Era uma vez um casulo que abrigava demônias-bebês, todas prontas para eclodir e cair no mundo em ambiente tropical, na urbanidade da cidade de Belém, no Pará. Adultas, as demônias têm se espalhado a partir de Belém e algumas delas adquiriram notoriedade nacional, como a escritora Monique Malcher, nascida em Santarém, ou a cantora maranhense Pabllo Vittar, que talvez não se saiba demônia, mas cresceu em caldo cultural demoníaco, na cidade de Santa Izabel do Pará, na região metropolitana de Belém.
La Falleg Condessa. Foto: Tarcisio Gabriel
Tudo começou em 2013, quando Maruzo Costa, hoje com 32 anos, pensou pela primeira vez em fabricar o tal casulo. Fã de heavy metal, ele frequentava shows de rock ao ar livre na Praça da República, em Belém. No mesmo lugar também acontecia, uma vez por ano, em outubro, a Festa da Chiquita, um desdobramento profano da maior manifestação católica do Brasil, o Círio de Nazaré. Em cartaz desde 1978, a Chiquita se consolidou ao longo dos anos como uma festa pagã, voltada ao público hoje chamado LGBTQIA+ e plantada em pleno coração de uma celebração sacra. Foi nesse cenário que Maruzo começou a associar elementos do rock e do metal com as culturas gay, travesti, drag queen etc., que coloriam a Festa da Chiquita.
“Lá eu vi pela primeira vez aqueles seres brilhantes, com pedrarias, cabelos imensos, que eu, muito moleque ainda, não sabia exatamente o que eram”, conta Maruzo. “Esses mundos foram se unindo na minha cabeça, o cenário underground do rock’n’roll e o cenário marginal LGBT/drag queen.” Em 2013, Maruzo começou a tocar como DJ ao lado do designer Matheus Aguiar, numa dupla batizada de Noite Suja. Em dezembro de 2014, as apresentações da dupla se desdobraram na primeira edição oficial da festa Noite Suja, que seguiu em frente até ser interrompida pela pandemia. “Pensei em criar um espaço ou evento que reunisse artistas LGBT ou qualquer pessoa que nem se entendesse enquanto artista, mas tivesse algum trabalho sobre a vivência LGBT. E queria misturar isso com a montação da arte drag, com as referências da Festa da Chiquita, do Elói Iglesias, a pessoa que produz a festa até hoje, um ser careca, que usava adereços de cabelo imensos.” O sucesso da festa, nascida em outro tempo e contexto, atualizou o fenômeno underground da Chiquita e ensejou o nascimento das primeiras demônias, ou melhor, Themônias, que adotaram o “th” como uma forma de ironizar as relações sempre coloniais do Brasil com os Estados Unidos.
S1mone e Tristan Soledade. Foto: Tarcisio Gabriel
“A Noite Suja virou uma espécie de casulo para o movimento das Themônias”, identifica Maruzo, cuja versão Themônia flerta com as estéticas punk, gótica e andrógina e existe sob o codinome Tristan Soledade, em louvor à banda norueguesa de heavy metal Tristania e ao cemitério-parque da Soledade, em Belém. “Tristan é a Themônia trevosa. Themonização é demolição de padrões estéticos dentro da comunidade LGBT”, define-se.
Ele/a conta que o surgimento das Themônias provocou faíscas com a geração anterior de drag queens, inicialmente incomodada com a troca do padrão luxo da montação por referências irreverentes e associadas ao espírito “faça você mesmo” do punk rock. “Elas pensavam: ‘Demorei tanto tempo para consolidar minha carreira, com pedrarias, plumas e paetês, sempre gastando muito, e agora chegam essas pessoas mais novas, pegando saco de batata, se maquiando com urucum, coloral, temperos. Como assim?'”, rememora Maruzo/Tristan.
O processo que o coletivo chama de “themonização”, em oposição à demonização promovida pela sociedade mais conservadora contra os dissidentes sexuais, também nasceu do espírito “faça você mesmo”, como explica Tristan. “A gente sempre colava coisas pela pele, pelo rosto, e aqui é muito quente, a gente sua, imagine numa festa. Não tinha nenhuma cola que fizesse uma pedrinha ou um papel colar no nosso rosto. Até que um dia descobrimos uma cola que dura a noite toda. E a gente falou: ‘Nossa, essa cola é uma demônia’. Começamos aí a brincar também de nos elogiar, nos chamando de demônias. Quanto mais estranha e fora dos padrões estéticos, tanto da sociedade como do mundo drag, a gente estiver, mais bonita é: ‘Nossa, você está uma Themônia!’.”
À esquerda, Black Jambu, e, à direita, S1mone. Fotos: Allyster Fagundes e Tarcisio Gabriel
A themonização foi ganhando proporção e adeptos. No festival virtual Noite Suja Drag Race, em abril de 2020, a vencedora do título de Rainha Themônia foi Joanne Versace, que participou a partir do interior, na cidade de Vigia de Nazaré, com campanha de votação até das contas virtuais da prefeitura. A Themônia Uhura Bqueer (ou Rafael Bqueer) atualmente mora em São Paulo, onde prepara o documentário Themônias, com apoio do Instituto Moreira Salles. Como o nome do festival indica, é evidente a influência do reality show RuPaul’s drag race (que estreou em 2009 nos Estados Unidos), assim como do documentário Paris is burning (1990), que retratava a cena LGBT na Nova York dos anos 1980. “Trouxemos dali a cultura das houses, de ter uma mãe, um título. O ‘ball’ (baile) vem de pessoas periferizadas, periféricas, marginais, conseguirem proporcionar seus próprios espaços de entretenimento, de nomeação, coroação, premiação, porque muito era negado a elas”, diz Tristan.
Pontos de referência mais próximos são artistas como Pabllo Vittar e Gloria Groove, que despontaram em 2015 e 2016, mais ou menos simultâneas à era das Themônias. Outra metade da dupla Noite Suja, Matheus Aguiar é a Themônia S1mone, de estética influenciada por ficção científica e histórias em quadrinhos. S1mone explica a proximidade com as drags nacionalmente famosas: “Quando a gente começou, foi muito importante ter esses artistas mainstream. Como essas drags estavam na mídia, a visibilidade delas acabava vindo para a nossa festa e sendo positiva para a gente. Mas esteticamente, politicamente, acho que a gente não tem tantas coisas em comum. Influenciam mais na música, porque é o que toca nas festas, o que as pessoas pedem”.
“Ser Themônia toca em vários pontos, na demonização cristã, nos nossos corpos como corpos dissidentes, demonizados por uma sociedade hétero-cis-branca padronizada.” Skyyssime
A música das Themônias é diversa, mas Tristan e S1mone admitem que o ponto de confluência é mesmo o tecnobrega paraense, também utilizado por Pabllo Vittar no álbum recém-lançado
Batidão tropical. “O tecnobrega sempre nos representou. Tem uma cantora aqui do interior, a MC PokaRoupas, que é LGBT, canta tecnobrega, faz versões, é uma artista incrível. É a minha trilha sonora, porque é uma das nossas”, define S1mone. As tradições locais também ocupam lugar de destaque em várias frentes. O carimbó é outra expressão musical presente no movimento. Por outro lado, as tradições indígenas e amazônicas se fundem com frequência à modernidade Themônia. Diz Tristan: “Dentro do movimento existem algumas drags Themônias que são indígenas, diretamente. Existe a Uyara Monayara, também a Yndjá Báh. Skyyssime é uma Themônia que faz pinturas corporais com pigmentos naturais, urucum, fécula de batata”.
À esquerda, Tristan Soledade, e, à direita, La Falleg Condessa. Fotos: Tarcisio Gabriel e Allyster Fagundes
Skyyssime, ou Juliano Bentes, explicita o “faça você mesmo” das Themônias: “A cultura indígena, querendo ou não, está ao nosso redor. Mas também é pela falta de acesso a muitos materiais. Eu nunca peguei numa MAC na vida, mas todo tipo de cola que tem no mercado já passei na cara. Não vou em casa de maquiagem. Vou em casa de tempero. Qualquer coisa que imprima um pigmento pode virar maquiagem: coisas naturais, urucum, açafrão. Qualquer pigmento é um pigmento”.
Além da pura diversão, Skyyssime expressa um lado intelectual apurado entre as Themônias. Formado em relações públicas e cenografia, ele fez mestrado e faz doutorado em artes, sempre tomando como material de pesquisa a themonização (com “th” mesmo). “O doutorado é outro viés da themonização. É mais sobre a transthemonização, a vivência dos corpos transgênero dentro do processo criativo das Themônias”, explica.
Skyyssime começou a se montar de drag em 2016, como mulher cis, e hoje se aproxima mais da figura do homem trans. “O espaço da drag é majoritariamente gay cis, majoritariamente feito por homens para outros homens. Eu estava dentro desse espaço como uma forma de invasão também. A invasão é o método do corpo themonizado.”
Mulheres drag queens também são acolhidas entre as Themônias. Uma única enfrenta atualmente esse papel em tempo integral: Alice Amarante, mestranda em dança (também tematizando a themonização), professora de balé e conhecida como a Themônia Brigitte Liberté. Feminista, ela entendeu através da montação os limites estreitos do que a sociedade considera ou não feminino. “Se não usa maquiagem é desleixada. se usa muita maquiagem é puta. Começar a me montar foi muito revolucionário para mim”, afirma, referindo-se à possibilidade de extravagância, exuberância e exagero dentro das identidades Themônias.
“Em muitos âmbitos, o movimento da arte drag e LGBT em geral ainda são misóginos, machistas. É bem difícil, mas encontro apoio dentro do movimento das Themônias.” Brigitte Liberté
Mais que diversão, a themonização para ela é um gesto político. “O próprio corpo da mulher cisgênero dentro desse cenário já é uma coisa revolucionária, porque em muitos âmbitos o movimento da arte drag e LGBT em geral ainda são misóginos, machistas. Já passei por várias situações por ser uma mulher dentro desse cenário. É bem difícil, mas encontro apoio dentro do movimento das Themônias.” Alice, que se declara pansexual, descreve outra peculiaridade libertária de sua drag: “Uma característica estética muito forte são os meus seios, que na maioria das vezes estão à mostra. Já tive várias questões com eles, de não gostar porque são pequenos. Depois comecei a ter um incômodo muito grande com o sutiã, que me prendia, me machucava. Então pensei: por que uso se odeio sutiã? Parei, e é um momento da nossa vida. Tem muito olhar torto, um assédio muito maior”.
Skyyssime e Brigitte Liberté.
Tristan, que se define como queer, tem papel importante na inclusão de mulheres entre as Themônias, atuando como mãe de drags mulheres, como Brigitte Liberté e a escritora Monique Malcher, que hoje vive em São Paulo. “Monique foi a primeira mulher drag do Pará. O nome dela era Cílios de Nazaré. No começo ela teve uma carga de hostilização muito forte. Teve gente que acusou ela de apropriação cultural de uma coisa que é de homem cis, o que é totalmente mentira.”
S1mone revela a mesma preocupação com as Themônias como um corpo coletivo e diverso. “A minha sigla é G. Sou um homem cis gay. Não me orgulho muito de dizer isso, porque existem muitos preconceitos envolvendo a comunidade gay. A arte drag é muito feita por homens gays. A gente ainda tem essa supremacia, e tentamos driblar e combater isso. No coletivo Themônias temos artistas transexuais, não-binárias e de diversas outras siglas”, explica.
Uma definição completa e complexa do que é ser uma Themônia é oferecida por Skyyssime: “Ser Themônia toca em vários pontos, na demonização cristã, nos nossos corpos como corpos dissidentes, demonizados por uma sociedade hétero-cis-branca padronizada. No fim das contas, as Themônias são só artistas que fazem parte desse grande coletivo, que não é só de montação”. Skyyssime aproxima o movimento da arte: “Temos Themônias que são da música, do cinema, do audiovisual, da dança, de todo canto. São artistas, corpos dissidentes, corpos não padrão, corpos estranhos, corpos absurdos. São pessoas absurdas que se encontram por aí, pela rua, pela noite, pela vida, para celebrar essa estranheza e essa produção artística que não vai ser aceita no grande teatro ou museu”.
Uma entidade importante das Themônias é o que elas chamam de Megazord, em referência aos robôs mutantes do desenho Power rangers. Skyyssime decifra: “Megazord é quando a gente faz rolê de rua e está com o corpo vulnerável. Então a gente faz um Megazord, que é juntar todo mundo para ficar protegido”. Tristan complementa: “Com o Megazord, nós nos tornamos imensas, poderosas, não ficamos caladas. As pessoas que hostilizam a gente também são o nosso público”.
As faíscas entre gerações parecem cada vez mais pacificadas. Em 2019, Elói Iglesias convidou algumas das Themônias para se apresentar na Festa da Chiquita, inclusive colocando a drag Flores Astrais como uma das mestres-de-cerimônia. Skyyssime reflete sobre o cruzamento entre sagrado e profano que atravessa as décadas e acaba por construir outro Megazord, composto de Themônias, Chiquitas e até a santa de devoção dos paraenses: “O Círio de Nazaré tem uma relação muito forte com a profanidade, e a Chiquita está aí para provar. A Chiquita é o segundo maior evento político LGBT do Brasil. Nasceu em 1978, a Parada LGBT em São Paulo só começou em 1992. Elói já estava dando a cara a tapa, dizendo que a gente também existe, também acredita na santa, também tem o direito de acreditar na santa e demonstrar nossa religiosidade da forma que acreditamos”. Da diversão ao pensamento teórico, as Themônias têm a dizer em alto e bom som que existem e têm todo o direito de existir, como quiserem.
Crédito da foto no abre da matéria: Danyllo Bemerguy, Diel Bentes, Lucas Paixão e Matheus Aguiar