Qual é o problema da tendência das balaclavas?

O gorro que cobre a cabeça e a boca virou hit nas passarelas e no TikTok, mas é preciso fazer um recorte racial e religioso ao analisar o que o acessório representa para diferentes pessoas.

O ano é 2013. O diretor e roteirista Harmony Korine escalou sua esposa, Rachel Korine, a atriz Ashley Benson e as cantoras Selena Gomez e Vanessa Hudgens para estrelar o filme Spring breakers – Garotas perigosas. O longa contava a história de um grupo de amigas que decidiram roubar restaurantes e lojas, durante as férias de primavera, e acabaram envolvidas com um traficante, interpretado por James Franco. Em algumas das cenas mais polêmicas e famosas, as adolescentes vestem balaclavas rosa, decoradas com bordados de unicórnio, e biquínis cortininha neon, ao manusear metralhadoras e simular sexo oral com um revólver. Tudo em cima de uma cama coberta por maços de dólares.

O filme aborda assuntos e temas ainda bem sensíveis e presentes. Mas, na época, chocou mais pela violência e sexualidade de atrizes, até então, mais conhecidas por seus papéis fofos e inocentes em produções da Disney. O figurino fez sucesso, mas nunca entrou no centro das discussões, salvo algumas associações ao grupo feminista russo Pussy Riot. No mais, só inspirou uma coleção da marca Opening Ceremony, com a stylist Heidi Bivens, e mais algumas outras produções editoriais.

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Cena do filme “Spring breakers – Garotas perigosas” (2013).Foto: Reprodução

 

A balaclava foi criada em 1854, durante a Guerra da Crimeia, para proteger as tropas inglesas do frio congelante e, desde então, ganhou novos significados e contextos. O gorro, que cobre rosto e pescoço, virou artigo esportivo de ski, snowboard e até Fórmula 1. Também se tornou, para alguns, um acessório comumente associado ao crime, à violência e à cultura de gangues. Nesses casos, cobrir o rosto é um escudo, uma forma de esconder e proteger a própria identidade. Esse artifício também é usado há tempos por rappers e trappers que tampam a face ao performar letras com discursos mais pesados.

E assim a balaclava foi adentrando culturas – sociais e pop. Ela não só ganhou as telas de cinema e palcos de shows como também começou a aparecer nas passarelas. Nos desfiles de inverno 2018 da Gucci e da Calvin Klein (sob comando de Raf Simons), elas deram as caras em versões estampadas e de tricô colorido, com pontos grossos. Na temporada de inverno 2021, Miu Miu, Eckhaus Latta e Richard Quinn são apenas algumas das marcas que apresentaram suas ideias do acessório.

No segundo semestre de 2021, Kanye West passou meses com o rosto quase todo coberto ao divulgar seu novo álbum Donda – Kim Kardashian, para ajudar o ex-marido, também fez algumas aparições com um look parecido, criado pelo estilista Demna Gsavalia, da Balenciaga. Na última semana de moda masculina de inverno 2022, Rick Owens fez sua entrada final usando o item e, na passarela, os zíperes de doudounes estavam fechados até acima da cabeça, revelando dois buracos para os olhos.

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Kim Kardashian e filha.Foto: Instagram | @kimkardashian

 

Porém foi quando a tendência chegou ao TikTok que ela realmente extrapolou os limites do mundinho fashion e ganhou o mainstream (pelo menos fora do Brasil). Até o fechamento desta matéria, vídeos com a hashtag #balaclava ultrapassavam os 130 milhões de views. São milhares de tutoriais ensinando como tricotar sua própria peça ou estilizá-la em um look de inverno cool e despretensioso. Vale dizer aqui que a maioria desses vídeos é protagonizada por mulheres brancas.

Tendência pra quem?

Como quase tudo na vida – e na moda –, não dá para falar dessa tendência sem fazer um recorte social e racial, principalmente no Brasil. A balaclava faz parte de um imaginário negativo e preconceituoso de grande parte da população. “Não acho que uma pessoa preta usando uma balaclava à noite seria respeitada. Muito pelo contrário”, diz o stylist Maika Mano. A exceção, segundo ele, seria se a peça fugisse das versões mais comuns. “Se for algo extremamente criativo, talvez ela seja interpretada como uma pessoa que gosta de se vestir diferente. Ainda assim, pensando nas pessoas pretas, acho que poderia causar um estranhamento racista em pessoas brancas.”

O risco de sair com o rosto coberto e ser confundido com um bandido por uma polícia que atira antes e pergunta depois deve ser, sim, levado em consideração. “Como pessoa preta não retinta, pensaria duas vezes. Seria um risco muito grande. O racismo vai para lugares inimagináveis”, fala Maika.

Para o estilista Abayomi Oliveira, mais conhecido no Instagram como @podrederico7, esse é um estranhamento que acontece com todo mundo que se veste diferente daquilo com que a sociedade está acostumada, mas é ainda mais exacerbado quando falamos de corpos negros. “Branco sem camiseta na rua é olhado de uma forma e preto, de outra. Isso acontece com qualquer roupa”, explica.

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Miu Miu, inverno 2021.Foto: Divulgação

 

Abayomi trabalha com vários rappers e trappers do país, como Matuë e Haikaiss. Nos shows dos artistas que acompanha, o acessório já é figurinha carimbada há anos – mesmo sendo proibido. A semiótica e a má interpretação de jovens cobrindo o rosto em apresentações desses estilos musicais contribuem para o preconceito enraizado em relação às balaclavas. É também prova de que uma tendência como essa, quando é embranquecida, sempre será mais aceita pela sociedade.

O estilista ressalta a influência da covid-19. Com a pandemia, alguns acessórios ganharam outra conotação aos olhos de uma parcela da sociedade. Tendo que cobrir boca, nariz e boa parte do rosto, as balaclavas se tornaram uma versão estilosa (mas nada eficaz em termos sanitários) das máscaras. Isso não significa, no entanto, que as camadas de preconceito construídas durante décadas tenham sumido de repente.

Questão de religião

Há outro tipo de discriminação que envolve a tendência em questão: a religiosa. “A cabeça e o rosto cobertos são abordados como item supercool na indústria da moda, mas, quando uma mulher muçulmana usa o véu como símbolo religioso, ela sofre preconceito, não consegue emprego, às vezes nem passa da primeira etapa do processo criativo. Só é legal quando é um acessório de moda?”, pergunta Mag Halat.

Ela é uma das primeiras blogueiras muçulmanas do Brasil e dona de uma marca de moda voltada para mulheres que não encontram peças que atendam às demandas de sua religião. Seu último lançamento foi um burkini, roupa de banho feita para quem prefere se cobrir na praia ou na piscina. “As pessoas enxergam os lenços e acessórios usados nas passarelas com outros olhos. Quando elas veem ali, no desfile, não fazem uma associação direta com a mulher muçulmana. Elas não levam isso para o lado de aceitar a nossa cultura”, afirma.

Em um vídeo viral com mais de 250 mil likes, a TikToker Maliha Ness segue a mesma linha de pensamento. Seguido do áudio “gorgeous gorgeous girls wear balaclava, gorgeous gorgeous girls avoid the drama” (mulheres lindas usam balaclava, mulheres lindas evitam dramas), ela dispara: “Não se você é um jovem negro, porque você pode ser assassinado pela polícia. Não se você é uma mulher muçulmana, já que você pode sofrer um crime de ódio – se você estiver em um dia bom, você perde seu emprego, se for um dia ruim, você é esfaqueada. Mas, se você é uma mulher branca e magra, você é chamada de ícone fashion”.

O preconceito contra mulheres que, assim como Mag Halat, escolheram usar véus ou hijab é uma realidade pouco falada no Brasil. Como se cobrir a cabeça só fosse socialmente aceito se o que a cobre tiver etiqueta grifada, cores divertidas e for usado por uma mulher dentro de padrões eurocêntricos. A moda, que já há algum tempo discute apropriação cultural, precisa entender e discutir essas questões. Se uma tendência só pode ser usada tranquilamente por pessoas brancas, é hora de repensar e levar em consideração esses pontos.

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Eckhaus Latta, inverno 2021.Foto: Divulgação

 

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