Minha vida é uma novela. E a sua também.

Retrato e caricatura de uma sociedade, as telenovelas brasileiras são ferramentas poderosas e influentes na cultura popular local. Da moda ao nome de batismo, contamos alguns casos de como esses produtos se embrenharam na vida das pessoas.

Susana Vieira só errou em uma coisa quando questionou o que significavam as críticas de duas ou três pessoas enquanto “130 milhões” a amavam: são bem mais de 130 milhões. Uma prova disso aconteceu em 2014, durante minha primeira (e única) cobertura do Emmy Awards, a maior premiação da TV estadunidense. Eu e um grupo de colegas jornalistas debatíamos se determinada moça era a rapper australiana Iggy Azalea. Questionada, ela disse que era “apenas uma convidada” e que era russa. Quando comentei que era brasileiro, ela fez a seguinte revelação: “Eu amo as novelas brasileiras! Minha atriz favorita é a Susana Vieira”.

A situação para lá de inusitada mostra o quão irrelevante é a opinião dos detratores da telenovela perante seu impacto na cultura pop brasileira – dentro e fora do país. Esse tipo de produção entretém, dita comportamentos, traz importantes debates de cunho social e faz com que a ficção, muitas vezes, transforme a realidade.

Como no meu caso. Só estava cobrindo o Emmy porque, desde criança, fui apaixonado por novelas, e isso me guiou para o jornalismo de entretenimento. Mas essa não foi a primeira vez que a teledramaturgia gerou sustento para mim e minha família. Aos 13 anos, inspirado pela personagem Raquel (Regina Duarte) de Vale tudo, comecei a vender brigadeiros, beijinhos e cajuzinhos para ter meu próprio dinheiro. Deu tão certo que minha mãe deixou seu emprego e passamos a vender de sanduíches naturais (como na novela) a tortas de ricota, que acabavam antes mesmo de passarmos por todas as lojas do centro de Curitiba, onde cresci.

Graças a isso, construímos nossa casa na Cohab, na periferia sul da capital paranaense, e realizamos outro sonho que Silvio Santos nos vendia todo domingo pela tela da TV. Parafraseando Lucas Martins Néia, roteirista e doutor em comunicação pela ECA-USP: “A televisão foi a minha primeira janela para o mundo”.

Moda e comportamento

Em termos de moda, existem inúmeros exemplos de itens que saíram da telinha e foram parar na casa ou no guarda-roupa dos brasileiros: as camisas sem gola de Raimundo Flamel (Edson Celulari em Fera ferida</em>); o batom Boca Loka da primeira versão de Ti-ti-ti, que enlouquecia os homens (e também as mulheres, já que demoravam 24 horas para sair); o cabelo ruivo de franjinha da jornalista Solange Duprat (Lídia Brondi em Vale tudo</em>); os turbantes da Viúva Porcina (Regina Duarte em Roque Santeiro</em>); a bolsa Michael Kors da Carminha (Adriana Esteves em Avenida Brasil), o sonho possível de toda sacoleira em Miami, em uma época em que a classe C era protagonista da ficção e da realidade.

Os itens que as atrizes e os atores usam se tornam tão populares que a Central de Atendimento ao Telespectador da Globo emite mensalmente uma lista com os produtos mais pedidos.

Mas uma das primeiras novelas a influenciar a moda e a cultura de forma mais impactante foi Dancin’ days, de Gilberto Braga, exibida em 1978. A capa do álbum com a trilha sonora, uma foto de um pé com meia de lurex calçando uma sandália colorida, é tão icônica que serviu de inspiração para o designer brasileiro Giovanni Bianco, em 2005, a serviço de Madonna. Na época, a cantora estava lançando Confessions on a dance floor, todo embalado pela disco music.

 

 

 

Mas o ícone maior dessa novela foi sem dúvida Sonia Braga e sua personagem, Julia Matos, conforme conta a professora Vera Margareth Fabro, 56 anos: “Tinha 14 anos e Dancin’ Days influenciou a forma de me vestir, começando pela sandália com meias coloridas, que foi um marco para época, além do cabelo com franja que a Glória Pires usava”.

Fabro fala ainda de como a personagem de Sonia Braga foi importante para a representação das mulheres naquele tempo. “Ela desafiava os conceitos preestabelecidos pela sociedade sobre o comportamento feminino, principalmente em espaços públicos. Ela era decidida, simpática, alegre e, embora ex-presidiária, a gente torcia por ela. Consequentemente, influenciou nossos valores. Também lembro das discotecas. Foi nessa época que começamos a sair às sextas-feiras. Antes, o final de semana começava só no sábado. Tinha também a influência dos ‘passinhos’ nas danças. Ficávamos dias ensaiando.”

Nem só as mulheres se sentem empoderadas pela novela. Homens também, como é o caso do ex-seminarista e professor de filosofia Luis Gustavo Mendes (o nome, aliás, é por causa do personagem Beto Rockefeller, imortalizado pelo ator Luis Gustavo em novela homônima, considerada um marco da teledramaturgia nacional).

“A primeira vez que transei com um homem foi por causa de uma personagem da Maitê Proença em Passione. Tinha acabado de sair do seminário e queria muito transar, mas não sabia que existiam saunas gays. A Maitê era uma rica, que ia na Avenida Paulista no carrão conversível e botava os boys no carro. Eu fiz igual – sem o carrão. Me sentei em um café na hora do almoço e, 15 minutos depois, estava trocando ideia e descendo com um cara para aqueles moteizinhos de 40 reais na Rua Haddock Lobo”. Para quem está se perguntando qual a conexão, Mendes explica: “Pensei: se ela arruma transa na Paulista, eu também consigo.”

Todos os nomes

Nomes inspirados em personagens são a expressão mais comum do poder das novelas sobre a audiência. Recentemente, com a morte de Tarcísio Meira, voltou à tona a história de que seu personagem Capitão Rodrigo, da série O tempo e o vento, teria influenciado o nome de batismo de toda uma geração de Rodrigos nascidos nos anos 1980 (a série foi exibida em 1985). Segundo dados do Censo 2010 do IBGE, dos 601.650 Rodrigos que existem no Brasil, cerca de 41% nasceram naquela década. Assim como nasceram diversas Jumas no início dos anos 1990, inspiradas na personagem de Cristiana Oliveira, que virava onça no clássico da Rede Manchete Pantanal, que ganhará uma nova versão na Globo.

Além dos nomes, a teledramaturgia tem impacto até em nossa maneira de usar a língua portuguesa. Jargões como “é brinquedo, não”, da personagem Dona Jura (Solange Couto, em O clone</em>); “tô certo ou tô errado”, do Sinhozinho Malta (Lima Duarte, em Roque Santeiro</em>); “cada mergulho é um flash”, da Odete (Mara Manzan, também em O clone).

Isso sem falar nos apelidos que as pessoas ganham devido à semelhança física ou psicológica com algum personagem. Uma fonte, que preferiu não se identificar, relatou que a mãe chamava o pai, pelas costas, de Senhor de Montserrat, em referência ao vilão patriarcal e autoritário vivido por Carlos Vereza em Direito de amar.

O professor de história Silas Aguiar da Rocha contou que a irmã adorava a novela O cravo e a rosa, em especial a personagem Bianca, interpretada por Leandra Leal. “Lembro do dia que ela disse: ‘Minha filha se chamará Bianca’. Minha irmã tinha 34 anos quando morreu, horas antes do parto, mas minha sobrinha foi resgatada com vida. Ela se chama Bianca Rocha da Silva e tem 20 anos.”

O outro fenômeno envolvendo nomes e novelas é aquele em que um ator fica tão marcado pelo seu personagem que o público só se refere a ele por aquele nome. O caso mais clássico é o de Beatriz Segall, que morreu sendo reconhecida como a vilã Odete Roitman.

O jornalista Marcelo Rocha relata que seu tio Wilson, um representante comercial, tem uma mania engraçada: “Ele só chama os atuais personagens pelos nomes que tiveram em novelas e produções anteriores – e bem velhas. É uma regra! Sabe o Lineu, de Celebridade, do Hugo Carvana? Para o meu tio era sempre o Waldomiro Pena, do Plantão de polícia. Ruth? Raquel? Não, Maria de Fátima (Glória Pires, em Vale tudo).”

Falando nas gêmeas de Mulheres de areia, foram essas personagens que mais marcaram outra russa, a pianista clássica Ksenia Kogan, cuja primeira novela que viu foi Escrava Isaura, o folhetim brasileiro mais famoso no mundo, estrelado por Lucélia Santos. Kogan, que já trabalhou com estrelas como o ator John Malkovich e o tenor Plácido Domingo, hoje está gravando um CD de bossa nova e tem casa e negócios no Brasil.

“Adoro Glória Pires. A novela me ajudou muito a conhecer o Brasil antes de mudar para cá. Você sabe que, na Rússia, o socialismo matou as diferenças sociais, então via a favela e os ricos e foi bem estranho entender essas diferenças. Mas quando cheguei aqui, disse: ‘Conheço as relações, conheço as intrigas, as amizades verdadeiras, as falsas, conheço tudo o que acontece.’ Foi um aprendizado sobre o Brasil. Depois, foi mais fácil me integrar. Na minha alma, já conhecia esse ambiente”, diz ela. Seu maior sonho, aliás, é trabalhar em uma novela.

Sonho esse realizado por Anderson Rocha, empresário do ramo imobiliário, hoje com 54 anos. “Em 1984, tinha por volta de 17 anos e fui convidado para fazer um curso de modelo. Me chamaram para fazer umas figurações na Globo. Em 1993, entrei na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) e me formei como ator em 1996. Por um curto espaço de tempo, consegui viver um sonho. Fiz algumas participações em novelas, e guardo na memória uma em especial: Torre de Babel.”

Na trama de Sílvio de Abreu, Rocha interpretou um dos capangas do personagem do ator Beto Simas. “Ele era um traficante barra pesada. O Marcelo Antony era um dependente químico que ficou devendo para ele. Seus pais eram Tarcísio Meira e Glória Menezes.” Ele e mais dois outros vilões invadiam a casa do casal e rendiam o patriarca. “Era eu com uma arma na testa do Tarcísio Meira, com um cuidado tão absurdo que ele pegou minha mão e falou: ‘Pode segurar firme!!!’ E a Glória Menezes me olhando nos olhos e pedindo para não atirar”, fala o empresário.

Antes de gravar a cena, contudo, Meira entrou no camarim e se pôs a conversar com os demais colegas de profissão. “Ele disse um boa-tarde com a voz que ouvia ecoando pelo bairro do Irajá, nos conjuntos onde morava quando criança”, relembra. “Não sei descrever ao certo o mix de emoções que senti e, falando sobre aqui, parece que estou naquela gravação, que para aqueles entes sagrados era só uma cena, mas para mim foi para sempre.”