Mal a DGAV (Direção-Geral de Alimentação e Veterinária) liberou, em junho deste ano, a comercialização de alimentos industrializados com insetos em terras lusitanas, a Portugal Bugs levou seus produtos que contam com larva-da-farinha para as gôndolas de uma das maiores redes de supermercado do território português. A novidade logo despertou a curiosidade dos consumidores, como esta repórter.
Comer inseto não é algo novo para a humanidade. Em países do Sudeste Asiático, grilos são servidos em mercados populares. Mais perto, no Brasil, a formiga aparece em pratos típicos e já foi parar no cardápio refinado do DOM, de Alex Atala, em São Paulo. De acordo com a consultoria de tendência WGSN, mais de 2 bilhões de pessoas, em mais de 80% dos países ao redor do mundo, já incluem insetos em suas dietas. E você pode até não saber, mas come bichinhos no dia a dia: estima-se que consumimos 1 kg de partes de insetos por ano em alimentos que não são completamente processados pela indústria. Sem falar que itens com coloração vermelha, como embutidos e iogurtes, podem levar corante natural de cochonilha. Porém a novidade é que larvas do besouro da farinha (Tenebrio molitor), acheta (grilo doméstico) e praga da granja (buffalo worm) têm sido adotadas por marcas de suplemento como fonte de proteína sustentável e se tornado base para snacks, barras e farinhas supernutritivas.
A WGSN apontou esse movimento como uma das principais inovações para o mercado de alimentos e bebidas até 2030. “Com uma nova onda de interesse impulsionada pela pandemia, devido ao aumento de preocupações com doenças transmissíveis de origem animal e a busca por proteínas e fontes alternativas para aumentar a imunidade, mais pessoas devem começar a incluir os insetos em sua alimentação”, diz Nicole Silberta, especialista em tendência da consultoria de comportamento e consumo. “Estima-se que o mercado de proteínas de insetos pode atingir o valor de 45 bilhões de reais, aproximadamente, em 2030.”
O aumento do interesse por larvas e grilos tem também a ver com uma preocupação com o nosso futuro, já que o consumo deles seria uma alternativa para o combate à fome mundial. “Os insetos podem ser produzidos em um espaço muito menor, sem o uso de tantos recursos como água e terra”, fala Gilberto Schickler, zootecnista e especialista em produção massal de insetos comestíveis. De acordo com a Organização das Nações Unidas, a população mundial deve chegar a quase 10 bilhões de pessoas em 2050 e será necessário encontrar formas de alimentar tanta gente. “A produção pode ser verticalizada, o que ocupa menos espaço, e sua reprodução é muito grande. Uma larva-da-farinha pode botar até 100 ovos, muito mais do que animais vertebrados.”
A biodiversidade de espécies de insetos também conta a favor desse tipo de alimentação. “Há mais de 2 mil espécies de insetos comestíveis identificadas pela ciência. Há muito menos espécies de aves e peixes em termos de sabores que podemos trabalhar e incluir na nossa alimentação”, complementa o zootecnista.
Para além do bife
Quando alguém abre mão do consumo de carne, uma pergunta se torna parte das relações humanas de vegetarianos e veganos: “Mas e a proteína da sua dieta?” Um bife ainda é tido como a principal fonte desse nutriente para o cidadão comum, apesar de ele estar presente em outros alimentos e existirem, no mercado, suplementos nutricionais que ajudam a manter a alimentação balanceada mesmo sem o consumo de carne.
O zootecnista Gilberto Schickler diz que os principais interessados em insetos comestíveis são vegetarianos (não estritos), atletas de alto rendimento e pessoas que procuram ter uma alimentação natural. “Os insetos são como uma carne, pois são ricos em proteína, gorduras, minerais. Eles são um alimento completo que pode, facilmente, entrar no lugar da carne na nossa alimentação”, diz o especialista.
Por isso, marcas como a Portugal Bugs, da Europa, e a Exo Protein, dos Estados Unidos, investem em barras proteicas, snacks e farinhas com esses bichinhos. Segundo Schickler, a tendência é que inicialmente os consumidores usem, por exemplo, a farinha de Tenebrio molitor como um suplemento nutricional para ser misturado em receitas. Assim como já fazemos com a maca peruana. Mas o valor desses bichinhos não é apenas nutricional.
Pequenos sustentáveis
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, 70% de toda a água consumida no mundo é usada na irrigação de lavouras, na pecuária e na aquicultura (criação de peixes). Para produzir 1 kg de carne, são consumidos 16 mil litros de água. Assim, há muitos ativistas ambientais que defendem a diminuição do consumo de carne como uma maneira de prezar pelo futuro do nosso planeta.
No catálogo da Portugal Bugs, as larva-da-farinha aparecem em versão snack, temperadas com pimenta-caiena, e também em formato de barrinhas proteicas de diversos sabores. Fotos: Divulgação
O fundador da Portugal Bugs, Guilherme Pereira, percebe que, além dos consumidores atraídos pelo exotismo (como foi o meu caso), seus maiores clientes são os preocupados com a sustentabilidade. “As pessoas estão mais conscientes sobre como seu consumo tem impacto na natureza e buscam por alternativas mais ecológicas”, afirma Pereira.
Matt Beck, CEO da Exo Protein, percebe a mesma curiosidade e preocupação. “Os grilos são nutritivos, flexíveis e ingredientes que podem ser cultivados em qualquer parte, evitando os prejuízos ambientais que temos em outras fontes de proteína. Isso os torna uma opção mais sustentável para incluir em nossas dietas, hoje ou no futuro”, diz o empresário.
Essas informações estão chegando e impactando as pessoas, incentivando mudanças em seus hábitos de consumo. “Se, em vez da proteína animal, a pessoa preferir a proteína dos insetos, ela pode diminuir sua pegada ecológica em cinco vezes”, complementa Guilherme Pereira. As larvas podem retirar a água que necessitam de plantas e frutas, não emitem gás metano, muito prejudicial à camada de ozônio, e também podem ser alimentadas pelos resíduos da indústria alimentícia. O que sobra da produção de cerveja e as frutas “feias”, descartadas pelo comércio, podem ser redirecionados para a criação de larvas.
A outra alternativa para uma fonte de proteína seria, de acordo com Gilberto Schickler, a carne de laboratório. Mas o zootecnista tem muitas ressalvas em relação a ela. “Quem está criando essas fórmulas são grandes empresas que patenteiam o conhecimento. Não há como uma pessoa comum possa produzir esse alimento”, explica o especialista. Os insetos, por sua vez, podem ser criados por qualquer pessoa com conhecimento, incentivando também a agricultura familiar. Os próprios entrevistados são prova disso: quando fundou a Portugal Bugs em 2016, Guilherme Pereira criava os insetos na garagem, enquanto Schickler dá um curso sobre como fazer a produção dos bichinhos em casa.
Vai ter inseto no nosso prato?
A primeira vez que comi um alimento com inseto foi a barra proteica com Tenebrio molitor da Portugal Bugs. Não senti nenhuma diferença. Descobri, depois, que foi porque a larva estava descaracterizada, moída e misturada na barra. Precisava, então, vencer minha resistência ao novo: comprei, dessa vez, os snacks de larva-da-farinha temperados com pimenta-caiena. No pacote, as larvas estavam ali, inteiras, mas desidratadas. Dá um nó na cabeça pegá-las na mão, e não é difícil entender por que empresas como a Hakkuna tenham dificuldade em colocar seus produtos à venda no mercado brasileiro.
Atualmente, a maior barreira para esse reforço na nossa dieta é simplesmente o preconceito. “No Brasil, não há nenhum impeditivo para fazer alimentos com base em insetos. É necessário apenas que eles sejam cadastrados na Anvisa como um novo ingrediente para a alimentação humana, mas não há investimento nesse setor”, diz o zootecnista. Schickler acredita, entretanto, que a aceitação vai ocorrer em pequenos passos. “O inseto triturado pode ser incluído em qualquer receita, melhorando a qualidade nutricional dele”, fala o especialista.
Enquanto o Brasil ainda tenta derrubar seus tabus alimentares, a Portugal Bugs expandiu a sua linha para chocolates com larvas e pretende, em 2022, lançar refeições como massas e croquetes. “Queremos lançar o primeiro hambúrguer português com insetos”, afirma Guilherme Pereira.
No meu caso, os snacks de Tenebrio molitor podem ter me causado repulsa à primeira vista, mas, assim que resolvi experimentar, foi como se eu estivesse comendo flocos de arroz: textura crocante, que em seguida derretia rápido na boca. No dia seguinte, ofereci para uns amigos que vieram jantar em casa e acabamos com o pacote. Nem parecia que estávamos petiscando larvas de farinha.