O que é ecoísmo?

Dificuldade de se impor, priorizar demandas alheias, medo de desapontar o outro: entenda esse traço comportamental que é o oposto do narcisismo.


Ecoísmo



Um sorvete Cornetto é uma das primeiras lembranças que vêm à mente da jornalista Paola Churchill quando reflete sobre sua dificuldade de falar o que quer. Na escola, quando ela tinha cerca de 6 anos, todo mundo tomava o tal gelato.

Paola, no entanto, que sofria bullying por ser gorda, nunca comprava a guloseima. Um dia, perguntou à sua mãe se poderia pedir ao pai para comprar um Cornetto para ela. A mãe disse que não, que ele chegaria cansado do trabalho.

Mesmo assim, quando viu o pai, a criança fez o pedido. Levou uma bronca da mãe e a situação acabou virando uma briga do casal. “Eu lembro que ela falava que tudo era minha culpa. Foi algo que ficou na minha cabeça.”

Hoje, quando Paola faz algum pedido, não é incomum que ele seja acompanhado por um outro, mas de desculpas. “Acabei não querendo me destacar nas coisas, falar o que sentia”, relembra. 

“Acho que tem algo atrelado também ao bullying que eu sofria. Perdi a minha voz”, diz ela. 

Assim como a jornalista, diversas pessoas têm se identificado com o termo ecoísmo. Considerado um traço comportamental – nunca um diagnóstico –, o ecoísmo refere-se a pessoas que priorizam demandas alheias em detrimento das suas próprias.

Muitas vezes, elas são incapazes de vocalizar desejos e opiniões por medo de perder o amor de outra pessoa, de incomodar ou, simplesmente, por vergonha mesmo. Para elas, ser o centro das atenções é, normalmente, uma posição incômoda.

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Como se vê, o ecoísmo é justamente o oposto de outra palavra em voga nas conversas atuais: o narcisismo. E, como este último, o termo tem suas origens em um mito da Grécia antiga, mais precisamente, na ninfa Eco. Dona de uma bela voz e boa de papo, Eco conseguia distrair Hera, a rainha do Olimpo, enquanto Zeus cometia suas infidelidades.

Hera descobriu a farsa e resolveu punir a ninfa, tirando de si o controle da língua. A partir daquele momento, Eco somente poderia falar se alguém dissesse algo antes. Detalhe: ela só seria capaz de repetir as palavras do outro. Para piorar a situação, Eco se apaixonou por Narciso, um caçador forte e belo, e foi rejeitada por ele. O sofrimento foi tamanho que a ninfa foi definhando a ponto de não sobrar nada dela além de sua voz. 

Mulheres e o ecoísmo

Segundo a psicóloga Mônica Gurjão, com base em observações clínicas, é possível dizer que o ecoísmo costuma estar mais atrelado ao gênero feminino. “Essa dificuldade de se expor, de dar limite, de dizer do que gosta ou até de se colocar na relação, no sentido de confrontar, é uma questão comum para mulheres”, diz ela.

“Se pegarmos a base semiótica do mito de Eco, temos uma mulher silenciada que só repete o que Narciso diz. É uma figura imagética incrível para pensarmos como isso acontece em vários âmbitos.” Muitas mulheres, destaca Mônica, aprendem que amar é isso: reverenciar e submeter-se ao outro. “É difícil encontrar mulheres que aprendem a amar com autonomia.”

A educação comum dada às meninas, embasada por ideais de cuidado, auxílio e submissão, pode estimular comportamentos do tipo. “É muito comum que pessoas ecoístas tenham sido inibidas por autoridade na infância”, diz a psicóloga.

“Temos que criar meninas para terem voz, para que elas não sejam um eco que só repete o desejo do outro”. O mesmo vale para os meninos, ressalta ela. “Ambientes muito repressores favorecem pessoas silenciadas, que desenvolvem pouca autonomia na vida.” 

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Regina (nome fictício) cresceu como a “menina espelho”, a quem as outras crianças deveriam ter como exemplo. Era a boa garota e sentia dificuldade de sair dessa posição. “Você começa a não saber mais do que gosta, como quer ser tratada, o que é importante para você, o que é negociável. Acho que eu perco a noção, pois deixo outra pessoa dizer o que é certo”, avalia.

“Eu me desenvolvi achando que, se fosse contra, se dissesse que não gostei de algo, estaria errada e não seria mais querida”, conta ela. Com a ajuda da terapia, ela tem repensado as atitudes. “Estou entendendo que as relações não são tão frágeis quanto eu acho que são.”

A terapia também tem ajudado a jornalista Paola a valorizar seus próprios sentimentos. “Eu valido muito o que o outro sente, mas e o que eu sinto? Porque, querendo ou não, no final, serei só eu”, diz. “Tenho muito medo de perder as pessoas. De me posicionar e dizer algo. Só que às vezes é bom perder alguém.”

Nem vilões nem mocinhas

Nesse caminho do autoconhecimento, é importante não cair em conclusões maniqueístas. Por mais que, na mitologia, Narciso tenha sido o algoz de Eco, fora desse universo o narcisismo não é o vilão nem o ecoísmo é a boa moça.

O narcisismo funda, em qualquer pessoa, algo necessário: o instinto de autopreservação. “Todo mundo precisa de um pouco de narcisismo, pensando em nossa formação psíquica”, explica o psicanalista André Alves. “Nós somos responsáveis pela nossa constituição, pelo nosso cuidado e, também, pelas relações que vão fazer com que a gente não fique ensimesmado demais”, pontua.

Claro, como tudo na vida, o narcisismo é bom em doses moderadas (o transtorno de personalidade narcisista é outra história: uma condição psiquiátrica complexa, com várias implicações).

“Os afetos narcísicos existem e o lugar de abandonada, de não escutada, é também uma escolha. Eco topou aquele lugar. Todos nós temos nossas armadilhas”, diz André. Ter uma voz, afinal, pode custar caro, e é preciso estar disposto a pagar esse preço.

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