Novos capítulos

No mundo literário, os fãs viraram protagonistas graças às fanfics. E essas obras andam despertando cada vez mais o interesse de editoras (e também ganhando o mundo de forma independente) ao colocar narrativas mais representativas nos holofotes.

De Harry Potter a Star trek, de Crepúsculo a Star wars, você provavelmente já se deparou com alguma história derivada dessas sagas no Wattpad, Nyah!, Fanfiction.net ou Social Spirit. Se não conhece as plataformas, deve se lembrar dos tempos do Orkut e suas comunidades repletas de fóruns com teorias conspiratórias e discussões sobre as pontas soltas de um filme. As fanfictions estão entre nós há algumas décadas, e não é à toa. Afinal, quem nunca quis mudar o fim de uma história? (Alô, Jack Dawson, que todos sabemos que morreu injustamente em Titanic.)

Seja para criar uma continuação de uma ficção que já foi finalizada, shippar um casal improvável ou finalmente poder se enxergar em uma narrativa, as fics oferecem aos leitores chances de preencher lacunas, explorar ainda mais um universo querido e também a oportunidade de ressignificar e reparar identitariamente uma obra de origem.

A popularidade dessas histórias online vêm aumentando não só entre os fãs, mas também no mercado editorial. Entendendo a força da fan culture (ou fandoms) na indústria do entretenimento, muitas delas passaram a publicar fanfics nos últimos anos e acabaram abrindo um novo espaço no mercado, que inclui os best-sellers adaptados para o cinema e a TV Os instrumentos mortais, inspirado na saga Harry Potter, After, na banda One Direction, e Cinquenta tons de cinza, na tetralogia Crepúsculo.

Paula Drummond, editora de livros do segmento jovem adulto da Editora Globo, diz que é impossível falar da expansão das narrativas alternativas sem falar da internet: “A democratização do consumo (e construção) de histórias diversas e repletas de novas possibilidades aconteceu graças à internet, que possibilitou aos usuários enxergar o espaço como um meio criativo para a produção, distribuição e promoção de novas narrativas”.

Apesar de as fanfics não terem nascido com os millennials, é inegável que ganharam força com a geração que se desenvolveu junto com a internet. Hoje, esses jovens adultos não só consomem literatura online, como também possuem o poder aquisitivo que durante o ensino fundamental e médio era inexistente, um diferencial crucial para as editoras investirem no que os interessa. Além disso, agora os millennials também compõem os profissionais da cadeia de produção de livros. Ou seja, as histórias online formaram leitores, e também tradutores, revisores, editores e autores.

Para Daniel Lameira, cofundador e publisher da editora Antofágica, o fator geracional foi importante para abrir novos espaços no mercado, mas ainda existe um longo caminho pela frente até que o universo das fanfics entre de vez no radar de grandes editoras: “Muitos não se atentaram a uma mudança brusca em um passado recente. O objetivo de muitas editoras sempre foi ocupar espaço nas livrarias e conversar com jornais, até que empresas como a Amazon entenderam a necessidade de falar diretamente com o público e passaram a representar o maior percentual de vendas no mercado”. Ele acredita ainda que o papel das editoras hoje deveria ser o de curadoria de experiências, dando atenção às comunidades de leitores que buscam se enxergar em novas narrativas.

Construindo mundos possíveis

No livro Fic: por que a fanfiction está dominando o mundo?, a autora Anne Jamison explica que, ao escrever ou ler uma fanfiction, os adolescentes estão pensando criticamente sobre a mídia que consomem e começam a considerar a possibilidade de que aquelas suposições feitas na obra-base não deveriam ser as únicas existentes. Historicamente, escrever e ler fanfictions costuma dar espaço aos envolvidos reinterpretarem e transformarem narrativas de forma anônima, possibilitando expressar e explorar sua existência. Em entrevista à ELLE, Sofia Soter, escritora de fanfictions e tradutora, explica que foi ao ler e escrever essas histórias que ela encontrou um lugar de conforto e refúgio. “Como uma mulher bissexual, as fanfics foram fundamentias para descobrir e explorar desejos, interesses e fantasias sexuais. Poder ler várias versões de dinâmicas interpessoais, tanto sexuais, quanto românticas (muitas consideradas pela mídia mainstream superespecíficas e nichadas), me trouxe um vocabulário emocional interno precioso”, relembra.

O destaque às pautas identitárias é um legado irrefutável das fanfictions. Muitas pessoas LGBTQIA+ tiveram o primeiro contato com o entendimento da sua orientação sexual dentro dessas narrativas online, e histórias com protagonistas negros e super-heróis indígenas passaram a ser mais frequentes, e não a exceção. Cínthia Zagatto, editora da P.S.:, casa editorial que publica histórias que originalmente foram lançadas online, também ressalta que parte do despertar do mercado editorial para novos recortes e para o público jovem adulto foi graças às fanfics: “No começo dos anos 2000, existia apenas um gênero para o segmento mais jovem, intitulado como juveni ou infantojuvenil. As fanfics mostraram ao mercado que existia um público leitor sedento por representatividade, histórias mais maduras e que saíssem da caixinha”.

Cínthia ainda aponta que as plataformas de autopublicação são uma ótima vitrine para encontrar novos autores. “Trabalhar com autores de fanfics é bem interessante, pois o contato com as críticas, opiniões e sugestões poucos segundos depois de um novo capítulo ser publicado os deixa mais maduros e conscientes do seu público”, explica. “A conexão com o consumidor direto também é um grande diferencial, já que a interação com o público leitor ainda é um grande obstáculo enfrentado pelas editoras.”

Isso não significa que a publicação de histórias previamente lançadas online seja um caminho mais fácil ou certeiro. Entre as muitas vantagens das fanfics, que vão da acessibilidade e democratização da leitura (e até de letramento no meio digital) a uma base de potenciais leitores bem definida e conhecida, o trabalho para publicar uma fanfiction é o mesmo que para publicar uma história inédita: direitos autorais, revisão textual, campanha de marketing etc. A audiência preestabelecida e as críticas preexistentes são apenas alguns pontos positivos na complexa equação que envolve a projeção do sucesso de um livro.

Hoje, podemos resumir fanfictions como histórias que continuam, interrompem e ressignificam outras histórias em um contexto em que cada vez mais pessoas gostam de compartilhar suas narrativas – os carrosséis de stories de influenciadores que o diga! A abertura do mercado editorial formal para essas ficções, no fim das contas, não é vanguardismo. É consequência. Crowdfundings, plataformas formais de autopublicação, como o Kindle Direct Publishing, e projetos de venda por assinatura estão aí para provar que, na falta de conexão com o interesse dos leitores, os próprios fãs podem tomar a frente para contar as suas experiências.

“Estamos vivendo a era do protagonismo do fã. Produtos culturais e fenômenos midiáticos passam a ser referência de novas possibilidades não só de histórias, mas também de publicações, além dos meios tidos como tradicionais”, diz Daniel Lameira, da Antofágica, sobre como alternativas de publicação podem ser mais rentáveis do que receber royalties – e que a liberdade de se relacionar diretamente com quem está consumindo é transformadora.

Vale ressaltar também que, recentemente, as fanfics ganharam espaço dentro das redes sociais com adaptações próprias de usabilidade das plataformas. No Twitter, por exemplo, o gênero é escrito em tuítes curtos a partir de prints fictícios de conversas, posts e fotos, fazendo com que as fics ganhem mais uma forma de existência. Como dissemos no início desta matéria, os fãs são uma parte fundamental de qualquer produto midiático e, por isso, talvez seja seguro dizer que as fanfictions vieram para ficar – seja lá qual for o próximo formato em que irão se desdobrar – e, junto delas, continua a torcida para que narrativas representativas ganhem mais e mais visibilidade.