Deixar de lado o hábito de bater perna nas lojas para comprar roupa e montar um guarda-roupa produzido com as suas próprias mãos é uma prática que começa a surgir no Brasil.
Para as adeptas, costurar suas roupas representa um caminho de transformação, um novo estilo de vida, que as faz reviver afetos e se colocar no mundo de forma mais sustentável, ao consumir menos aquilo que é produzido pela terceira indústria mais poluente do mundo, a da moda e têxtil. O setor representa até 5% das emissões mundiais de gases de efeito estufa, como mostra um relatório do Fórum Econômico de Davos publicado no ano passado.
Proprietária há 13 anos de uma loja-ateliê que leva o seu nome, em São Paulo, a estilista Georgia Halal faz uma moda alfaiataria atemporal e com produções em baixa escala. Em 2017, ela criou o Sew Sisters, um clube de costura para mulheres. O projeto surgiu da sua vontade de conscientizar o público sobre o processo de produção de uma roupa. O clube tem atraído, majoritariamente, mulheres 30+. “Elas querem entender e ter a consciência sobre os processos, de quanto demora fazer uma roupa, e começam a valorizar um pouco mais a roupa em si, se tornam mais sentimentais. A peça passa a ter uma história, e as alunas gostam de dizer ‘eu fiz isso’, porque elas trazem personalidade para aquilo que vestem”, conta Georgia.
A estilista Georgia Halal (à direita,) com uma aluna do Sew Sisters, clube de costura para mulheres.Foto: Divulgação
Impossível não pensar que a pandemia de Covid-19 teve, em algum grau, influência na decisão dessas mulheres. “Ela foi uma catalisadora e potencializou os incômodos de quem já questionava a cadeia do fast fashion. As pessoas querem ter uma independência, estão olhando mais para a customização e também para as roupas de brechó. Quando você começa a costurar, passa a ter um cantinho da costura dentro de casa. Você se reconecta com a roupa, escolhe o tecido, o que vai fazer… Você se conhece mais”, diz a estilista.
O movimento ainda é embrionário no Brasil, mas bastante avançado em países da Europa, com jovens se posicionando de forma crítica em relação ao consumo desenfreado e em busca de uma forma totalmente personalizada e, principalmente, livre de montar o guarda-roupa. Em entrevista à BBC, Rosie Scott e Hannah Silvani, proprietárias de uma oficina de costura e uma loja de tecidos chamada The New Craft House, em Londres, dizem que a costura já está se popularizando, inclusive entre os mais jovens na cidade, sendo que mais de 90% deles são mulheres. “Elas estão demonstrando muito interesse em costurar e fazer suas próprias roupas de maneira sustentável”, afirma Rosie.
Para Georgia Halal, no exterior há mais independência de quem procura incorporar a costura a seu lifestyle. “Existe um movimento que é online, com cursos, mas aqui as alunas têm um pouco de receio de fazer, porque muitas vezes não sabem como funciona uma máquina de costura. Existe ainda um nicho de mercado com a venda de modelagens, algo que também está no nosso curso. Ensinamos a fazer modelagens modernas, com informação de moda.”
Movimento de afeto e memórias
Desde a infância, a administradora de empresas Mariana Soares, 41 anos, traz para a costura esse olhar afetivo e relacionado a suas memórias. Ela começou a se entender entre as agulhas e os tecidos aos 8 anos. “Uma tia com habilidades incríveis me ensinou a costurar. Primeiro, roupas de boneca e, depois, roupas de ‘gente grande’. Com 14 anos, ganhei dela a minha primeira máquina de verdade. Tenho até hoje e funciona perfeitamente. A partir daí, entendi a qualidade e durabilidade dos tecidos de algodão, sobre seu frescor e a importância das roupas feitas sob medida”, conta. Nos últimos três anos, Mariana produziu peças das quais se orgulha. Seu guarda-roupa hoje tem 40% de roupas feitas por ela. “Ter a capacidade de realizar isso, de produzir roupas adequadas ao seu próprio corpo, com tecidos de qualidade e durabilidade, te coloca em outro lugar quando o assunto é comprar roupa. Uma visita a qualquer fast fashion te permite olhar a peça, entender a sua complexidade e a qualidade dos tecidos, que são lastimáveis na maioria das vezes”, diz.
Assim como Mariana, a atriz e professora Ludmila Castanheira, 35 anos, também tem na costura um lugar de memória e amor pela família por causa da tia que era costureira. Na adolescência, chegou a se interessar pelo estilismo, mas conta que, na época, teve a real dimensão de quanto isso poderia custar. “Vi o quanto custava fazer a faculdade mesmo em uma universidade federal, já que teria que bancar os materiais para produzir as roupas e os desfiles. Sempre criei os figurinos das minhas peças. Eu diminuí bastante a compra de peças mais básicas”, explica.
Costura na memória: a administradora Mariana Soares fazia roupa aos 8 anos para as bonecas.Foto: Arquivo pessoal
Patrícia Cardoso trabalha com costura há 15 anos e tem um ateliê em São Paulo, onde dá aulas. Entre seus alunos, ela reúne homens e mulheres em busca de mais autonomia na hora de se vestir. “Trabalho com isso desde 2007 e comecei a dar aulas em 2011. No início, fazia uma costura mais criativa, acessórios, almofadas, nécessaires. Como já tinha estudado um pouco de modelagem, mas ainda não fazia roupas, voltei a estudar tudo de novo, entendendo melhor os tamanhos e as proporções do corpo na hora de criar os tamanhos de calças, blusas e vestidos”, diz.
Desde 2015, Patrícia costura tudo o que veste e praticamente não compra mais em lojas: “De algum jeito, comecei a me conectar com pessoas que também queriam fazer suas próprias peças. A costura vem, muitas vezes, de um lugar de memória afetiva. A avó costurava, a mãe costurava, então, quem quer aprender entende que é um negócio que compõe a vida no todo, porque roupa a gente veste todo dia”.
Resgatando e ressignificando a costura
A história da costura sempre passou por mãos femininas. De seu surgimento, no período paleolítico, com agulhas feitas de marfim de mamute e ossos de rena, passando pelo tear manual com lã e algodão, até a Revolução Industrial e o surgimento das máquinas de costura e a produção em larga escala, as mulheres tiveram um papel decisivo nesse fazer. Mas, em tempos modernos e capitalistas, ele foi sendo associado às tarefas domésticas e, muitas vezes, colocado em um lugar de precarização profissional.
Patrícia Cardoso ensina homens e mulheres que buscam autonomia no vestir.Foto: Arquivo pessoal
“Importante a gente não deixar de falar sobre o recorte de classe, porque as mulheres pobres sempre costuraram, não é algo novo. Minha mãe teve na costura a sua forma de sustento. É uma mulher de origem muito pobre, que cresceu na roça, no sul da Bahia, e veio para São Paulo com pouco mais de 20 anos, num caminhão horroroso. Enfim, história bem clássica das pessoas que migraram para cá nos anos 1960, 70. E ela conta que as pessoas mais pobres só costuravam. Não compravam roupas. Depois dos anos 1980 é que começaram a aparecer lojas mais acessíveis”, diz Patrícia.
Para Marina Colerato, pesquisadora, editora-chefe do site Modefica e colunista da ELLE, quando falamos sobre costura, é importante sempre situá-la dentro desse contexto para poder resgatá-la na atualidade. Ela faz um alerta importante: “A gente tem uma dificuldade imensa em valorizar esse fazer, profissional ou artesanalmente, porque ele está ligado a uma atividade doméstica que é amplamente desvalorizada. Muito embora a gente também tenha homens trabalhando nas redes produtivas, em situações de extrema precarização. O resgate cultural desse fazer é importante, sobretudo pela ótica da luta das mulheres. Tem muita mulher costureira que está aí no corre e que precisa ser mais bem remunerada”.