Quando falamos sobre peças icônicas, é inevitável que algumas imagens se formem de maneira automática em nossa cabeça. O vestido preto usado por Audrey Hepburn em Bonequinha de luxo (1961), criado por Hubert de Givenchy exclusivamente para a personagem Holly, é um bom exemplo.
O estilista francês já havia desenvolvido figurinos para a atriz em Sabrina (1954) e Cinderela em Paris (1957), mas nada tão marcante quanto o “pretinho básico” que selou a parceria de quase quatro décadas entre Hepburn e Givenchy. Mais do que isso, entrou para o imaginário popular como representante de uma série de valores que perduram até hoje.
Mas o que há de especial naquele vestido que o diferencia dos tantos outros já apresentados na história da moda? Não existe uma resposta definitiva. Ainda assim, é possível identificar alguns pontos em comum na criação de peças que entraram para história da cultura pop. Tem a ver com indústria do entretenimento, narrativas, contextos socioculturais, associações e estratégias de marketing muito bem planejadas.
Audrey Hepbrun com seu vestido Givenchy no filme “Bonequinha de luxo”. Foto: Getty Images
A consultora de imagem e estilo Mariana Pilizaro acredita que o status de “ícone” é formado por uma combinação de fatores que perpassam não só uma questão estética, mas também histórica e social. “É importante considerar que o reconhecimento de algo como icônico está ligado às referências e aos interesses dos envolvidos”, ressalta.
E interesses não faltaram para motivar o salto do tubinho: entre os anos 1950 e 60, as indústrias do cinema e da moda entraram num casamento que elevou ambas a um patamar de lucro exponencial.
A consultora também elenca a cultura como um elemento central desse processo. E, de fato, a questão cultural é determinante para a longevidade e a presença de um produto no imaginário social. As Havaianas que o digam, afinal, “todo mundo usa”. Nascidas nos anos 1960, as sandálias sobreviveram à virada de século e até hoje estão fortemente associadas ao estilo de vida brasileiro, do clima tropical ao samba.
“Elas são parte do imaginário e do identitário brasileiro, e recentemente, devido à aparição na abertura das Olimpíadas de Tóquio, passaram a ser relacionadas a fatos históricos”, relembra Mariana, destacando como ações de marketing contribuem para a consagração de um ícone.
Michael Jordan com o tênis Air Jordan, da Nike. Foto: Reprodução
Ana Augusta Ribeiro, jornalista e criadora de conteúdo de moda, aponta dois outros elementos centrais na produção de um hit: timing e contexto. É fácil constatar tal afirmação analisando a trajetória de um dos maiores sucessos da Nike, o tênis Air Jordan. Criado sob medida para o então calouro Michael Jordan, em um momento em que as quadras eram dominadas pela Converse, e as propagandas, por celebridades brancas, o produto representava um risco enorme para quem ainda tentava se firmar no cenário esportivo.
Michael Jordan encantou os amantes do basquete com seu jogo aéreo inigualável, e seus sneakers ganharam destaque na Liga Nacional de Basquete dos Estados Unidos, a NBA. A entidade, contudo, não morreu de amores logo de cara. Ela chegou a banir o Nike Air Jordan por violar as regras de cores e estabeleceu uma multa de 5 mil dólares em caso de desobediência. Ciente do potencial do atleta – e do que isso representaria para a marca –, a Nike arcou com todos os custos. O resto é história.
Menos é mais
Nem só de contexto e celebridades vive um ícone. Para garantir o alcance de um patamar universal, é necessário criar um produto cuja “iconicidade” não pare de ressoar com a audiência. “A atemporalidade é um fator recorrente e é fácil entender o porquê”, argumenta Mariana. “Produtos considerados icônicos são esteticamente simples, atendem a tendências e desejos que continuam relevantes ao longo dos anos”, continua ela.
As bolsas Birkin, da Hermès, e 2.55, da Chanel. Fotos: Getty Images
Um exemplo de atemporalidade é a bolsa Birkin, da Hermès, ou a Chanel 2.55. Ambas as peças se tornaram ícones de estilo, elegância e luxo pouco sujeitos à efemeridade das tendências de moda. Além disso, os dois acessórios são emblemáticos da identidade das respectivas marcas e seus valores. “Esses produtos icônicos raramente requerem ajustes estéticos”, diz a consultora. “Na maioria dos casos, apenas atualizações de materiais, cores, alguma tecnologia ou execução que ajude a conectar o item às demandas dos consumidores de diferentes gerações.”
Tem a ver com constância e identidade visual. Algo que está sempre em transformação dificilmente tem adesão em massa no imaginário popular. Uma maneira de explicar tal fenômeno é por meio dos conceitos de inconsciente coletivo do psiquiatra e psicanalista suíço Carl Gustav Jung. Trata-se de um plano habitado pelas experiências de uma comunidade, sejam elas memórias, pensamentos ou mesmo emoções. Nas palavras do próprio, tais elementos “não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade”.
O casamento entre conteúdo e desejo
O nascimento da cultura pop como a conhecemos hoje foi indispensável para que a moda – antes restrita a públicos com alto poder econômico – alcançasse uma audiência mais ampla.
O jornalista Pablo Miyazawa, autor do livro 52 mitos pop: mentiras e verdades nos boatos do mundo do entretenimento, pontua a estreia de Star wars: uma nova esperança (1977), como acontecimento marcante do fenômeno da cultura pop. “O universo criado por George Lucas deu espaço para que a indústria do entretenimento tomasse a proporção que ela tem atualmente”, argumenta. Para ele, o impacto da saga intergaláctica na indústria não transformou apenas o cinema enquanto mídia, mas a forma como as pessoas se relacionavam e interagiam com o conteúdo das telas.
O sucesso absoluto de Star wars pode ser atribuído ao personagem que dá corpo à definição de ícone: Darth Vader. “Personagens como Luke e Leia Skywalker ou Han Solo dependem de rostos. Rostos que, inclusive, envelheceram. Darth Vader está atrás de uma máscara, ele sobrevive no imaginário da audiência independentemente de qualquer coisa”, destaca o jornalista.
Isso explica a popularidade do vilão até os dias de hoje e a existência de uma infinidade de produtos temáticos da saga com sua imagem. De repente, o entretenimento não estava apenas nas telas, mas em todo lugar, acessível para os mais diversos consumidores nas mais diversas formas. Fazer parte de um universo fantástico se tornava uma realidade acessível por meio do consumo.
Fruto de uma geração diretamente impactada pela semente plantada ainda nos anos 1970, Ana Augusta é entusiasta da cultura pop e encontrou nela não apenas suas primeiras referências de moda, mas também a sensação de pertencimento: “Fui muito influenciada por Gossip girl, Sex and the city, O diabo veste Prada. Minhas maiores referências estéticas vêm de produções populares”, diz a comunicadora. “Enxergo a relação entre a cultura pop e a moda como algo intrínseco, complementar e determinante. É impossível dissociar uma coisa da outra”, acrescenta.
Ana defende que a moda auxilia na construção de histórias. “O figurino de Sex and the city, por exemplo, me marcou muito por levar personalidade às roupas. Elas ajudam a fazer a gente perceber se nos identificamos mais com Carrie ou Miranda.”
Wedding proposal
Os pontos levantados pela jornalista se fazem presentes durante toda a produção encabeçada por Darren Star, mas a máxima permaneceu por causa dos sapatos azuis de Manolo Blahnik. A peça selou o momento mais esperado pelos fãs: o pedido de casamento de Big a Carrie, após temporadas e temporadas de idas e vindas entre o casal. Segundo Ana Augusta, “muita gente não fazia ideia do que eram esses sapatos antes de Carrie Bradshaw. Agora, eles estão entre os itens mais desejados do mundo”.
O mesmo vale para a bolsa Baguette, da Fendi. Foi graças à personagem de Sarah Jessica Parker que o item se tornou hit e deu início ao fenômeno das it-bags. Mais uma vez, um ícone se forma por meio do poder de associar uma peça a uma boa história.
Especialista em cultura pop, Pablo complementa o raciocínio ao observar como a indústria do entretenimento é capaz de criar desejos por meio de narrativas: “Você não quer um relógio apenas porque ele é bonito. Você quer o relógio porque ele está sendo usado pelo James Bond, que é bonito, elegante e corajoso”.
O jornalista faz referência aos relógios Omega, utilizados pelo agente secreto mais famoso do mundo desde 1995. Uma fala da figurinista de 007 contra GoldenEye (1995), Lindy Hemming, reforça o peso das narrativas: “Estava convencida de que o comandante Bond, um homem da marinha, mergulhador e cavalheiro discreto, usaria o Seamaster com o mostrador azul”.
Mariana Pilizaro também acredita na influência da cultura pop sobre a moda. De acordo com a consultora, a lógica se estende à indústria musical, onde elementos de desejo e consumo são inseridos não apenas nas letras, mas nos videoclipes e no guarda-roupa dos próprios artistas. Como exemplo, ela cita a relação entre o grupo de hip-hop Run-D.M.C. e o clássico modelo Superstar, da Adidas. Apesar de anteriores ao sucesso da banda, os tênis só adentraram no imaginário popular após o lançamento do single “My Adidas”.
Aqui, contexto e narrativa se fazem presentes por meio da forma com que a peça era usada pelos astros do hip-hop – sem cadarços. O visual faz referência a dois pontos de extrema sensibilidade para o público do gênero: o street style e as prisões. Mais uma vez, a narrativa sobressai para o surgimento de um ícone. “A emoção que uma cena gera leva os espectadores a se projetarem naquele momento, naquele personagem com o qual se identificam”, pontua Mariana.
Dessa forma, a peça se transforma em um ícone pela identificação com a história contada pelo Run-D.M.C. “A audiência passa a buscar essas experiências de alguma forma, replicando o que viram ou mesmo incorporando elementos de seus personagens preferidos no seu dia a dia. Passa a ser uma maneira de identificar e reconhecer outras pessoas com gostos similares, de gerar conexão ou mesmo de se sentir empoderado e confiante”, conclui.
E-ÍCONES?
É impossível falar sobre moda e cultura pop sem considerar o papel da internet nessa história. Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital e autora do livro De blogueira a influenciadora: etapas de profissionalização da blogosfera de moda brasileira, ressalta essa relação de dependência surgida na contemporaneidade: “A moda deve muito ao digital, especialmente ao seu caráter democrático e descentralizado”.
Os adjetivos usados por Issaaf para descrever o ambiente online podem ser ilustrados por fenômenos de um mundo hiperconectado, como a produção de conteúdo em rede e o acesso a informações de diferentes eras. Em certos níveis, é possível argumentar que essas características contribuem para assegurar a atemporalidade dos ícones.
É que a internet – e principalmente as redes sociais – modificou nossa percepção de tempo. “É como se nosso tempo fosse completamente diluído. Passado e futuro se organizam de uma forma muito circular”, explica a pesquisadora. Dessa maneira, clássicos ainda são capazes de refletir valores atuais e acabam trazendo “certezas” para uma realidade em que tudo se transforma a cada clique.
A necessidade dessas “certezas” aparece por meio da nostalgia, apontada por Pablo Miyazawa como um dos principais elementos do triunfo da cultura pop. “O ser humano é nostálgico por natureza. Em tempos tão incertos, nosso movimento natural é olhar para o passado em busca de respostas, conforto”, aponta o jornalista.
Entre um post e outro, os ícones que tanto amamos encontraram nas novas mídias um meio de sobrevivência e diálogo com as novas gerações. Paralelamente, a cultura pop ganha cada vez mais formas de se fazer presente no dia a dia do público por meio de canais como Twitter, Instagram, Tumblr e os “recém-nascidos” TikTok e Twitch.
Apesar disso, os mais pessimistas podem argumentar que enfrentamos um cenário de incerteza e efemeridade exponenciais, capaz de comprometer o surgimento de novos clássicos. Perguntados sobre a possibilidade, os entrevistados apresentam múltiplos pontos de vista: Ana Augusta enxerga nas gerações mais jovens um potencial criativo ilimitado e uma preocupação legítima com o engajamento social. Já Pablo se preocupa com a fragilidade e o esvaziamento de sentido em detrimento de outros interesses. Mariana, por sua vez, defende que a mudança de mentalidade e a variedade de conteúdo em geral germinam o solo para produtos de relevância restrita, ou seja, reconhecidos por menos pessoas e dependentes de nichos.
Independentemente do que o futuro nos reserva, uma coisa é certa: assim como Ilsa Lund e Rick Blaine de Casablanca sempre terão Paris, nós sempre teremos os bons e velhos ícones, nossas eternas fontes de inspiração e encantamento.