Já parou para se perguntar por que nossas roupas andam tão caras? Se no ano passado o problema número um era o algodão, agora os fatores têm origens mais profundas. Inclui dólar, petróleo, mudanças climáticas e a condução desajustada das políticas socioeconômicas de um país desgovernado como o nosso.
Ainda que, historicamente, os setores têxtil, de confecção e de calçados e artigos de couro sejam vistos como estabilizadores da inflação no Brasil, essa tríade que compõe o segmento de vestuário, um dos nove setores computados pelo Índice de Preço ao Consumidor Amplo (IPCA), tornou-se o quinto mais inflacionado do ano. Confirmadas as estimativas do IPCA-15, que é a prévia da inflação consolidada, o segmento chegou ao fim de novembro com 8,64% de aumento acumulado, revertendo o 1,31% negativo de 2020. Vestir-se, que já pesava no bolso, ficou mais caro por aqui.
Mesmo sem o peso tão expressivo nesse índice quanto o dos grupos de alimentação e transportes, cujo impacto é direto na vida cotidiana, o dado é um banho de água fria no otimismo do início deste ano. Naquele momento, a indústria da moda mostrava aumento galopante de 36% na produção de roupas entre janeiro e maio.
Até outubro passado, esse aumento na atividade industrial da confecção foi reduzido para 19%, sendo que a base comparativa já era baixa por causa do desastre produtivo nos meses críticos da pandemia. A título de comparação, em setembro, o ritmo da confecção ficou 14,6% menor do que o registrado em fevereiro de 2020, pouco antes da desestabilização do mundo. Em janeiro passado, já era 11% maior. O deterioramento foi rápido e doloroso.
É importante lembrar que a moda não está sozinha nessa queda vertiginosa nas perspectivas do Produto Interno Bruto (PIB) nacional para este ano, medido com base em variantes nos dados da atividade econômica, nem nas previsões assombrosas do aumento de preços para o futuro breve. Ela, no entanto, ilustra a perda de fôlego de um setor que é retrato do humor social, da dignidade e do bem-estar, que, convenhamos, não sentimos há um bom tempo.
Para entender os motivos e a conjuntura que pressionam o preço das roupas, é preciso partir do princípio de que a moda é um setor discricionário do consumo, ou seja, não essencial à vida. Com isso, dá para sacar o primeiro ponto sobre o aumento de preços: o ânimo do consumidor pós-isolamento. Foi ele que empurrou para cima a demanda e as vendas da moda no segmento premium e de luxo.
Porém aqui aquela lógica de que a demanda aquecida resulta em aumento de preços não é tão simples assim. Entra nessa conta a crise de insumos conjuntural da cadeia, que elevou os preços desde as primeiras etapas do sistema de produção. O chamado IPP (Índice de Preços ao Produtor), que mede os valores na fábrica, aumentou 14,63% na confecção de vestuário, 22,1% na produção de têxteis e 24,57% na de calçados e artigos de couro. O repasse ao consumidor, ainda que menor do que em outras áreas, foi inevitável.
De acordo com o diretor da consultoria BTR-Varese, Alberto Serrentino, a equação de câmbio alto, preço do transporte e energia elétrica mais cara dificultam ainda mais a vida de quem produz, principalmente num setor em que a pulverização dos insumos é gigantesca. O botão vem de um país, o tecido, de outro, o zíper, os solados, a tintura, cada é proveniente de um lugar diferente.
“A inflação no atacado está ainda maior do que no varejo. Se pegarmos o preço médio do aumento, ele está na casa dos 20%, mesmo parte da produção sendo transferida para cá, porque a China (de onde vem boa parte dos insumos) ficou muito mais cara”, explica Serrentino.
O lado perverso da história é que o impacto é muito maior sobre as camadas de renda mais baixa, que, por sua vez, respondem pela maior parte do consumo de confecção e calçados no país. “Para o consumidor de luxo e de produtos premium, está tudo bem, até porque, houve um redirecionamento dos gastos para bens de moda quando o isolamento impactou o setor de serviços. Mas, com o desemprego alto e a inflação corroendo a renda das pessoas, a alteração de preços é dolorosa”, diz o diretor.
Um termômetro de que as coisas não estão nada bem e que devemos puxar ainda mais o freio no próximo ano é o resultado da última Black Friday, no final de novembro. A alta no faturamento, segundo a consultoria Neotrust, foi de 5,8% em relação a 2020. Não bastasse o percentual de crescimento ser o menor registrado na história da data no país, até então sempre de dois dígitos, quando o cálculo considera a inflação acumulada em 10,67% nos últimos 12 meses, o faturamento real caiu 4,4%.
Moda e acessórios foram o segmento mais buscado e vendido. Porém o retrato do país se deu no dado de que a procura por alimentos e bebidas subiu 400%, numa corrida pela subsistência que ameaça o Natal da moda, tradicionalmente a melhor época para as vendas de vestuário.
Com menos dinheiro, poder de compra defasado pela inflação e endividamento das famílias nas alturas, o país pode assistir a uma retração das vendas com potencial explosivo para minar planos e pintar um céu nublado em 2022. O próximo ano ainda trará um elemento pelo qual o mercado guarda ojeriza: eleições.
A incerteza sobre os rumos do país mexe com o empresariado, os investidores e, na ponta final, o consumidor. “Haverá um processo eleitoral nervoso, que nunca é bom para as expectativas do consumo interno. Além das pressões externas, como o descontrole na organização da cadeia de insumos, há uma desconfiança em relação ao Brasil e sua condução econômica. Provavelmente, não será um ano excepcional para o varejo”, prevê Serrentino.
A realidade que se impõe na indústria, hoje, é de um cenário ainda caótico. A reportagem consultou pessoas da indústria, alguns em condição de anonimato, para esboçar o retrato factível da inflação. De acordo com o gestor do mercado internacional da Associação Brasileira de Empresas de Componentes para Calçados (Assintecal), Luiz Ribas Júnior, cinco fatores explicam o problema.
Para essa indústria, um dos gargalos é o aumento no preço do petróleo, usado para produção de solados e para o transporte. “A pandemia travou o sistema de transporte e, como os países demandam muito, não há expectativa de queda nos preços por parte dos países produtores”, explica.
Esse fator está ligado a outro, a China. Na pandemia, o país demandou insumos para sua própria cadeia produtiva, de produtos químicos a tecidos, e, por isso, passou a exportar menos para suprir sua demanda. A independência em relação às importações facilitou a vida dos chineses e impactou a do resto do mundo.
Ao mesmo tempo, os fretes marítimos saltaram como nunca. Um único contêiner, que custava 1,5 mil dólares para ser transportado, pode chegar, agora, até a 15 mil dólares. Há uma gama com algo em torno de 150 componentes que não podem ser trocados na fabricação dos calçados e, com o novo preço, de 7 a 12% da produção é inflacionada. Os produtores tentaram segurar, mas não houve jeito.
“E, como as empresas de logística viram que é possível segurar os preços altos por muito tempo, esse valor não vai diminuir. Nosso trabalho, hoje, é reduzir a dependência da China e virar um hub para a América Latina. Nossas empresas têm investido em pesquisa de novos materiais e técnicas para suprir a nossa demanda para o futuro”, explica Júnior.
No caso dos solados, por exemplo, parte da indústria vem investindo no EVA, sigla para Etil Vinil Acetato, mais barato e que, de quebra, mitiga impactos ambientais.
Outro custo embutido na conta é a energia elétrica. A falta de investimentos robustos em fontes renováveis, como a eólica e a solar, fizeram nosso país extremamente dependente dos recursos hídricos, por sua vez diretamente impactados pela crise climática. Com a escassez de chuva, a conta de luz subiu. Para uma fábrica de moda, esse custo representa cerca de 15% do total de gastos, o que empurra para cima o valor na ponta do consumo.
Fontes ouvidas ainda afirmam que as embalagens e o preço do algodão, que disparou nos últimos meses, pesam no bolso dos produtores. Em algumas fábricas, não há mais papel nem para embalar os produtos e, por isso, muito provavelmente você verá cada vez mais embalagens recicladas – o que não é algo ruim em termos sustentáveis.
No próximo ano, os fretes devem, se confirmada a previsão da indústria da moda, se estabilizar em 5 mil dólares, ainda acima do nível pré-pandemia, embora menos oneroso do que os valores praticados hoje. Os preços das roupas também devem diminuir um pouco, mas, é quase consenso, uma volta ao padrão “normal” está longe de acontecer.
Para ter uma ideia dos aumentos nas araras, o computado do aumento nas peças de moda feminina, levantado pelo IBGE para análise do IPCA, ficou em 7,13% até outubro, sendo o vestido a peça que mais subiu de preço, cerca de 8,33% mais caro neste ano.
Foi a moda masculina, porém, quem salgou mais os preços. Os dados oficiais dão conta de que os homens estão pagando 9,29% mais caro em suas roupas. O auge do aumento ocorreu no preço das cuecas, cuja inflação somou 12,92% até outubro passado. O futuro, apesar das várias tentativas da indústria para minimizar impactos e prejuízos, é incerto.
“Tudo é uma grande névoa ainda. Só no segundo semestre do próximo ano, provavelmente após as eleições, saberemos para onde vamos caminhar. O que já é fato é que haverá mesmo uma maior organização da cadeia interna”, resume o executivo da Assintecal. Até lá, parece claro, os freios da moda estarão todos puxados.