeira fixa em um salão muito prestigiado de Niterói. Apesar de trabalhar com as unhas, a mãe gostava mais dos cabelos e o seu interesse também cativou a filha a imergir nesse universo. Nesse processo, foi impossível para a então pequena Janice não notar as extensas horas de trabalho de sua mãe e a estranha relação entre as clientes e as prestadoras de serviço (um monólogo por parte das primeiras, que pareciam embutir no valor pago para as segundas uma sessão de descarrego sem a permissão delas).

Por isso, a hoje cabeleireira demorou bastante para aceitar tal nomenclatura. Esse tempo, inclusive, a ajudou a entender cada vez mais o que era esse ofício antes dela chamá-lo de seu. Hoje, a religiosidade e a arte envolvidas no seu trabalho ajudam a transformá-lo em algo diferente do que viu na infância. “Eu posso me conectar com uma pessoa ao tocar na cabeça dela. Sinto que entendo muito das pessoas ao trançar os seus cabelos”, diz. Segundo Janice, na Nigéria, a trança foi o primeiro oráculo de adivinhação. Sua proposta para o Dazed100 (competição criada pela revista britânica
Dazed que reúne projetos de 100 criativos de diferentes áreas de atuação ao redor do mundo) tinha a ver com isso. “Queria fazer um filme que contasse a história da trança desde seu início até seu reflexo na mulher negra brasileira.” Pouco antes desta reportagem, o resultado do Dazed100 saiu: Janice é a vencedora. O prêmio é um investimento de 30 mil libras para a execução de seu projeto.

janice-paulo-sertao
Foto do projeto feito por Janice em parceria com o fotógrafo Paulo Almeida, que clica as crianças do sertão brasileiro com tranças assinados pela hairstylist.Foto: Paulo Almeida

“Eu sou do candomblé alaqueto, que é uma vertente que resgata a Nigéria. É muito mais do que uma religião. Estou o tempo inteiro reproduzindo o comportamento iorubá”, declara. “Na minha fala, eu me permito passar os valores que meus ancestrais gostariam que eu passasse e usar meu lugar de responsabilidade para toda a comunidade.” Não à toa, a digital do trabalho de Janice são as esculturas capilares, que, por vezes, incluem cerâmicas de barro (um de seus materias preferidos). Para ela, levar essa tradição em sua expressão artística é fundamental para se fortalecer e também para que as pessoas entendam o valor do que é pensar negro. “As pessoas sempre querem chegar a um lugar, mas no Brasil isso é muito difícil”, reflete. “Ou você entra no propósito de fazer um exame de DNA, que é matemático e vai te dar porcentagens sanguíneas, ou você entra em um lugar de se entender como afro-brasileiro, o que envolve muitas origens e pode ser uma pesquisa imensa, de uma vida inteira. E pode ser lindo”, sugere.

image 71
Foto: Paulo Almeida

Foi no calor desse debate sobre a identidade que o fotógrafo Paulo Almeida propôs um projeto em parceria com a trancista: fotografar crianças do sertão brasileiro com roupas de grife. “Era meu aniversário e, com a correria, acabamos esquecendo das roupas — mas ficou lindo, cara! Ficou supernatural. Fizemos só os cabelos. Eu até tirei
uma foto usando Bottega Veneta. Mas de longe não é a melhor foto!”, diverte-se. E a aventura já tem continuação agendada. Uma revista britânica se interessou em transformar o projeto visual em fotolivro e vai investir em uma nova viagem por lugares que contem a história do Brasil. Assim, a ideia é que Janice e Paulo possam expressar essa narrativa à sua maneira. Afinal a busca por identidade é um trabalho árduo e feito com muitos braços, dos que já foram aos que virão.