Por mais pêssegos frescos e orgânicos

O que a aceleração e obsessão digitais na moda estão deixando na xepa.

 

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Dia desses, Regina Guerreiro postou a foto de um pêssego. Um pêssego meio envelhecido, meio enrugado. “Um pêssego, que morreu humilhado por não ter sido comido. Doce/docíssimo. Tinha vindo de longe. Muito raro. Muito caro. Ninguém nem chegava perto. Viveu seus dias de lindeza, mas… ‘hélas’!, ela passou rapidinho. Quem disse que ‘pele de pêssego’ não murcha?? Tadinho! Acabou se ‘acabando’ na cesta de frutas de um ricaço babaca. Intocado. Incompreendido. Como meus textos não lidos. Como meu mel não lambido”, escreveu a editora de moda, provavelmente uma das maiores que tivemos.

 

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Uma publicação compartilhada por Regina Guerreiro (@reginaguerreiro1)


A legenda é carregada de sentido pessoal. Como quase tudo que emociona. Na moda, a pessoalidade é algo complicado. É também essencial. Foi a virada de chave de muita coisa, o segredo do sucesso de muita gente. Grandes inovações e um tanto de revoluções não vieram da conformidade.

Por outro lado, a pessoalidade foi, durante muito tempo, confundida com egolatria, já serviu de desculpas para abusos de todos os tipos, motivo para demissões e silenciamentos. Este texto mesmo quase não existiu por motivos de o autor o achar pessoal demais.

Curiosamente, ele foi escrito no dia em que bell hooks morreu. Entre tantas coisas, a teórica feminista, crítica cultural e escritora falava muito sobre amor. “No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover em direção à liberdade, a agir de formas que libertam a nós e aos outros”, escreveu ela.

A pessoalidade, e a maneira como a gente aceita, desenvolve e comunica ela, tem a ver com amor. E com desejo. A poeta e ensaísta feminista Audre Lorde escreve sobre isso sob um viés mais erótico: “O erótico não é sobre o que fazemos, mas sobre o quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir durante o fazer. E, uma vez que saibamos o tamanho de nossa capacidade de sentir esse senso de satisfação e realização, podemos, então, observar qual de nossos afãs vitais nos coloca mais perto dessa plenitude.”

Em resumo, é sobre entender quem somos, o que queremos, o que é importante para nós, individual, coletivo e independente do que dizem por aí. E isso foi extremamente prejudicado durante a pandemia. Nem tanto pelas questões de distanciamento e isolamento, para quem pôde assim fazer, mas pela digitalização acelerada e obsessiva de tudo.

Longe de mim querer ser a saudosista analógica. A internet, de fato, potencializou processos de conexão e comunicação. As plataformas digitais possibilitaram muitos diálogos. Vozes e pautas ganharam proporções e alcance até então inimagináveis. O mesmo vale para o trabalho criativo de muita gente. Foi uma grande vitrine.

Sobre o que falam sobre uma maior democratização de acessos e informações, contudo, pouco mudou. Há tempos acompanhamos semanas de moda em tempo real pela internet, e o conteúdo entregue não foi mais aberto do que os releases e posts explicativos já existentes. A diferença é que não tinha primeira fila. Tava todo mundo na mesma. Ou assim se fazia acreditar, já que muita gente teve acesso antecipado e privilegiado a algumas coleções (este que vos escreve, por exemplo).

Mas isso é coisa pouca. O real problema – ou, para ser bem pessoal, minha principal questão – é como tudo e todos ficamos à mercê de algoritmos, que são tudo menos pessoais. De forma bem redutiva, são cálculos. São contas baseadas em padrões, ou seja, repetições. E repetição é bem diferente de inovação. Tão entendendo?

Nada disso é exatamente novo. Tampouco começou naquele longínquo e nada saudoso março de 2020. Os algoritmos já pautavam a produção cultural e de moda havia tempos. A lógica só foi intensificada, quase como única forma de sobrevivência em um mundo caótico, com crises sem precedentes e tudo dependente das redes sociais e da internet.

A partir de meados de 2021, com vacina no braço, muitas atividades presenciais foram retomadas. Entre elas, as semanas de moda. Quando chegou a nossa vez, com a São Paulo Fashion Week, em novembro, muito falou-se da “saudade do reencontro”, mas quase ninguém mencionou como esse contato era dependente ou pautado por uma camada digital. Dentro e fora da passarela, poucas coisas pareciam capazes de sobrepor a lógica calculada que define o que e quem faz sucesso e merece ser visto.

Não à toa, o conceito de nostalgia virou uma “economia”. É mais fácil equacionar fatores conhecidos. Consequentemente, veio uma enxurrada de homogeneidade de ideias, propostas e visuais apresentados nas temporadas de moda. Tudo meio pré-fabricado. O mesmo vale para os assuntos, ou melhor, para a maneira como os assuntos foram comentados e polemizados em busca de muitos likes e pouco aprofundamento ou embasamento.

Quem fez diferente recebeu muitos aplausos, mas ficou escondido nas estatísticas de audiência, reposts e comentários nas redes sociais. Nas passarelas, a volta dos desfiles presenciais foi essencial para quantificar a discrepância de recepções entre real e virtual.

Na moda nacional, isso é bem preocupante. As edições híbridas da SPFW e Casa de Criadores tiveram apenas um singelo aumento no número de buscas em comparação às métricas baixíssimas de quando eram 100% digitais. E quem diz é o Google. Em relação ao interesse pelas marcas internacionais, a disparidade é ainda maior. E isso fode tudo, com o perdão do linguajar.

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Uma publicação compartilhada por Rener Oliveira (@reneroliveira)


 

Explica o que Rener Oliviera argumentou, com muita propriedade, sobre a baixa adesão de influenciadores na SPFW. Explica também os baixos investimentos, a corrida maluca do metaverso (um ambiente 100% controlado digitalmente) e o desinteresse dos grandes grupos nacionais por nomes e negócios realmente autorais e responsáveis ambiental e socialmente.

A pessoalidade, parece, caiu em desuso. Perdeu pro like, pro engajamento, pro número de seguidores. Perdeu para quem (ou o que) se importa mais com o mimetismo e a reprodução em série do que com a diversa complexidade humana. Com isso, os pêssegos mais suculentos, uma vez viçosos, acabam, mais uma vez, esquecidos, mofados, nunca lambidos.