Ponto de interrogação

Pelo direito de se divertir – na vida e com a moda.

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Uma roupa não nasce feita. Quer dizer, tem ali uma peça, mas o que fazer dela é outra história. Essa história tem a ver com o que chamamos de styling, montação, estilo, criatividade. Tem a ver com diversão.

Diversão é algo que nos separa um pouco do terreno da obrigação, a não ser quando divertir-se vira algo obrigatório, coisa muito comum no nosso tempo. Divertir, divergir, divagar, se soltar um pouco. Bem diferente de bater cartão nas redes performando satisfação e agito.

A roupa em termos de diversão é inversamente proporcional à moda. Quanto mais dentro do que a moda propõe no momento, menos divertido. Mais encaixado. A moda trabalha com conjuntos (de tendências, estilos de base, referências, cartelas etc.) e aderir a um deles não é exatamente algo criativo, não necessariamente, por mais que a gente busque as propostas mais absurdas.

Por isso, as grandes bombas da moda são sempre, ao menos em um primeiro momento, “fora de moda”. Dizem que elas antecipam um desejo que não estava posto, e na sequência o mercado corre atrás para se apropriar disso, tornar disponível em massa. Mas quando isso acontece vamos com quase tudo para a seara do consumo e é questão de tempo, às vezes um flash, até a coisa perder a graça, a força.

Se divertir com roupas não quer dizer exatamente ter um estilo engraçado ou exagerado da forma mais óbvia. Supercolorido, supermisturado. É mais sobre montar um diálogo com as peças. Isso pode conter um afronte, ironias finas, uma piada interna. Não as piadas já pasteurizadas do camp ou do kitsch, mas a construção de uma fala própria.

É claro que, por mais que a gente monte algo nosso, esse nosso é sempre um pouco outro, do outro. É sempre um pouco do mundo. Mas sempre com algo que destoa. O full look é a visão de uma marca. Mesmo que passe pelo designer. Copiar o full look da passarela ou da celebridade é isso, vestir a camisa de uma empresa. Já remexer as peças requer outras estratégias, um certo humor que sabe ouvir.

Como nos sonhos, podemos deslocar, condensar elementos. Podemos interferir para esconder e para mostrar. Podemos questionar performances. Uma saia ou uma calcinha, por exemplo, não exigem um órgão sexual feminino para serem usadas. Se socialmente fazemos essas associações, é porque elas foram construídas, o que não quer dizer absolutamente que sejam naturais ou necessárias de partida.

Os códigos sociais de vestimenta podem ser úteis ou não. Nem sempre o que é útil é bom. A utilidade de certas coisas pode ser, por exemplo, oprimir. Tipo essa coisa de atribuir certas cores à divisão meninos/meninas. A divisão por si só já é arbitrária, as cores escolhidas vêm acrescentar segregação ao pacote. Não se trata de negar a possibilidade de alguém que se identifica como menina se vestir de rosa, mas de saber que isso não é padrão nem regra. É só mais um jeito. Dizer eu sou menina é um jeito. Dizer eu sou menine é outro jeito. Há muitos jeitos possíveis, muitas cores disponíveis. Nenhum é superior ao outro. Nenhum é desvio de uma suposta norma. Diferença é diversão, não desigualdade. Ao menos deveria ser. Devemos brigar e brincar para que seja.

Existem convenções nesse sentido, mas elas não servem mais porque se escondem atrás de palavras como tradição para reforçar opressões, perseguições.

Roupa de mulher pode ser qualquer coisa que uma mulher que assim se diga decidir usar. Roupa não binárie pode ser qualquer coisa que uma pessoa que assim se diga queira usar. Roupa não tem gênero. Roupa não tem sexo. Aprendemos muita coisa de maneiras que precisam ser revistas. Inclusive, embora não só, em nome da diversão.

Sexy não é só o que agrada ao olhar da norma do macho. Clássico não é só o que vem do Ocidente. Feminino não é idêntico ao delicado. Nem tudo o que se refere a um homem é masculino. O preto não é necessariamente menos divertido que o pink ou mais chic do que o amarelo. A questão da elegância não é neutra, mas altamente ideológica. O que se chama exotismo está carregado do olhar destrutivo de uma pretensa universalidade colonial. Crianças sabem dizer o que querem vestir e devem ser ouvidas na medida do possível. Homens podem ser doces até no perfume. Roupa de travesti é qualquer look que essas pessoas decidam usar. Pessoas com deficiência não devem ser obrigadas a adotar um estilo “prático” e “funcional”. Gorda e plus size não são estilos. Pessoas negras não devem ser pressionadas a seguir nem a abandonar quaisquer expressões visuais de negritude. Popular não é sinônimo de coisa ruim ou inferior. E assim por diante.

Ou seja, não é tão fácil se divertir porque há sempre cobranças no caminho, coisas para serem derrubadas. Coisas para serem reescritas em cima do corpo. Corpos que vivem, que precisam de direito igualitário à dignidade, às oportunidades. Vale a pena entrar nesse bonde que une luta e criatividade não como atividades secundárias, mas como organizadores da vida.

Diversão é um direito. E pode ser uma delícia.