Ponto de interrogação

As mentiras que contamos ao tentar responder se vale a pena se adaptar a uma beleza que adoece

Por que, afinal, somos tão preocupados com a ideia de beleza? Com a nossa, mais especificamente, com a que os outros percebem ou não em nós. Não nos bastam saúde, inteligência, solidariedade, bom papo, ou mesmo um jeito sexy qualquer. Queremos ser bonitos, já que nos disseram que é importante, que abre portas.

Sim, estamos todos cansados dos prêmios de consolação. Não queremos saber disso de cada um com a sua beleza, todo mundo é bonito à sua moda e outras conversas pra boi dormir. Não porque isso não possa existir, mas porque percebemos, porque o mundo como é hoje nos diz que há uma beleza superior. Na base de todo o discurso que se pretende “inclusivo”, ainda é essa a definição de beleza que dá as cartas.

Sabemos, aprendemos sobre padrões. Que não devemos tentar nos encaixar neles, que eles são venenosos e injetam o puro suco do inferno em nossas existências. O mundo está literalmente prestes a entrar em uma era de catástrofes ainda maiores do que as vistas nos últimos séculos, mas, hey, esse queixo aí poderia ser mais projetado, o peito caiu, e mesmo consertando tudo, bonito, bonito mesmo talvez não fique.

Sofremos tanto por não termos essa tal beleza exclusiva quanto porque fingimos que compramos a body positivity, a body neutrality, a body “aprendi a me amar assim” de capa de revista. Sofremos porque mentimos, porque dizemos que sim, mas não estamos satisfeitos com nossas caras, que sofrem para achar um ângulo diante das câmeras frontais. Queremos dominar suas distorções cada vez mais realistas de nossa pele, nossos cabelos e ossos.

Compramos produtos de empresas que nos tratam como bobocas prontos a sentar no colo do primeiro elogio, de quem nos diz o que também nos disseram que queremos ouvir.

Dizemos “beleza negra”, “modelo plus”, “look real”, marcamos nas palavras aquilo que deixamos fora de certo discurso porque pega mal. Essa tal beleza natural universal que queremos é branca e magra/gostosa/malhada/jovem. Todos os demais tipos entram na lista da inclusão, essa grande festa patrocinada pela generosidade da área vip. Ah sim, beleza pobre não vai longe. Ou enriquece ou vira guerreira, batalhadora.

O fel do autodesprezo, que atinge a maioria fora do padrão divino dos escolhidos, escorre de nossas próprias bocas. Há indiscutivelmente racismo, etarismo, preconceitos de gênero e de toda sorte. E eles funcionam melhor porque a maioria aprende a se odiar desde cedo em maior ou menor grau. Isso é cultivado socialmente e pode adquirir importância secundária para muitos, destruir o espírito de tantos outros, ou seja, afetar as subjetividades de várias maneiras. Mas o fato é que temos aí uma grande e presente questão.

A pessoa branca desencaixada dos demais itens do padrão de beleza pode se segurar em sua brancura, muitas vezes. Outras vezes, vai gastar os tubos em todo tipo de procedimento ou talvez fique resignada, contente em idolatrar a elite da beleza ou de propagar a lorota da autoaceitação marqueteira, mesmo que isso a angustie ainda mais.

Alcançar a desconstrução via cards, lives com influenciadoras jovens repetindo jargões motivacionais moderninhos e programas de passos terapêuticos, o novo Graal da internet.

A pessoa negra por sua vez tenta se livrar do devir de um padrão branco absolutamente impossível. É chamada a assumir certas posturas, se debate com a questão da identidade x racismo. Não é um processo simples e indolor – pelo contrário.

Dane-se se você sente que nada mais funciona, se você tem medo de parar para pensar e ficar doido e, por isso, adere ao cordão e segue o baile conforme o hit do momento. Todo poder ao autocuidado! Saúde mental já! Faça terapia que tudo se resolve! Tudo o quê? E o que é exatamente “resolver” fica meio no ar, como se cada um pudesse achar seu jeito. Mas na real a regra é rígida e clara: se vire e adapte-se. Talvez este seja o primeiro passo para alguma ideia de bem-viver: questionar os mecanismos de adaptação. Não parece uma boa ideia se adaptar a algo que adoece. Não parece boa ideia afogar conflitos para conseguir o tão sonhado sentimento de pertencimento.

A beleza é um drama filosófico. Séculos de brigas intercontinentais e globalizadas, ciência, religião, arte, educação, difícil dizer o que não entra nesse balaio. A beleza tem algo de objetivo. Não tem nada de objetivo. É tudo construção social. É ficção, mas estrutura a realidade. É questão de ponto de vista. Muda conforme o amor. Poderíamos desmembrar eternamente, prolongar infinitamente essa luta no gel orgânico com 800 ativos alienígenas que vão certamente melhorar a cara discutível que sua genética entregou.

Sabemos, sabemos que a beleza é afetiva. Mas escolhemos (será?) sofrer. Não porque de fato avançamos na discussão filosófica e pensar dói, mas talvez porque estamos ligados demais a nossos mestres e tiranos. Introjetamos tanto em nós o inferno que o sistema deles criou que temos medo de nos desconhecer completamente caso essa casa enfim caia. Sabe, se toda essa parafernália sumisse, quem você seria?

Sim, é bem provável que outros sistemas econômicos e sociais gerem outras neuroses nesse sentido, isso é certo. Mas não é por isso que temos de nos conformar com reformas sem fim que se recusam a mexer nas bases das questões.

Não adianta dizer que derrubou padrões do espetáculo sem derrubar quem controla o circo, arriar a lona, soltar os bichos e chorar com os palhaços. Sim, tá tudo errado. Nem vou comentar sobre o lance de “e tudo bem”.

Sim, aquela parte de a beleza ser ao menos cocriada pelo amor, isso tem sua verdade. Mas não se emocione tanto porque outras coisas bem mais medíocres têm vencido essa luta. Dinheiro, dinheiro pauta beleza. O grande exemplo, o elefante bilionário e branco na sala dos cards coloridos sobre aceitação.

Talvez ajude se pensarmos em aparências. Não que por trás delas esteja a verdade, a verdadeira beleza, não, por favor. A questão é quais são as nossas lentes, nossos filtros, os jogos de poder que modificam o nosso olhar e nossa capacidade de criar. Sim, falar sobre padrões de dominação é importante, mas não dá pra ficar só no papo politicamente correto sem abordar conflitos e contradições, baixezas, vaidades e uma falta brutal disso que chamamos de liberdade.

Uma criança é impactada pelas prisões do algoritmo, dos monopólios, das desigualdades, da gestão do ódio e do sofrimento antes de aprender a falar. Isso fala antes dela na família, na TV, na vizinhança, nos celulares e na vida da maioria dos adultos. Tudo é sobre exclusão, apartheid, humilhação social. E depois largam um batom vermelho, dois potes de creme e um cristal de massagem facial na mão da pessoa e dizem: cai dentro, fera, arrasa, quebra aí essas barreiras.

Precisamos sim reconstruir nossa ideia de beleza nesse sentido individual, de cada pessoa. Criar espaços onde a generosidade e a criatividade do olhar possam se desenvolver de fato, e não serem impostas com ares de superioridade moral para que nada nunca mude de fato e o caixa siga faturando. Acolher esse ódio ou esse medo do espelho, questioná-lo, deixar o peso pesar até se misturar com o chão, criar um novo chão mais fértil e menos poluído com imagens e frases de efeito pré-fabricadas, cristalizadas, recicladas, hipócritas e harmonizadas com a feiura daquilo que não queremos enfrentar.