K-pop: Ativismo entre os fãs não é nenhuma novidade

Engajados em projetos sociais, ambientais e acadêmicos, fandoms de música pop sul-coreana rompem estereótipos e chamam a atenção com ações que sacodem a internet.


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Os astros de K-pop já são acostumados a bater recordes e ocupar a lista dos assuntos mais comentados das redes sociais. Nos últimos dias, no entanto, foram seus fãs que chamaram a atenção da mídia. Isso porque, no dia 20 de junho, o presidente dos Estados Unidos Donald Trump esteve na cidade de Tulsa, em Oklahoma, para realizar o seu primeiro comício desde o início da pandemia de Covid-19. O evento, marcado por contradições às regras de prevenção ao novo coronavírus, aconteceu no espaço BOK Center, preparado para receber 19 mil espectadores. Para a frustração de Trump, apenas 6.200 pessoas compareceram, deixando a arena parcialmente vazia.

Dias antes, o gerente de campanha do republicano, Brad Parscale, afirmou em seu Twitter que mais de um milhão de eleitores se inscreveram para participar. Essa conta não fechou e jovens usuários do TikTok e fãs de K-Pop afirmam ser os responsáveis pela ação digital. Segundo o jornal The New York Times, esses dois grupos encorajaram outros usuários a se inscreverem para o comício sem a intenção de comparecer e, a partir dessa aliança entre aplicativos e fandom, centenas de milhares de tickets se esgotaram rapidamente enganando assim a equipe do presidente.

Como o esvaziamento do comício repercutiu dentro e fora das telas, a cobertura dos principais meios de comunicação se surpreendeu e prontamente pintou os fãs de K-pop como os novos justiceiros da internet. Mas os elogios aqui, na verdade, soam mais como reflexo de um preconceito empregado há muito tempo sobre a cultura de fãs.

Até recentemente, os amantes da cultura pop coreana tinham reputação questionável e eram taxados apenas como uma manada de adolescentes barulhentas e obcecadas. Essa visão, calcada em um machismo estrutural, vem também de uma leitura midiática bastante equivocada e imprecisa sobre eles.

Mais ações

Os kpoppers também ganharam destaque como possíveis agentes de mudança política na era digital junto aos protestos pela morte de George Floyd, homem negro, em Minneapolis, nos EUA. Com o avanço do movimento #BlackLivesMatter (Vidas Negras Importam), no dia 31 de maio, fanbases se organizaram no Twitter para derrubar o aplicativo iWatch Dallas — criado pela polícia local e que funcionaria para reunir denúncias de ações violentas dos ativistas. “Se você possui vídeos de atividades ilegais em protestos e quer compartilhá-los com a polícia, você pode baixar nosso aplicativo iWatch Dallas. Você permanecerá anônimo em sua denúncia”, dizia a publicação. Não demorou muito para que as fancams — como são chamados os vídeos curtos de apresentações de K-pop que os fãs usam abundantemente para ajudar a promover seus artistas preferidos — dominassem a postagem. A ação antirracista pedia para que todos os fãs baixassem o aplicativo e enviassem vídeos de seus ídolos favoritos em vez das imagens dos protestos. Em poucas horas, o aplicativo da polícia ficou sobrecarregado e teve que ser retirado do ar.

 

Na sequência, no dia 2 de junho, surgiu a tag #BlackoutTuesday acompanhada por quadrados pretos que preencheram a timeline do Instagram. A manifestação virtual também incentivou usuários a divulgarem petições e influenciadores negros. Logo, supremacistas brancos levantaram a tag #WhiteLivesMatter como uma resposta ao movimento, e mais uma vez os fãs de K-pop foram convocados para abafar a tag com outra enxurrada de fancams. É claro que isso acabou deixando o termo em evidência — como fãs negros apontaram depois —, mas a intervenção não deixou de ser reconhecida por alguns representantes da comunidade negra. Jordan Peele, diretor e vencedor do Oscar de melhor roteiro original pelo filme Corra!, fez questão de agradecer em seu Twitter:

 

Enquanto os fãs estavam levantando a bandeira antirracista em suas contas pessoais, alguns artistas coreanos como Monsta X, ATEEZ e Jay Park também se posicionaram sobre o tema. A cantora CL, ex-integrante do 2NE1, publicou uma carta reforçando a importância da valorização e a influência que a cultura negra sempre teve sobre o K-pop: “Artistas, diretores, escritores, dançarinos, designers, produtores e estilistas na indústria do K-pop são todos inspirados pela cultura negra, tendo conhecimento disso ou não”, ela escreveu se referindo ao fato da indústria ser constantemente alvo de acusações de apropriação cultural e de racismo, principalmente contra os negros.

 

“Nós somos contra a discriminação racial. Nós condenamos a violência. Você, eu e todos nós temos o direito de sermos respeitados. Nós estamos juntos”, escreveu o grupo BTS, um dos maiores representantes da música pop sul-coreana, em sua conta oficial no Twitter. Composto pelas estrelas Jin, Jimin, Jungkook, V, J-Hope, Suga e RM, o grupo masculino também doou US$ 1 milhão para a causa Black Lives Matter. O valor foi confirmado no começo de junho pelo movimento.

Exército ativista

O ARMY, nome do fandom do BTS, também foi inspirado pela atitude de seus ídolos e quis igualar o valor arrecadando mais US$ 1 milhão através do site BTSARMYxBLM . A campanha intitulada #MatchAMillion, iniciada pelos usuários @naija0329 e @monosplaylist, tomou força e, em 24 horas, os fãs concluíram mais essa missão. Como parte deles é jovem e naturalmente interessada em políticas de diversidade, não é estranho que o fandom global de K-pop participe ativamente de movimentos sociais como o BLM.

 

Através de músicas que abordam problemas geracionais, sistema educacional, saúde mental e amor próprio, o BTS inspira milhares de fãs a ganharem autoconfiança. Em 2018, o grupo esteve presente na 73ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas onde discursou sobre a campanha “Love Myself” em parceria com a UNICEF.

Atualmente, estima-se que mais de 20 milhões de pessoas já façam parte do ARMY. Sendo um dos fandoms que mais cresce e acumula títulos, engana-se quem acha que esse ativismo é novidade entre eles. Há muito tempo conectado a projetos sociais, o histórico de mobilização desse fandom inclui também causas ambientais e acadêmicas. Quer exemplos?

Por causa da quarentena, todos os concertos de K-pop foram cancelados, incluindo a inédita turnê do BTS, Map Of The Soul: Tour. Com os shows suspensos, os fãs coreanos doaram todo o valor do reembolso dos ingressos para a fundação Korea Disaster Relief Association, além de ajudarem outros centros comunitários de apoio à criança e ao jovem LGBTQIA+. No Brasil, o coletivo ARMY Help The Planet — organizado em 2019 como resposta às queimadas na floresta Amazônica — criou a campanha global “Army Help The Amazon” em parceria com a Iniciativa Verde e o IPAM, cujo objetivo é reflorestar parte da região de Altamira, no Pará.

Outra peça desse mesmo projeto aconteceu por meio do “Army Cleaning Day”, que reuniu fãs de várias cidades do país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Brasília para coletar lixo de vias e parques. Além disso, o ARMY também ataca no mundo acadêmico: um grupo de estudiosos brasileiros sobre BTS criou o B-Armys Acadêmicas, uma plataforma online com análises, podcast e dicas para outros estudantes. Segundo os idealizadores, o BAA espera contribuir com a produção inédita de pesquisa, a fim de que a cultura e a música pop sul-coreana sejam cada vez mais valorizadas e tratadas como assuntos sérios e relevantes pela academia.

No exterior, existe também o Army Help Center, uma comunidade dedicada a ouvir quem precisa conversar e funciona como uma espécie de defensoria da saúde mental presente em mais de cinco idiomas.

Desmistificando fandoms

Na Coreia do Sul, a cultura de fãs começou a surgir nas décadas de 1980 e 1990. Já a filantropia praticada por eles teve sua raiz no final dos anos 2000 com os fãs do boy group Shinhwa, que pertence à primeira geração de artistas do K-pop, e são creditados por iniciar uma tendência chamada “fan rice”. Em 2007, fãs do integrante Shin Hye-sung enviaram milhares de quilos de arroz para instituições de caridade.

Em 2012, outra fanbase do lendário músico Seo Taiji arrecadou fundos para criar a Floresta Seo Taiji na Reserva Ecológica de Guapiaçu, aqui no Brasil. Da mesma forma, até hoje é muito comum ver os fãs fazendo doações para comemorar o aniversário dos astros.

De acordo com a Korea Foundation, uma organização diplomática criada em 1991 para promover uma melhor compreensão sobre a Coréia, mais de 99 milhões de pessoas no mundo se consideravam parte de um fã-clube ligado à cultura do país em 2019. Diversa em gênero, idade, etnia e religião, essa mobilização social e até mesmo anti-Trump vista nos últimos dias parece genuína uma vez que os ideais do presidente americano são uma antítese do que grande parte do fandom internacional representa: em sua maioria, mulheres de todas as idades, pessoas não brancas e LGBTQIA+.

Mas não se deve homogeneizar um grupo tão complexo na hora de discutir o assunto. Mesmo envolvidos em práticas antirracistas, é importante dizer que o fandom de K-pop não está imune a cometer equívocos. Hashtags como #BlackArmyBlockParty e #BlackArmyEquality, por exemplo, já trouxeram debates sobre a falta de espaço para que fãs negros de BTS pudessem compartilhar suas vivências. Muitos deles sinalizam que também é necessário falar sobre racismo dentro do fandom como indivíduos e como sociedade para que a reflexão realmente aconteça.

Toda essa capacidade dos fãs de se organizar e agir, de fato, é algo a ser contemplado. Em tempos de isolamento social, eles mostram que continuam sendo experts em usar sua força numérica para manipular o algoritmo nas redes sociais, alavancar seus ídolos, pressionar empresas e praticar ciberativismo. Depois de quebrar com alguns estereótipos, parece que o próximo desafio dos fandoms será romper esta ideia de monólito que a mídia começou a projetar sobre eles. Estigmatizados por um longo período da história, os fãs de K-pop sempre foram significativos por si só, e portanto, querem ser respeitados e levados a sério a partir de agora.

 

 

 

 

 

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