Só quem é fã sabe

Eles podem até fazer coisas estranhas por seus ídolos, mas suas noções de comunidade e pertencimento, principalmente apoiadas na internet, tem mexido com o mercado e a maneira como a sociedade os enxerga.

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Seja de uma banda, um filme, uma série de TV ou saga literária, quase todo mundo é fã de alguma coisa. Afinal, é natural do ser humano se identificar com histórias, personagens e outros produtos midiáticos. Essa admiração, em alguns casos, também pode incluir acampar na fila de um show, escrever fanfics ou colecionar muitos itens.

Por definição, fã é o encurtamento da palavra fanático, do latim fanaticus, que significa “louco” ou “entusiasta”. Fortemente ligada ao fanatismo religioso e político, essa etimologia definiu durante muito tempo a paixão dos fãs como doença. “A palavra sempre teve uma conotação pejorativa. Ao longo do tempo, isso foi sendo amenizado, à medida que as pessoas e a mídia entenderam melhor algumas práticas de fãs e seu caráter mais interessante. Mas ainda existe muito preconceito hoje”, diz Adriana Amaral, profa. dra. da Unisinos e uma das maiores pesquisadoras de cultura pop no Brasil. “Sempre que se fala sobre fãs, casos isolados e negativos são usados como exemplos para definir seu comportamento, em vez de destacar seu senso de compartilhamento e comunidade, o que começou a ser debatido de maneira mais eficaz nos anos 1990. Existem, sim, casos extremos no comportamento de fãs, mas o que prevalece entre eles é o sentimento de pertencimento.” E qual é a melhor maneira de aguçar esse sentimento? Fazendo parte de um fandom, é claro.

Segundo Henry Jenkins, pesquisador e autor estadunidense que tem se dedicado a pensar essas questões ao longo das últimas décadas, o termo fandom se refere às estruturas sociais e práticas culturais criadas para os mais apaixonados consumidores de propriedades da mídia de massa. Na imprensa, o uso mais antigo conhecido de fandom vem de uma coluna de esportes do The Washington Post, de 1896.

Já a ideia básica que se tem de fandom cresceu junto com o surgimento dos fãs de ficção científica, no começo do século 20. Mais especificamente, seu início está ligado à revista Amazing Stories, criada em abril de 1926, e responsável por lançar contos de autores renomados, como Isaac Asimov e Ursula K. Le Guin. Na seção de colunas, a revista também publicava cartas enviadas por leitores, incluindo seus endereços e nomes completos, o que permitiu que eles passassem a se comunicar e se encontrar fora das páginas, formando assim as primeiras comunidades.

O que começou com uma troca de cartas logo evoluiu para as primeiras convenções de fãs, conhecidas popularmente como “cons”. Em 1939, a WorldCon, primeira convenção mundial de ficção científica, foi realizada em Nova York e contou com a presença de 200 pessoas com os mesmos gostos e interesses. Nessa época, o fandom de ficção científica ainda era dominado por homens.

Já na década de 1960, os fandoms se tornaram mainstream graças à Beatlemania – e as coisas saíram um pouco do controle. Utilizado para explicar a devoção com que os fãs idolatravam John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, o fenômeno estampou manchetes do mundo todo junto com imagens de fãs, em sua maioria mulheres adolescentes, que gritavam, choravam e até mesmo desmaiavam durante as apresentações do grupo. Grande parte dessas matérias relacionava a euforia das jovens com a histeria, reforçando assim uma série de representações misóginas na construção do imaginário social sobre mulheres que são fãs.

“Nem todo fã se manifesta assim. Esse estigma que a mídia colocou sobre as mulheres é uma tentativa de normatizar comportamentos femininos por causa do machismo. Enquanto no futebol os torcedores homens podem tudo, nós, mulheres, não podemos nos portar dessa forma”, aponta Adriana. “Existe um pânico moral em torno das pessoas demonstrarem publicamente seus afetos. E, quando delimitamos esse estudo por gênero, fica ainda pior para as mulheres.” Muito antes da beatlemania, a lisztomania, ou febre de Liszt – termo cunhado em 1844 pelo alemão Heinrich Heine em um folhetim –, havia sido usado para descrever o comportamento que as fãs do músico e compositor húngaro Franz Liszt tinham em seus concertos. Elas eram conhecidas por atirar roupas íntimas no palco e os médicos da época passaram a considerar a lisztomania uma doença mental.

Um novo momento para as mulheres dentro da cultura pop aconteceu em 1966, quando a série Star trek estreou nos Estados Unidos. A começar por sua produção, que conseguiu introduzir no cotidiano dos telespectadores personagens de etnias e nacionalidades diferentes dividindo um mesmo espaço importante dentro da tela. A personagem Uhura, interpretada pela atriz Nichelle Nichols, inclusive, se tornou a primeira mulher negra da TV estadunidense a não ser retratada como uma escrava ou serviçal. Ela ainda foi protagonista do primeiro beijo interracional exibido na TV do país, em 1968 – apenas um ano após a Suprema Corte dos Estados Unidos decidir acabar com as leis que eram contra o casamento interracial. Depois do papel de destaque, Nichelle se tornou ativista pela inclusão de minorias nos programas espaciais da Nasa, e a agência passou a receber mais inscrições de mulheres negras por causa do seu incentivo. As aventuras do capitão Kirk, Spock e toda a tripulação da nave Enterprise pela galáxia também conseguiram ampliar outras discussões sobre racismo, xenofobia e misoginia, além de reunir uma base de fãs gigantesca ao redor do mundo.

Intitulado Trekker ou Trekkie, o fandom de Star trek foi responsável pela publicação de fanzines, grupos de mala direta e campanhas contra o cancelamento da série. Também foi nessa época que as mulheres começaram a angariar mais espaços do fandom para si mesmas. A autora Jacqueline Lichtenberg, por exemplo, escreveu as primeiras fanfics populares sobre a série e foi uma das criadoras do livro Star Trek Lives!, que analisa o comportamento do fandom após seu encerramento, em 1969.

Na década seguinte, com a chegada do primeiro filme de Star wars nos cinemas (em 1977), o impacto foi ainda maior. À medida que o fandom se tornava mais ativo, a produtora LucasFilm, fundada por George Lucas e dona da franquia, criou um departamento inteiramente dedicado a eles, com foco no diálogo com fã-clubes e responsável por responder solicitações, mensagens e correspondências, assim como por mediar eventos oficiais. Agora, as comunidades de fãs estavam mais participativas do que nunca e as empresas não podiam ignorá-las.

Hiperconectados

O surgimento da internet e das novas tecnologias transformaram completamente a maneira como consumimos filmes, séries, músicas e livros. Se no passado os fãs enviavam cartas, faziam ligações por telefone e publicavam suas zines, agora eles vão até as redes sociais poucos minutos após o fim de um episódio para dizer o que pensam.

Para Jenkins, a partir da web 2.0 surge um novo tipo de fã, que não mais consome mídia passivamente, mas tem o poder de decidir que tipo de conteúdo, como e quando ele vai consumir. A conectividade também introduziu uma interação direta entre fã e ídolo (você pode simplesmente fazer um tuíte marcando o @ do seu artista favorito ou mandar uma mensagem direta para ele pelo Instagram), e isso permitiu que as comunidades aumentassem exponencialmente por meio de fóruns de discussão, fanpages, grupos e sites próprios. Em resumo, na era digital, os fãs podem curtir, comentar, salvar e compartilhar suas paixões com outras pessoas — e isso também mexeu com o mercado.

Se em algum momento do passado ser nerd era sinônimo de deboche ou motivo de bullying, hoje, vemos a ascensão dos fãs como um dos principais focos da indústria e da publicidade. “Houve uma mudança no entendimento de que as pessoas podem ser mais velhas e continuar gostando de séries, videogames e bandas. Ser fã não é mais associado a algo infantil. De maneira geral, a geração que cresceu nas últimas décadas também adquiriu um poder de consumo maior agora (considerando questões de raça, classe etc.) e isso fez com que a indústria percebesse que esse público é uma parcela significativa do mercado”, destaca Adriana.

Ouvir o que os fãs têm a dizer fez o filme Sonic, de 2020, ultrapassar mais de 300 milhões de dólares em bilheteria. Quando o primeiro trailer do longa foi divulgado, o público detestou o design do personagem principal e pediu para a Paramount refazer o porco-espinho azul. Foram gastos mais de 5 milhões de dólares nesse processo, mas funcionou. Outro exemplo do poder dos fãs de movimentar o mercado é a Funko Inc., empresa por trás das miniaturas populares de personagens famosos, como Harry Potter, Vingadores e princesas da Disney, que vendeu mais de 250 milhões de bonecos desde a sua criação, em 1998. Só em 2019, o faturamento anual da companhia chegou a 795 milhões de dólares.

Apostar nas convenções de fãs também tornou a Comic Con Experience, ou CCXP para os íntimos, no maior evento de cultura pop do mundo em 2019. Sua primeira edição aconteceu em 2014 e atraiu cerca de 97 mil pessoas. Cinco anos depois, 280 mil pessoas estiveram presentes no evento brasileiro, que superou a versão original realizada em San Diego, Califórnia. Ainda em 2019, surgiu também a PerifaCon, a primeira feira de cultura pop voltada para as favelas de São Paulo. Com uma equipe 100% formada por jovens negros e periféricos, o evento gratuito reuniu mais de 7 mil pessoas na Fábrica de Cultura do Capão Redondo para sua primeira edição. Apresentando painéis temáticos, palestras e concursos, a ideia dos organizadores é democratizar o acesso à cultura nerd e criar oportunidades para a quebrada.

Fandom ativista

Na música pop, fandoms como Beliebers (Justin Bieber), Beyhive (Beyoncé), Swifties (Taylor Swift), Blinks (Blackpink), Arianators (Ariana Grande), Selenators (Selena Gomez), Lovatics (Demi Lovato) e Little Monsters (Lady Gaga) estão sempre mostrando seu poder por meio de hashtags e campanhas de streaming nas redes sociais. Mais recentemente, os fãs de Britney Spears que ganharam destaque com o movimento #FreeBritney. A campanha questiona a tutela do pai da cantora, que se tornou o responsável legal de sua carreira, fortuna e vida pessoal em 2008. Além das manifestações online, os fãs foram parar na frente da Suprema Corte da Califórnia, em 2020, quando a princesa do pop pediu o fim da tutela à justiça. Celebridades como Justin Timberlake, seu ex-namorado, Mariah Carey e Sarah Jessica Parker também demonstraram apoio ao movimento. O documentário Framing Britney Spears, produzido pelo The New York Times e lançado em fevereiro de 2021, relembra o caso e contextualiza o movimento que continua sendo amplamente discutido na internet, e que colaborou para que o pai declarasse, neste mês, sua desistência da tutela.

No ano passado, foram os fãs de K-pop que ganharam os holofotes após o esvaziamento de um comício realizado pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump na cidade de Tulsa. O mesmo aconteceu durante os protestos do movimento #BlackLivesMatter quando eles derrubaram o aplicativo iWatch Dallas – criado pela polícia local para reunir denúncias de ações violentas dos ativistas – com a ajuda das fancams, vídeos curtos editados para promover artistas e grupos. Eles também ficaram em evidência por meio da campanha #MatchAMillion, que arrecadou 1 milhão de dólares em 24 horas para a organização Black Lives Matter em nome do grupo BTS.

Como boa parte desse fandom é jovem e naturalmente interessada em políticas de diversidade, não é estranho que os fãs participem ativamente de movimentos sociais. No Brasil, o ARMY (fandom do BTS) já foi protagonista de diversas ações importantes. Seguindo a influência positiva do grupo, a fanbase Army Help the Planet lançou uma campanha global em prol da Floresta Amazônia em 2019 e, em 2020, arrecadou 52 mil reais para ajudar no combate às queimadas no Pantanal. Seu último projeto, intitulado ARMY contra a Fome, acumulou mais de 60 mil em parceria com a Fiocruz. Outros projetos de destaque são B-Armys Acadêmicas, que reúne estudantes e pesquisadores brasileiros sobre BTS, e Delta Noonas, um coletivo criado para fãs mulheres acima dos 30 anos.

Como funciona uma fanbase?

Com 6,7 bilhões de publicações, o K-pop foi o assunto mais comentado do mundo no Twitter em 2020. No levantamento do primeiro semestre de 2021, a rede social informou também que, quando o assunto é música, os internautas brasileiros mencionaram mais artistas de K-pop – com BTS ocupando a primeira posição. Todo esse engajamento se reflete diretamente nas paradas musicais, premiações e visualizações de videoclipes no YouTube: só no prêmio Billboard Music Awards, o grupo BTS venceu por cinco anos consecutivos a categoria Top Social Artist, que existe desde 2011 e reconhece o desempenho de artistas do mundo inteiro nas mídias sociais.

Criada em 2016 e atualmente com 329 mil seguidores no Twitter, a fanbase Bangtan News Brasil (uma das maiores do país) tem como objetivo publicar informações e traduzir conteúdos sobre BTS que estão em outros idiomas. “Sempre pensamos na nossa equipe como uma ponte entre o BTS e o ARMY. Hoje, com tantos seguidores, também aproveitamos esse espaço para influenciar os fãs de forma positiva ao divulgar projetos e ações sociais”, contam Alexa Aira Santos Ferreira e Brenda Ágatha Melo de Moraes, administradoras do perfil.

Oito membros, entre 19 e 25 anos e de diversas regiões do Brasil, participam da equipe. Já suas áreas de atuação profissional fora do fandom variam entre publicidade, odontologia, medicina, jornalismo e design. Entre as lições aprendidas com o fandom, o amor-próprio é unânime: “Ainda estou em processo de autoaceitação, mas o BTS foi quem me impulsionou a buscar o melhor de mim mesma”, diz Alexa. “Acompanhar um grupo que veio da Coreia do Sul e de uma empresa que supostamente não teria espaço no mercado, se tornando o maior nome da música pop na atualidade, quebrando recordes, passando por cima do racismo e conquistando lugares que antes eram ocupados apenas por artistas estadunidenses, é, sem dúvida, encorajador. Isso me faz olhar para a minha própria jornada, acreditar no meu potencial e perseverar”, completa Brenda.

Manter uma fanbase tão grande e popular no Twitter também possui seus desafios, como a cobrança constante feita pelos seguidores: “Muitas vezes, os fãs esquecem que também são pessoas cuidando da página e isso sobrecarrega nossa equipe. Nós queremos sempre entregar o melhor conteúdo, mas ainda falta compreensão. Temos uma vida além da página”, apontam as administradoras. “Ainda assim, esperamos poder continuar entregando um conteúdo de qualidade, aproximando os fãs da mensagem positiva que o grupo carrega, enquanto seguimos apoiando todos os sete membros em suas carreiras.”

Considerado um fandom acolhedor para mulheres, pessoas não brancas e membros da comunidade LGBTQIA+, a dupla destaca também que respeito e empatia fazem diferença dentro de uma comunidade como o ARMY. “A prioridade dentro de um fandom deve ser apoiar o artista em questão e não diminuir ou gerar disputas. Quando isso é seguido à risca, a convivência entre todos fica mais saudável.”

Cosplay é para todo mundo?

Outra parte intrínseca e famosa da cultura de fãs é o cosplay, ato de se transformar em determinado personagem por meio de roupas, maquiagem e interpretação. Embora seja muito popular entre otakus, os fãs de animes e mangás japoneses, a arte do cosplay surgiu junto das primeiras cons de ficção científica nos Estados Unidos.

Maria Luiza Grantaine, também conhecida como Moo, é criadora de conteúdo, podcaster, dubladora e cosplayer. Ela foi introduzida ao universo otaku ainda na infância, graças aos animes que passavam na TV. Já na adolescência, começou a fabricar suas próprias fantasias e, desde 2009, é cosplayer por diversão. “O cosplay é uma ferramenta de autoconhecimento e de expressão individual, coisas essenciais para a saúde mental e o aprimoramento da qualidade de vida. Muitas vezes, ele vai além de uma homenagem a uma obra ou personagem querido. É também uma maneira de se conectar com o mundo.”

Costurar a própria roupa não é uma regra entre os cosplayers, mas para Maria Luiza é uma parte importante da experiência. Um de seus cosplays favoritos foi a princesa Mônica, da webcomic Hooky: “Fiz partes à mão e tudo com o máximo de reúso e reciclagem. Por ser uma personagem de uma autora espanhola de uma produção independente, ele conversa muito comigo culturalmente, muito mais do que obras dos Estados Unidos ou do Japão. Essa experiência de identificação é muito calorosa e única”.

Frequentadora dos eventos de cultura pop japonesa, ela explica por que esse ambiente é tão importante para os fãs: “Vou a eventos de anime e mangá desde 2006 e sempre foi um lugar onde eu poderia descobrir mais sobre mim mesma enquanto conhecia outras pessoas. Pude me apaixonar, fazer amizades, me descobrir uma mulher bissexual e me relacionar com outras mulheres em segurança”. Segundo Moo, a comunidade otaku pode ser acolhedora para muitos jovens, mas poderia melhorar em outros aspectos. “Como em qualquer outro ambiente social, infelizmente, algumas pessoas ainda têm preconceitos de classe, raça, gênero e orientação sexual. A comunidade otaku muitas vezes afasta pessoas negras ou fetichiza asiáticos, por exemplo. Mas nosso papel dentro do fandom é levar mais informação, acolher esses diversos grupos com respeito e corrigir comentários e ações violentas ou racistas.”

Guerra nas estrelas por audiência

Em agosto de 2021, a Netflix completou 20 anos de existência no mundo do entretenimento. Fundada em 1997 pela dupla Reed Hastings e Marc Randolph, a empresa começou como uma locadora de filmes que oferecia serviço de entrega de DVDs via correio. Foi somente em 2007 que passou a fazer transmissão de vídeo pela internet nos Estados Unidos, e em 2011 finalmente aterrissou em terras brasileiras.

House of cards, lançada em 2013, foi a primeira série original da empresa e é considerada uma das mais bem-sucedidas até hoje, juntamente com The crown, Orange is the new black, Dark, O gambito da rainha e Stranger things. Em 2016, a série distópica 3% se tornou a primeira produção brasileira da plataforma, fazendo sucesso fora do país e abrindo portas para as demais produções nacionais. A estimativa atual de assinantes brasileiros é de 9 milhões, de um total de 209 milhões de usuários em todo o planeta.

Esse modelo de sucesso fez com que outras companhias também criassem suas próprias plataformas. Serviços como Amazon Prime Video, Apple TV+, Disney+, Hulu, HBO Max e Star+ são apenas algumas das opções disponíveis hoje no mercado. Em uma guerra invisível por assinaturas, o plano é sempre atrair os fãs com novas franquias e superproduções que estreiem diariamente nos catálogos. É só ver a Disney expandindo o universo cinematográfico de super-heróis da Marvel ou de Star wars, a Apple TV+ investindo em The morning show, a atual série mais cara da história (entre 15 e 17 milhões de dólares por episódio), passando por Watchmen, Euphoria e The white lotus, da HBO Max. Chega a faltar tempo para maratonar essa quantidade de conteúdo. E, com tanta gente assistindo, é claro que os fandoms atuam diretamente nesse ambiente de convergência entre TV e internet, discutindo o que vale ou não a pena assistir e participando coletivamente de ações que sacodem a cabeça dos executivos, diretores e roteiristas.

Não mexa com a minha série

O cancelamento de séries como The OA e Anne with an e gerou dor de cabeça para a Netflix. Quando a empresa anunciou que iria cancelar as aventuras da órfã de cabelo ruivo, fãs se mobilizaram para pedir seu retorno imediato. Petições com milhares de assinaturas foram coletadas, enquanto a campanha #RenewAnneWithAnE permaneceu nas redes sociais durante meses. No caso de The OA, um grupo de fãs chegou a comprar anúncios na Times Square, em Nova York, com as mensagens #SaveTheOA e “Nós não vamos desistir de você”. Não deu certo, mas parece que, desde então, a Netflix tem sido mais cautelosa na hora de descontinuar um projeto.

E não pense que a TV tradicional foi deixada de lado na era do streaming. Além das novelas, séries como Game of thrones quebraram recordes e renderam picos de audiência, agitando o domingo à noite dos fãs com batalhas épicas e dragões soltando fogo no canal da HBO. Seu episódio final, exibido em maio de 2019, reuniu quase 20 milhões de pessoas somente nos Estados Unidos. E, mesmo que tenha feito um enorme sucesso, o final da produção não escapou do olhar crítico dos fãs: descontentes com a escolha dos roteiristas no último capítulo, o fandom de GOT lançou uma petição online pedindo que a última temporada fosse refeita pela emissora. Mais de 1 milhão de pessoas assinaram o documento na época.

O poder de mobilização dos fãs também marcou o encerramento de Sense8 – que só foi possível graças a sua lealdade à série – com um episódio especial de duas horas lançado pela Netflix. Outro caso interessante aconteceu com a série Veronica Mars, estrelada por Kristen Bell e cancelada em 2007 após três temporadas. O final foi tão traumático para os fãs que, em 2014, um filme totalmente financiado por eles foi lançado com a personagem principal.

Curiosos e canceladores

Curiosos por natureza, contar uma fofoca ou espiar a vida alheia de vez em quando faz parte do nosso dia a dia. E essa é uma das explicações do porquê o ser humano gosta tanto de assistir reality shows. “Todos nós temos um pouco de voyeurismo. Ter curiosidade sobre o outro também nos dá um parâmetro sobre a nossa própria normalidade”, explica a psicanalista Cosette Castro, doutora em comunicação e jornalismo e autora do livro Por que os reality shows conquistam audiências?. “Além desse sentimento de buscar normalidade, o reality show nos possibilita assistir uma história baseada na vida real. Embora os participantes raramente sejam atores, eles tentam criar personagens de si mesmos para agradar o público, e, muitas vezes, chegam a estudar as edições anteriores antes de entrar no programa. Mas, dentro do confinamento e vigiados por câmeras 24 horas, em determinado momento, não dá mais para controlar a atuação, e é quando as pessoas geralmente começam a se mostrar de verdade. Seja gerando disputas de grupos, fazendo alianças por interesse ou criando intriga.”

O sucesso de programas como Big brother Brasil, Casa dos artistas, No limite e A fazenda são a prova de que os realities se tornaram uma paixão nacional. No ar desde 2000, o BBB, da Rede Globo, é o exemplo mais simbólico desse formato. Mesclando famosos e pessoas anônimas, as edições de 2020 e 2021, em especial, bateram recordes de audiência e geraram grandes debates entre fãs na internet. “O reality aproxima os espectadores do sentimento de sair do anonimato. E as redes sociais potencializam essa busca por importância e singularidade. Um reality show conquista as audiências porque ele fala dos nossos sentimentos. De amor, ódio, inveja, disputa, rivalidade, medo, ciúme. No confinamento, esses sentimentos são ampliados”, diz. Apesar de edição e roteiro, o programa reproduz em rede nacional parte do que acontece na sociedade. É por isso que temas como racismo, homofobia e feminismo foram tão discutidos nas últimas edições.

O BBB 20 entrou para o Guinness com a maior votação da história de um reality show no mundo. Foram 1,5 bilhão de votos no paredão que eliminou o participante Felipe Prior contra Manu Gavassi e Gizelly Bicalho. Já na edição 21, Karol Conká atingiu o maior índice de rejeição da história, com 99,17%, também em um paredão triplo. Para Cosette, os dados do BBB 20 são reflexo de uma resposta do público ao machismo e à violência contra as mulheres. Já no caso da rapper Karol, que representava um grupo de poder no começo do reality, suas atitudes negativas doeram no público porque a maioria das pessoas também já passou por situações parecidas de abuso ou de assédio moral em algum momento da vida. “A eliminação da Karol foi uma resposta simbólica desse público. É uma espécie de vingança coletiva”, diz. “Quando uma pessoa famosa é cancelada, ela morre no mundo público por tempo indeterminado. E isso não é novo. A cultura do cancelamento já acontecia desde a Grécia antiga, quando os homens votavam para expulsar uma pessoa da cidade.”

A cultura dos fãs vem redefinindo as relações sociais e políticas nos dias de hoje. Comportamentos agressivos de fandoms, potencializados pelas redes sociais e somado à falsa noção de poder e anonimato, muitas vezes podem resultar em atitudes extremistas. Para Adriana Amaral, o fandom, por estar inserido na sociedade, emula, assim como qualquer outro grupo, aspectos negativos, como disputas internas e ataques de ódio.

Ainda que sua definição seja complexa e tenha passado por muitas transformações ao longo do tempo, fãs e seus fandoms não devem ser estigmatizados ou tratados como monólitos. Além de proporcionar conexões por meio da identificação de gostos pessoais, fazer parte de um fandom pode resultar também em aspirações profissionais. “Muitos fãs aprenderam a programar sites e blogs, a escrever críticas de séries ou a legendar filmes como membros de um fandom e hoje usam essas habilidades no mercado de trabalho”, completa Adriana. À frente do Cultpop, laboratório de estudos sobre cultura pop e digital, ela lançou este mês o Acervo de Estudos de Fãs no Brasil, um site dedicado a reunir bibliografia especializada e compartilhar a produção acadêmica brasileira sobre os estudos de fãs.
Vale conferir para mergulhar ainda mais nesse universo.

 

Calendário Pop

Conheça algumas datas importantes para os fãs:

21 de fevereiro: A data marca o surgimento do primeiro jogo da franquia The legends of Zelda, em 1986.

24 de fevereiro: No episódio piloto de Twin peaks, dirigida por David Lynch, o detetive Dale Cooper (Kyle McLachlan) chega à cidade titular no dia 24 de fevereiro de 1989 para investigar o assassinato da jovem Laura Palmer (Sheryl Lee). Desde então, os fãs da série usam a data como o Dia de Twin Peaks.

4 de maio: Foi escolhida pelos fãs de Star Wars por causa de um trocadilho feito com uma das frases mais importantes do filme. Em inglês, é dito “May the force be with you” (Que a força esteja com você). Porém a frase lembra “May the fourth be with you” (Quatro de maio esteja com você).

25 de maio: Dia da Toalha, ou o Dia do Orgulho Nerd, como passou a ser conhecido, é a data mais importante da cultura pop atual. Existe uma longa explicação sobre sua escolha, mas o que você precisa saber é que ela é uma homenagem póstuma ao escritor Douglas Adams, autor de O guia do mochileiro das galáxias. Na obra, a toalha é definida como o pertence mais importante que um mochileiro espacial precisa ter. O dia 25 de maio também foi escolhido pelos fãs por ser o dia em que Star wars: Uma nova esperança foi lançado em 1977.

13 de julho: É o aniversário de estreia do grupo BTS. No K-pop, é comum os fãs celebrarem o dia de lançamento dos grupos através de ações sociais e homenagens. Os artistas também lançam conteúdos especiais nesse dia.

1 de setembro: É quando as aulas na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts começam. Todos os anos, fãs da saga Harry Potter se reúnem na estação de King’s Cross, na Inglaterra, para celebrar a data.

21 de outubro: Conhecido como Dia do De Volta para o Futuro, foi nesta data que os personagens Marty McFly (Michael J. Fox) e Dr. Emmett Brown (Christopher Lloyd) viajaram para o ano de 2015 na segunda parte da trilogia de filmes.

23 de novembro: O primeiro episódio de Doctor Who foi exibido neste dia pela BBC em 1963. Há mais de 50 anos no ar, a série de ficção científica narra as aventuras de um personagem que atende pelo nome de O Doutor e viaja no tempo graças à TARDIS, uma nave espacial em formato de cabine. Em 2017, a produção escalou a primeira mulher para viver o papel principal.