Troque a maquiagem clássica “de bonita” por cores e traços mais expressivos – ou ainda pelo rosto lavado. Pelos corporais e faciais? Sim, por que não? A sensualidade como exigência vai, ficam as letras viscerais sobre os diferentes processos de autoaceitação. Passam longe também conceitos como binaridade e vem com força a busca em ser único em um mundo tão multifacetado e plural. Seja bem-vindo à nova era da música pop – mais sincera e cada vez menos estereotipada.
A geração Z, que assume as rédeas desse movimento, carrega a marca de ser a primeira nativa digital e é composta dos nascidos entre 1998 e 2010. É possível defini-los também pelo padrão de uso da internet. Uma pesquisa realizada pelo Commonsense Media revelou que 60% deles usam mídias sociais quase que constantemente, somando cerca de nove horas online todos os dias. São, portanto, jovens que crescem e se formam como seres individuais e sociais no meio digital.
Não é de estranhar, então, que essa seja uma geração hipercognitiva, capaz de receber múltiplas informações e cruzar referências de forma automática. Nesse mundo multidimensional, as linhas entre o eu e o outro, o real e o virtual, se desfazem a cada nova interação. O mesmo se dá para os padrões de comportamento e estilo. “Até um tempo atrás, os jovens associavam-se às ‘tribos’ pela necessidade de pertencimento, para não se sentirem deslocados”, explica a pesquisadora de tendências Nina Grando.
Um estudo feito pela Box1824, em parceria com a McKinsey, revelou que os Zs se sentem mais confortáveis em não ter uma maneira única de ser e que isso, além de permitir maior liberdade de expressão, também faz com que compreendam melhor as diferenças individuais. “Por terem acesso a informações e referências desde muito cedo, boa parte deles não se encaixam em estereótipos predefinidos. Emo, pagodeiro, clubber, os Zs podem ser cada dia uma coisa, dependendo do mood”, completa Nina.
Beleza em cheque
A multiplicidade é marca da vida no digital, formada por vozes, rostos e corpos cada vez mais diversos. De acordo com o levantamento “Gen Z: Building New Beauty”, realizado pelo WGSN, uma das características dessa geração é a “inclusão radical”, que valoriza a diversidade de todas as formas. É por meio dessa pluralidade que são cunhadas as identidades desses jovens.
Um ingrediente-chave para essa conversa é a dissolução da linha entre feminino e masculino. “Ao emancipar-se da necessidade de se encaixar no binarismo, as mulheres, por exemplo, passam a questionar todos os códigos femininos existentes – o corte de cabelo, a maquiagem, a roupa, a dança e a pose”, explica a especialista em tendências Iza Dezzon.
Willow, uma das principais referências do z-pop, é um bom exemplo dessa nova forma de enxergar o corpo e a feminilidade. Em um episódio do programa Red Table Talk, feito com sua mãe e sua avó, ela falou abertamente sobre não se sentir confortável em se depilar. “Isso toma muito tempo. Eu só quero entrar e sair do chuveiro.” Ela ainda adicionou: “Quero ser como meus ancestrais e apenas fazer o que eu quero fazer”. Em 2016, a cantora já havia aberto esse debate em seu perfil no seu Instagram. “Por que eu deveria alterar o estado natural do meu corpo para ser vista como socialmente aceitável?”, questionou. “Começamos a ver mulheres se apresentando da forma como elas gostariam, se mostrando da maneira como querem ser vistas. Com isso, elas estão estimulando novas imagens sobre o que é ser mulher”, completa Iza.
Suas predecessoras, por outro lado, pareciam ser mais moldadas pela indústria. Uma vez que as popstars de hoje têm acesso às redes sociais e a canais de comunicação diretamente com seus fãs, a influência dos mecanismos por trás delas é mais velada. “A imagem dessas divas vendia um ideal fabricado que era muito desejado – um tipo específico de corpo e comportamento”, explica Nina. Essas novas artistas, ao contrário disso, crescem em um mundo em que a verdade é valorizada acima de tudo. Os jovens da geração Z estão cada vez menos preocupados em buscar uma imagem perfeita e mais interessados em ser eles mesmos. Para eles, a beleza é sobre autenticidade, inclusão e individualidade – e eles esperam o mesmo das artistas que acompanham. Elas, por sua vez, não hesitam em abrir o jogo sobre suas inseguranças e vulnerabilidades.
Olivia Rodrigo, outra voz dessa nova era do pop, revelou em uma entrevista para o The Guardian as dificuldades de crescer em frente ao público sem se encaixar no padrão europeu de cabelo loiro e olhos azuis. A cantora, de origem filipino-estadunidense, disse que, por causa disso, não se sentia atraente. “É algo do qual eu ainda estou me livrando”, confessa. Vale frisar que, apesar dessa sensação, Rodrigo ainda se encaixa no padrão magra, branca e de cabelo liso que circula pelo mundo pop. Ou seja, estamos falando de ideais em que ninguém se encaixa e que precisam acabar.
Billie Eilish também usa sua influência para falar sobre a pressão para se encaixar em padrões. Em uma entrevista para a revista Dazed, a popstar confessou que tem problemas com sua autoimagem há muito tempo, chegando ao ponto de nem mesmo se reconhecer. “Não é que eu não gosto do meu corpo agora, eu só acho que estou um pouco mais OK com ele”. O mesmo assunto foi abordado pela cantora em uma campanha para a Calvin Klein chamada #SpeakYourTruth. Ela fala sobre como opta por utilizar roupas largas para evitar que as pessoas comentem sobre seu corpo.
Sobre o que o pop canta?
Essa nova forma de existir se reflete em todos os âmbitos, inclusive na música feita pela geração Z. “Por causa desse desprendimento de rótulos, eles derrubam qualquer tipo de limite tradicional de gênero musical. É uma geração que adota sons fluidos devido às influências múltiplas que recebe”, explica Nina. Além disso, por terem crescido com a ascensão de plataformas de streaming, como o Spotify, os Zs podem ouvir qualquer coisa a qualquer momento. Eles possuem um catálogo gigantesco de artistas na ponta dos dedos e montam playlists variadas em poucos minutos de acordo com o que estão sentindo ou buscando.
Assim, o pop ganha influência de diversos estilos, como o punk e o grunge, e tem maior carga visceral, caracterizado principalmente pela expressão das crenças, dificuldades e sentimentos das artistas. Não à toa o último álbum de Willow leva o nome de lately I feel EVERYTHING (“ultimamente eu sinto TUDO”). Nele, ela se abre sobre seu crescimento pessoal e confronta todos aqueles que tentaram colocá-la em caixinhas.
Em julho deste ano, a cantora lançou um documentário para a divulgação do novo disco. No show final, ela performa uma releitura da sua música “Whip my hair”, lançada quando tinha apenas 9 anos. No final da apresentação, ela toca guitarra enquanto raspa todo o cabelo. A performance tinha uma força simbólica de libertação de todas as expectativas e ainda serviu como um registro da transformação pela qual ela tem passado nos últimos anos.
Olivia Rodrigo, por sua vez, traz em seu álbum Sour (2021) composições sobre suas frustrações e inseguranças. As músicas relatam momentos em que ela não se sentiu suficiente, que se comparou excessivamente ou que sentiu inveja ao ver outras meninas nas redes sociais. Em “Jealousy” ela canta: “Eu meio que quero jogar meu celular do outro lado do quarto, porque tudo o que eu vejo são garotas boas demais para ser verdade”. Já em “Brutal”, uma de suas músicas com maior influência punk, ela fala sobre as dificuldades e inseguranças que acompanham a adolescência.
Temas similares estão presentes também no novo álbum de Billie Eilish, intitulado Happier than ever. A música “Therefore I am” fala sobre não se importar com o julgamento dos outros, e “Overheated” faz um questionamento sobre a fama e a pressão para fazer cirurgias plásticas. No vídeo produzido para “Not my responsability”, Billie tira a roupa enquanto fala sobre imagem corporal e os julgamentos que recebemos independentemente de estarmos ou não dentro de um padrão. “Embora você nunca tenha visto meu corpo, você ainda o julga”, diz ela.
O processo natural é que, conforme essas personagens altamente midiáticas consigam normalizar essas inseguranças, elas também possam questionar os padrões sociais que as geram. “Eu acho que tem muita força em dizer: eu não sei de nada e me sinto tão insegura e indesejada”, disse Olivia ao The Guardian. Mais do que nunca, estamos caminhando para um mundo além dos filtros e das edições – on e offline – e a nova geração da música pop está ajudando a trazer esses temas essenciais para o debate e abrindo a porta para que outros jovens digam “Ei, eu também me sinto dessa forma com relação à minha imagem”. Ufa!