“Até de lançadora de modas fui chamada.” Um ano antes de sua morte, em 1973, Tarsila do Amaral relembrava em entrevista à
Veja sobre como ela, artista plástica e um dos maiores nomes do modernismo brasileiro, era antes descrita como uma mulher exuberante pela sociedade patriarcal dos anos 1920 para, só depois, ter seu trabalho avaliado pelos conterrâneos.
A verdade é que ela e também seu par à época, o poeta Oswald de Andrade (1890-1954), foram acontecimentos estéticos decisivos na construção do ideal fashionista por aqui.
Cem anos após a Semana de Arte Moderna de 22, primeira ruptura cultural brasileira com o seu passado colonial, um livro lançado pela Companhia das Letras,
O guarda-roupa modernista, da pesquisadora Carolina Casarin, ilumina esse traço pouco comentado do casal mais famoso do Grupo dos Cinco, que incluía a pintora Anita Malfatti e os escritores Mário de Andrade e Menotti del Picchia.
Por meio de uma pesquisa minuciosa em arquivos das casas de costura francesas e um mergulho singular em registros esquecidos, a autora descortina o fato, agora inequívoco, de que a roupa participou, sim, da construção do imaginário modernista fundado pelo grupo de amigos.
Uma das fotos mais famosas de Tarsila, trajada com um vestido xadrez num vernissage em Paris, onde ela morou na década de 1920, foi o ponto de partida para a ideia que viria a se tornar a tese de doutorado de Casarin na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Tarsila do Amaral no vernissage da Galeria Percier (Paris), em 1926.Foto: Divulgação/Fundo Mário de Andrade, IEB-USP
“Havia pouca pesquisa sobre a relação dela com a moda, apesar de muitas informações sobre seu legado. O que chamou minha atenção é como aquela roupa parecia fora de lugar, fundida a outro ambiente. Aquela discrepância parecia dizer muito sobre o lugar que ela queria ocupar no próprio modernismo”, explica a autora.
Para entender essa lógica é preciso recuperar o próprio significado do modernismo brasileiro, que tentava cunhar uma identidade nacional baseada nos traços de um país ainda semianalfabeto, onde a mistura de ex-escravos, etnias indígenas e uma massa operária miscigenada produzia um caldeirão cultural à sombra das galerias de arte e da literatura daquele tempo.
Casarin percebeu, e prova nas imagens raras e nas descrições colhidas, que a moda passou a ser usada tanto por Tarsila quanto por Oswald como artifício de afirmação dos valores modernistas, que carregavam a aura de deslocamento, o “exótico” sob o ponto de vista eurocêntrico, mas bebiam em estrutura das fontes clássicas do passado.
Poiret
Não é coincidência, então, que o estilista mais usado e comentado nas mais de 250 páginas do livro seja Paul Poiret (1879-1944). Marca registrada do estilo de Tarsila do Amaral e maior nome da costura do período da Belle Époque, o francês colou a ideia do exagero e da mistura de referências a culturas, no caso dele, com destaque para a asiática, para fundar o novo conceito de modernidade.
“A escolha pela Maison Poiret foi caso pensado”, afirma Casarin. Para ela, “o estilo deles foi um projeto modernista, uma construção arquitetada pelo casal”.
“Poiret simbolizava a vanguarda pelo exagero, que naquela época não era visto como exagero. Suas roupas uniam duas forças: o respeito às tradições, uma espécie de enraizamento estético, mas também uma atualização dessas origens. A roupa do casal tratava exatamente disso”, explica.
É importante lembrar que o estilista já não era visto pela casta fashionista de Paris como alguém “na moda”. Sua tesoura já enfrentava a concorrência de uma série de nomes que promoviam uma limpeza na imagem rebuscada do estilo europeu vigente, a exemplo de Jean Patou, Madeleine Vionnet, Coco Chanel e, em alguma medida, Jeanne Lanvin.
Isso reforça a ideia de que as motivações de “tarsiwald”, como a autora define a marca do casal modernista, não era estar exatamente na última moda, mas usar a roupa como extensão de suas ideias.
Tarsila e Oswald a bordo do navio “Lotus”, em 1926.Foto: Divulgação/Museu da Imagem e do Som de São Paulo.
A estratégia custou caro. O livro traz informações saborosas e raras, como a descoberta de que entre 23 de junho e 17 de julho de 1928, o casal gastou só na Maison Poiret o equivalente a 105.935 euros em valores atualizados, algo em torno de 630 mil reais.
As “comprinhas” estão registradas em uma nota, que continha, entre outras indulgências, três mantôs, oito vestidos, incluindo modelos famosos, como “flûte”, “dieppe” e “olympique”, uma jaqueta, uma capa, um traje de banho, sete chapéus, bolsas, dois pijamas e, atenção, 19 pares de meias.
A obra também resgata citações de Tarsila, como a de 1971, em que crava sua predileção por Poiret. “Era Paul Poiret que fazia meus vestidos. Chamava atenção e os outros costureiros demoravam três anos para fazer uma coisa mais ou menos como ele. Tinha muito talento e viajava para o Oriente também, para poder ver aqueles bordados, antigos. Ele estudava”, disse a pintora à época.
Luvas de palhaço
Oswald também estava nessa conta. Diferentemente do que se pode pensar, a imagem vendida pelo casal era um conjunto que não funcionaria separadamente. Até a década de 1940, o poeta escandalizava as rodas da elite paulistana com trajes de impacto. Abusava de cores, mas sempre vestido com as bases da alfaiataria clássica, e de acessórios, como uma luva esportiva que o sociólogo e crítico literário Antonio Candido chegou a chamar de “luvas de palhaço”.
“Ele escandalizava pelo fato de existir, porque a sua personalidade excepcionalmente poderosa atulhava o meio com a simples presença. Conheci muito senhor bem-posto que se irritava só de vê-lo”, escreveu Candido, em um texto reproduzido no livro.
Segundo Casarin, o humor vestível era usado pelo cofundador do modernismo como distinção, que transitava, como descreve no livro, “entre o homem de negócios burguês e excêntrico vanguardista”.
Olhando para as novidades têxteis e de códigos importados dos estadunidenses, desafiava a sociedade empoeirada ao extirpar o colete do terno e abusar de colarinhos mais soltos. O chapéu palheta conferia um ar jovial, ainda que clássico, à imagem que à época era um escândalo.
Modelos da marca de roupas masculinas Sulka, a preferida de Oswald, publicados na revista “Monsieur”, em 1922.Foto: Divulgação/Revista Monsieur.
O apreço pela moda dita esportiva faria com que ele, atualizado para os dias de hoje, fosse o tipo de homem que combina tênis com costume social ou roupa de moletom para ocasiões formais. O clima brasileiro, é verdade, impactava o tipo de roupa usada nos anos 1920 no Brasil, mas, ainda assim, havia regras intocadas que a elite não ultrapassava e o estilo “tarsiwald” ousou fazê-lo.
Brunno Almeida Maia, pesquisador vinculado à Unifesp e professor convidado da USP, pontua que embora a apropriação feita pelos dois não tenha fundado uma imagem de moda brasileira, uma ideia compartilhada por Casarin, há a preocupação evidente em transmitir elementos do pensamento modernista.
“Tarsila conseguiu expor à elite burguesa como é possível ser brasileira e ocupar um lugar de elegância. Estavam sempre no limiar do que é ser moderno e o que é ser clássico, entre o velho e o novo, a vanguarda e a não vanguarda, que até hoje acompanha a criação de moda brasileira”, explica Maia.
O modernismo de Zuzu Angel
O pensamento modernista não disseminou para a moda imediatamente, de acordo com ele. Ainda que nos anos 1950 feiras como Rhodia e Fenit tenham dado início ao reconhecimento dos primeiros costureiros brasileiros, como Dener Pamplona, Clodovil e José Gayegos, a cultura de moda perpetuada por eles era essencialmente europeizada.
Só nos anos 1970 uma estilista imprimiu os primeiros contornos modernistas à costura, fundindo cultura popular, política e padrões clássicos baseados nas origens fauvistas, dadaístas e do futurismo italiano, que formaram o pensamento moderno no Brasil. Zuzu Angel, o pesquisador afirma, foi a responsável pelo modernismo tardio aplicado na prática.
“Zuzu trouxe a afirmação de uma espécie de identidade brasileira fundada com preceitos da costura clássica, englobando elementos essencialmente locais, como o trabalho das rendeiras de Minas Gerais. Foi a primeira manifestação modernista da moda brasileira”, diz Maia.
De acordo com ele, “só depois, nos 1990, com a formação do calendário de moda nacional, nomes como Ronaldo Fraga e Alexandre Herchcovitch difundiram esse modelo de criação”.
Segundo o professor, que ministra neste mês o curso “Moda e modus na Semana de Arte de 22”, no Museu da Imagem e Som de São Paulo, um bom exemplo do legado dos preceitos modernistas é a coleção de Herchcovitch de inverno 2004, cujos looks mesclaram elementos de Carmen Miranda e Hello Kitty.
“São imagens contraditórias, que causam choque entre si e, se olharmos de fora, não se misturam. É o puro pensamento moderno, de olhar para o Brasil e seus antecedentes sob o prisma do olhar estrangeiro.”
E aí reside uma das críticas às pretensões modernas do casal Tarsila e Oswald em se tratando de estilo. Ainda que seu legado – e o da Semana de Arte Moderna – tenha sido finalmente colocar o país profundo e suas contradições no centro da produção cultural, eles não transpuseram essas características para a roupa. E isso fala muito sobre as elites, inclusive a da atualidade.
Oswald e Tarsila em Paris.Foto: Divulgação/Museu da Imagem e do Som de São Paulo.
“Não quero tirar a importância do que fizeram para a cultura brasileira, porque a imagem de Brasil fundada pelo modernismo é muito importante. Mas, quando olhamos de perto, com o distanciamento de 100 anos, no fim das contas essa imagem de estilo é uma projeção de Brasil idealizado por uma elite cafeeira”, afirma Casarin.
“É como sempre digo aos meus alunos, não esperem de ‘tarsiwald’ uma identidade de moda brasileira. A roupa nos conta as estratégias e servem como extensão do pensamento moderno, mas não imprimiram na prática a ruptura cultural da semana de 22”, afirma a autora.
Cem anos depois, a julgar pelas escolhas dos moderninhos da burguesia brasileira, não parece errado dizer que essa ruptura parece estar ainda em construção.