Ponto de interrogação

Como será que avaliamos o popular e o que isso tem a ver com nossos gostos pessoais?

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Ilustração @viamagalhaes

 

Fui criança nos anos 1980, moradora de bairros da classe trabalhadora, onde as maiores diversões coletivas disponíveis eram o rádio, a TV e a rua. Nos especiais infantis da Globo, tipo Pirlimpimpim, Plunct plact zum ou os da Turma do Balão Mágico, tinha Moraes Moreira, Raul Seixas, Fafá de Belém, Roberto Carlos, Zé Ramalho e Fábio Jr.

Nos finais de semana, tinha Chacrinha à tarde e outros programas menores, todos com atrações musicais. Modinhas do momento, grandes cantores, novas bandas. Ney Matogrosso, Paralamas, Cazuza, Simone, Gretchen, Titãs. Tinha de tudo. No domingo, clipes do Fantástico, de Gal Costa e Clara Nunes a Michael Jackson.

Michael também era hit nas vilas, e o lançamento de Thriller foi um marco. As vizinhas se juntavam pra ver um concurso de sósias em um programa de auditório – a favorita era uma mulher que se vestia como ele. Na mesma época, descobri Madonna, e tudo pela tela da TV.

Os sucessos românticos tocavam no rádio, as crianças ouviam e dançavam Menudo com o programa do Gugu. A gente amava cantar aquela do “ele tá de olho na butique dela”, hit do Genival Lacerda, e os sucessos da Clemilda, a saber, “Prenda o Tadeu” e “Forró cheiroso”, a famosa “Talco no salão”. Na vizinha da frente, tinha muito samba, Jovelina, Fundo de Quintal, aquele hit sensual do Agepê, contraponto à casa quase silenciosa dos vizinhos ao lado, cuja religião não permitia TV e proibia as estações e os sucessos pagãos, que os filhos deles aprendiam com a molecada do bairro.

Nas vitrolas dos meus pais e tias, pegava muito toda a galera ex-Jovem Guarda, Beatles, mas também Baby e Pepeu, Guilherme Arantes, Elba, Bethânia, Chitãozinho e Xororó, Lionel Richie. No rádio do carro, eu viajava, Queen ou Caetano, Djavan ou Duran Duran, o que viesse. Pra mim não existia muita divisão formal. Era tudo música, as que eu gostava e as que não curtia, e, olhando hoje, era tudo popular num certo sentido.

Depois, no início da adolescência, viriam o pagode e qualquer coisa que tocasse num baile de Carnaval. Depois o rap e o indie, marcando fases em que a música trazia alguma identidade mais direta, de pensamento, mas também visual. O grunge, e depois o britpop, com seus ídolos proletários saídos de nowhere towns ou subúrbios industriais, garotas que tocavam, cantavam e escreviam poesia. Patricinhas charmosas, punks feministas, as de lá e as daqui. O rádio e a MTV seguravam nossa onda, as fitas e depois os CDs, muito antes de podermos sonhar em ter computador em casa. Até os anos 2000, isso era coisa de gente rica ou bem remediada, ou seja, pouco acessível. Ainda hoje é assim para a grande parte da população brasileira.

Os sommeliers de inspiração sempre existiram, assim como a crítica musical, e hoje repenso o quanto de preconceito repeti. Inclusive, e muitas vezes sem saber, contra quem eu era, contra as pessoas das minhas vilas de infância e primeira juventude. O mercado nos empurra tendências, e nesse processo muita gente tomba no caminho. O grau de violência cultural pode ser brutal em muitos sentidos. A música, vale dizer, é essencialmente afetiva, pois ela passa por lugares que o dinheiro ou a moda sozinhos jamais darão conta de mapear.

Hoje há a implicância contra o funk, como houve e ainda há com o rap e com tantos outros movimentos, estilos e vertentes antes deles. Não é preciso a defesa incondicional de nada. Há críticas de todo tipo bastante razoáveis, sabemos disso.

Mas sabemos também que tudo o que fica grudado a palavras como brega, marginal, inferior é atravessado brutalmente por marcadores de raça e de classe. Aquela coisa do “é som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado” já diz muito e leva a outras mil questões. Cartola, por exemplo, também foi um homem preto que morou no morro e na favela. Mas, nesse caso, a elite resolve se apropriar de sua genialidade projetando no imaginário social uma favela romantizada e idílica, um universo paralelo e distante do que diariamente é atacado pela violência de Estado e pintado como antro do crime.

Somos um país racista e elitista por todos os lados, inclusive naquilo que se organiza como aceitação ou reprovação do que é produzido no cenário musical. A MPB aprovada e o que é popular. O popular aprovado e o que é marginal, ruim, corrompedor de inocentes. Sabemos onde o moralismo busca exemplos para criar suas novas teorias do ódio, novos apartheids.

A gente precisa lutar contra. Preservar o coração que se envolve, seja com “Carinhoso”, “Me apaixonei pela pessoa errada”, “Eu te proponho” ou “Ama, sofre, chora”. Não, não é tudo igual. Sim, há qualidades diferentes, mas é preciso considerar que, em termos de afetos e emoção, não vivemos só do que responde a parâmetros objetivos exigentes, por mais justos ou verdadeiros que eles possam ou consigam ser.

É também o momento, é o “quem é um quê” que ninguém sabe por que pega. Mas pega. Hoje em dia já tô nos 40, mas meus ouvidos seguem abertos. Talvez porque eu não viva sem música, e isso não é força de expressão. Sem música, me sinto morrendo mais rápido do que a vida pede. Escuto as minhas listas novas e velhas todos os dias. Sento, deito, tomo banho, penso com elas.

Tem aquilo de olhar os hits do momento, quase acompanhar as notícias, uma Anitta, a Bethânia que lança disco, tem a Billie Eilish, bora ver o que o Kanye fez.

E o que foge do radar máxi, o que faz nossa própria sintonia. A Céu que eu ouvi até dormir tantos e tantos dias num 2020 dureza. Duas do Don L., “Rosas e rimas”, do Sain. Muita IZA com a minha filha. Lana del Rey cancelada, altas madrugadas. Kiko Dinucci e Juçara Marçal cantando Exu, Xangô e Iemanjá, Black Alien, Kali Uchis, Patti Smith, as rasgadas da Alicia Keys e PJ Harvey. As antigas do Curumin, mais e mais Caetano, Badu retornando em todo o seu peso e glória, uma Alcione rainha de lei ou Minha Lei do Rael, uma Jup do Bairro reflexiva, Heavy Baile pra reforçar os batimentos, muita Sade na veia. Isso assim de bate-pronto. Pega aí suas memórias musicais e tenta analisar. Aposto que algumas fichas cairão, amigues.

Nessa confusão, redescobri Luiz Melodia, que sempre gostei e admirei, mas era uma coisa assim bem distante. Sei lá, me apaixonei perdidamente.

Ele canta assim:

No sonho dos meus sonhos
Quando eu sonho o mundo está pra se acabar
No fato, no relato, quando eu passo
O mundo está pra se acabar
Mas quem não pisa na terra não sente o chão
Luz é vida, pulsação.

Sente o seu grave e vai.