Linha tênue

As celebridades finalmente estão começando a revelar nas redes sociais que já se submeteram a cirurgias plásticas e mostrando até mesmo o pós-operatório em alguns casos. ELLE investiga se, com isso, o bisturi se populariza ou entra em xeque.

Em um evento de lançamento de uma paleta de iluminadores da Becca Cosmetics, em 2017, a personalidade da TV estadunidense Chrissy Teigen contou que muita gente perguntava se ela havia feito implante em suas maçãs do rosto. “Tudo em mim é falso, menos as bochechas”, comentou rindo. Ela apontou para a testa, os lábios e o nariz: “Fake, fake e fake”. Na época, a brincadeira deu o que falar, uma vez que ela estava contrariando uma, até então, lei tácita das celebridades, de fingir que nunca fizeram qualquer tipo de procedimento estético.

Quatro anos depois, o mundo deu muitas voltas e a relação que temos com os procedimentos estéticos está mudando. Agora, em vez de esconder, as celebridades estão seguindo o exemplo de Teigen ao falar abertamente sobre as intervenções que fazem. Anitta, por exemplo, vive fazendo comentários públicos a respeito do preenchimento labial que costuma aplicar.

Em julho deste ano, o designer Marc Jacobs publicou em seu Instagram uma foto após um facelift, em que ele aparece com o rosto coberto de bandagens. Nos comentários da imagem, vários famosos e seguidores o elogiavam pela honestidade, dizendo que estavam ansiosos para ver o resultado. A surpresa causada pelo designer quebrando o silêncio a respeito da cirurgia gerou uma série de questionamentos aos quais ele respondeu em entrevista à Vogue estadunidense: “Eu não vou cobrir o meu rosto porque tenho algumas cicatrizes atrás da orelha e minha cara está inchada. Vivo a minha vida normalmente e continuo dividindo-a com quem estiver interessado. Tenho 58 anos e, apesar de saber que essa não é uma cirurgia necessária, escolhi fazer. Essa é uma conversa que temos que ter como qualquer outra. O problema está na vergonha que circunda certos tópicos. E eu me recuso a viver envergonhado das minhas decisões”, declarou.

A proposta por trás de publicações como essas é a de evitar que as pessoas comuns criem expectativas irreais sobre sua autoimagem. Se sabemos que Kim Kardashian conquistou seu corpo com a ajuda do bisturi, fica a pergunta: será que faz sentido esperar que tenhamos a mesma silhueta da socialite sem passar pelos mesmos procedimentos? E mais: será que estamos dispostos a atravessar tudo isso? Uma vez avisados das agruras do processo cirúrgico, ficamos mais receosos ou mais encorajados a “entrar na faca”?

Na pandemia

O Brasil é um dos países onde mais se fazem cirurgias plásticas, de acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica e Estética. Dados divulgados em 2019 pela entidade deram conta que 13,1% do total de procedimentos estéticos e cirurgias plásticas do mundo foi feito no Brasil. O país ficou atrás apenas dos Estados Unidos.

Um relatório publicado recentemente pela Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos mostrou que o interesse por procedimentos estéticos aumentou 11% no último ano em pessoas que nunca fizeram alguma intervenção, enquanto 35% das mulheres que já haviam feito alguma cirurgia pretendiam fazer um novo procedimento. Ou seja, o fator pandemia ajudou as cirurgias plásticas a ganharem nova popularidade.

A médica cirurgiã plástica Luiza Coutinho, do Hospital Federal de Ipanema, no Rio de Janeiro, diz que, em seu consultório, houve um aumento na procura por procedimentos, principalmente por causa das redes sociais. Esse fenômeno está sendo chamado de “Zoom boom” (fazendo alusão ao Zoom, programa de videochamadas que cresceu exponencialmente na quarentena).

As pessoas estão mais interessadas em intervenções para mudar a sua aparência após se verem por tanto tempo pela tela do computador e do celular. Sem falar da popularização das lives: “A procura é pela selfie perfeita, pelos efeitos dos filtros do Instagram na vida real. O tempo que as pessoas se dedicaram a assistir às lives com influenciadores digitais e cirurgiões plásticos também teve o seu impacto nesse novo cenário”, expõe a especialista.

O pós-operatório de cada um

A influenciadora e ativista pelo movimento dos corpos reais Juliana Rangel, 35 anos, fez uma cirurgia bariátrica aos 22. Após a intervenção, ela emagreceu, mas ficou com sequelas, como queda de cabelo e intolerância à lactose. “Nenhum procedimento é igual para todo mundo, então você pode ter sequelas diferentes das minhas. O problema é que ninguém quer contar as desvantagens nas redes sociais porque isso não dá like. Uma vez que as pessoas só contam a versão positiva do pós-operatório, é claro que vamos continuar romantizando cirurgias plásticas”, argumenta.

Isso posto, é evidente que ver o procedimento de uma lipoaspiração pode embrulhar os estômagos mais delicados. É feito um furo na barriga, através dele, a gordura é aspirada por um cano. Essas situações podem chocar e causar aversão nas pessoas, mas não é exatamente essa a parte do processo que boa parte dos influenciadores mostra em suas redes sociais.

“Assistir às dificuldades do pós-operatório pode levar alguém a repensar se realmente quer enfrentar esse período. Por outro lado, pode acontecer de a pessoa assistir e, vendo que o influenciador está conseguindo passar pelo desafio, decidir que também é capaz de enfrentar o mesmo”, diz a jornalista Milena Peres, que pesquisa a relação do Instagram com os transtornos alimentares na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em Campinas (SP).

“Se, depois de mostrar o pós-operatório, a celebridade em questão revelar que a cirurgia que acabou de fazer foi uma permuta, como confiar no discurso dela?”
Juliana Rangel, influenciadora e ativista pelo movimento dos corpos reais.

“No geral, os pacientes chegam com uma boa visão sobre se haverá e quais serão as cicatrizes, por exemplo, mas algumas coisas atrapalham”, revela a médica cirurgiã Luiza Coutinho. A rapidez na recuperação é um dos pontos apontados pela especialista. “O pós-operatório é muito específico para cada paciente. Existe uma maioria que vai evoluir de uma forma, mas existem as especificidades que, por vezes, são ignoradas nesse contexto. A recuperação rápida não tem como ser prometida, mas se mostram o pós-operatório com comprometimento de levar também essa informação, isso pode ser interessante.”

Ainda de acordo com Coutinho, alguns pacientes vão sentir mais dor, terão mais dificuldades e limitação de resultado. “Eles se frustram, querem o mesmo resultado da influenciadora, blogueira, mas isso não é plausível para todos. Muitas vezes, essas pessoas têm uma equipe interdisciplinar trabalhando, com ajuda hormonal e inúmeros tratamentos para atingir aquele corpo. Não apenas a cirurgia estética. Isso tem que ser muito ponderado, porque não é a realidade e as pessoas ficam cegas.”

Filtro de Instagram

No pós-operatório da lipoaspiração de alta definição, é comum que o paciente use uma espécie de colete de metal para ajudar a manter a forma do corpo, além de um dreno nos primeiros dias. Como esse procedimento está em alta, há muitos criadores de conteúdo que o têm feito e mostrado a recuperação no Instagram. Mas e fora dos stories, eles estão bem?

“A questão é que não podemos esquecer que as redes sociais nos permitem mostrar parcelas da realidade e não ela completa”, lembra Milena Peres. “Quando postamos no Instagram, nós temos a oportunidade de decidir o que vai entrar nesse post, se ele vai ter um filtro ou não, se será editado, de qual ângulo… Nós nunca teremos acesso a 100% da realidade do influenciador que seguimos. Tomar decisões baseadas nesse tipo de conteúdo pode ser arriscado.”

E há outro fenômeno que levanta bandeiras vermelhas: os procedimentos feitos por permuta: é quando um médico cirurgião faz uma lipo LAD em um criador de conteúdo em troca de divulgação nas redes sociais. “Se, depois de mostrar o pós-operatório, a celebridade em questão revelar que a cirurgia que acabou de fazer foi uma permuta, como confiar no discurso dela? E, pensando que uma cirurgia não custa R$ 15 e ainda por cima há risco de morte nesses procedimentos, quão arriscado é esse tipo de endosso?”, questiona Juliana Rangel.

“O pós-operatório é muito específico para cada paciente. Existe uma maioria que vai evoluir de uma forma, mas existem as especificidades que, por vezes, são ignoradas nesse contexto.”
Luiza Coutinho, cirurgiã plástica.

Segundo Dênis Calazans, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o Conselho Federal de Medicina entende que a profissão não deve ser objeto de mercancia e, por isso, criou um manual de publicidade médica. “O que é permitido é a divulgação de entrevistas ou a publicação de conteúdos informativos. Um cirurgião plástico poderá fazer postagens em suas redes sociais explicando os procedimentos que realiza, tirar eventuais dúvidas do público e instruir sobre pré e pós-operatório”, explica o porta-voz. Permutas são, assim, de acordo com a SBCP, terminantemente proibidas pelo CFM. Nem mesmo a publicação de antes e depois de pacientes são permitidas. “Porque o paciente não pode se pautar no resultado de outra pessoa”, explica Luiza Coutinho.

Toma lá, dá cá

Por fim, Milena Peres lembra que as celebridades e os produtores de conteúdo também não estão imunes a se sentirem influenciados e pressionados. Uma pesquisa realizada pela Squid, empresa especializada em marketing de influência, mostrou que, entre os 2,4 mil influenciadores entrevistados, 78% sentiam ansiedade pelo uso do Instagram. “Precisamos tomar cuidado ao responsabilizá-los. O funcionamento das redes sociais e seus algoritmos estimulam esse tipo de conteúdo, com o qual precisamos ter cautela tanto como criadores quanto como consumidores”, comenta.

“A cirurgia plástica pode ser uma mudança positiva na vida das pessoas, mas é preciso ter cuidado para não aumentar questões psicológicas que podem ser potencializadas por essa influência”, complementa Luiza Coutinho. “Não há como evitar totalmente esse tipo de conteúdo, mas o ideal talvez seja criar um conteúdo com bastante responsabilidade e cuidado.” Segundo Peres, a ajuda de especialistas como psicólogos – que podem revisar os posts e alertar para possíveis gatilhos – pode barrar incentivos irresponsáveis a procedimentos estéticos desnecessários.